Pai narcisista? Quem paga o páthos do binarismo
Ao pai, fica relegado o papel biológico da fecundação, enquanto o cuidado com a vida se concentra na figura materna. Talvez a expressão narcisismo seja muito mais bem conjugada ao lado do substantivo pai.
Você conhece alguma categoria psiquiátrica ou expressão popular que designe uma patologia composta pelo substantivo pai? Da ciência ao uso comum do termo, não encontramos uma patologia da paternidade. O vazio de palavras diante dessa pergunta é preenchido, por outro lado, rapidamente por expressões como “mãe narcisista” e “mãe geladeira”. Houve quem considerasse, por exemplo, que o autismo da criança era fruto da sua relação com uma mãe afetivamente fria. Outras expressões um pouco menos conhecidas como “mãe suficientemente boa”, cunhada pelo psicanalista Donald Winnicott, ainda que remeta à noção de uma função materna, ao se utilizar da palavra mãe como centralidade, não deixa de apontar que essa função em algum nível indica que se trata de um índice feminino.
É evidente que entre a ideia de mãe narcisista, utilizada pelo senso comum para reduzir a complexa discussão sobre a maternidade aos signos de auto centramento, e de mãe suficientemente boa, que grosso modo aponta para a importância da imperfeição na maternagem, há um abismo. Esse abismo, no entanto, aponta para um horizonte comum.
Entre pais e mães, são elas que pagam o páthos pelas falhas do cuidado. As discussões sobre o machismo estrutural a partir da multiplicidade de questões colocadas pelos movimentos feministas têm sido cada vez mais frequentes no cotidiano. Mas será que somos capazes de repensar nossos próprios conceitos que estruturam a dualidade pai e mãe?
Afinal, o que é um pai? Ora, além de expressões psicopatológicas, talvez tenhamos muitos mais subsídios para descrever características de uma mãe do que de um pai. O que não percebemos, aspecto que remete a uma lógica binária, é que os conceitos de pai e mãe têm sua existência em contraponto. Só definimos tão amplamente o que é uma mãe porque temos como pano de fundo um conceito do que é um pai. Conceito este que não aparece explicitamente, mas se revela justamente na sua ausência em contraponto com a sustentação de seu par, de seu oposto.
Só se pode atribuir a maior parte das falhas de cuidado à mãe, porque as isentamos da paternidade. Aqui, o argumento naturalista, de que mãe e pai estão ancorados no sexo biológico e, por isso, a maternidade teria mais amplas funções, apenas reforça o binarismo. Não é mera coincidência que, segundo o Portal da Transparência do Registro Civil, o Brasil tenha em 2023 o número de 110.723 certidões de nascimento sem o registro do nome paterno. Ao pai, fica relegado o papel biológico da fecundação, enquanto o cuidado com a vida se concentra na figura materna. Talvez a expressão narcisismo seja muito mais bem conjugada ao lado do substantivo pai.
Narciso foi aquele que ficou preso em sua própria imagem, uma imagem ilusória, sem corpo e sem alteridade. Não é possível falar sobre o pai sem que lembremos que esse conceito é tributário de uma concepção de mundo que isola pares de opostos de modo a engessar posições de poder. Não se trata de propor uma simetria entre pai e mãe, ou de atribuir características da maternagem à paternidade, mas recolocá-los em tensão com a multiplicidade de formas que o cuidado pode alcançar. Celebrar o Dia dos Pais é dividir o páthos, é lembrar da alegria e da responsabilidade de cuidar uns dos outros para além do próprio espelho. É lembrar que o cuidado é uma ação coletiva na qual todos estão envolvidos, inclusive aqueles que designamos como pais.
Thais Klein é psicanalista, professora da Universidade Federal Fluminense e do Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).