Palavras memoráveis
Descrever a vida com extremo realismo pode ser perigoso. Grégoire Bouillier que o diga: sua primeira obra, um relato pessoal de 40 anos de vida, quase lhe rendeu um processo dos próprios pais. O escritor, que esteve no Brasil para lançar seu segundo livro, O convidado surpresa, concedeu-nos uma entrevista exclusiva
Diplomatique – Você começou a escrever suas memórias depois dos 40 anos. Quais etapas significativas de sua vida você se sentiu impelido a contar?
Grégoire Boullier – De fato, o meu primeiro livro, Rapport sur moi1, conta todas as experiências que vivenciei até aos 40 anos. Eu bem sei que isso é quase uma banalidade para um primeiro livro; contudo, a minha intenção não era apenas contar minha vidinha, que vale tanto quanto a de qualquer pessoa. O que me motivou foi o seguinte questionamento: todo mundo vivencia certas coisas… mas, o que essas coisas têm para nos contar? Por que vivenciamos tal coisa e não outra?
Afinal, em que se baseia o desenrolar da nossa existência e até que ponto o que ocorre com a gente nos diz respeito? Foi para tentar responder essas perguntas que escrevi Rapport sur moi. Por exemplo, vou explicar por que escrevi esse primeiro livro aos 40 anos. Isso não aconteceu por acaso: com efeito, sempre tive a convicção de que escreveria um livro aos 40 e não antes, porque após ser acometido de uma grave doença infecciosa com a idade de 5 anos, fui mantido por longo período em quarentena num hospital. Ora, o fato de me encontrar dentro de uma “bolha de isolamento” deve ter causado um trauma tão forte ao moleque que eu era que a palavra “quarentena” ficou gravada em mim. A tal ponto, que acabei me convencendo inconscientemente de que não poderia fazer nada que prestasse enquanto não tivesse completado 40 anos. Se colocassem os doentes em “trintena”, eu talvez tivesse escrito a partir dos 30, quem sabe? Tudo isso para lhe dizer que não se trata de falar de mim, das minhas doenças, da minha família ou dos meus amores, mas sim de descobrir, a partir de tudo isso, o que anima e embasa nossa existência. Todas as coisas que acontecem com a gente, nós também acontecemos junto com elas. É isso que eu conto no meu primeiro livro. Ele expressa minha opinião de que cada um de nós pode fazer o uso que bem entender de sua existência para apropriar-se dela.
Isso porque, afinal, trata-se da nossa vida, e ninguém morre em nosso lugar. Em O convidado surpresa2, eu cito a belíssima frase de Virginia Woolf: “Devolver lentamente as coisas para a luz”. Pois bem, é exatamente o que tento fazer com os eventos que compõem minha vida.
Diplomatique – Escrever a respeito de si mesmo quer dizer que a realidade seria mais interessante que a ficção ou que essa é uma maneira mais fácil de se expressar?
GB – Não escrevo verdadeiramente sobre mim, mas sim através de mim. Como se eu fosse uma espécie de experiência humana que o escritor desnuda para tentar decifrá-la. Nessas condições, é fácil compreender por que acho a realidade muito mais excitante que a ficção. Porque todos nós vivenciamos eventos que nos deixam totalmente incrédulos, diante dos quais não sabemos o que fazer, e que, por serem assim, nos colocam diante do desafio de contá-los. Tornou-se um hábito dizer que a realidade supera a ficção; pois então, não somente não me canso de verificar o quanto isso é verdadeiro, como, mais que isso, os meus livros fazem a aposta de dar conta desse fenômeno. De encarar o desafio que representa a tarefa de tornar “compreensíveis para si e para os outros” essas coisas que acontecem com a gente, citando aqui uma frase do [etnólogo e escritor francês] Michel Leiris. Todas as nossas ideias prontas desmoronam diante de todo e qualquer evento vivenciado.
Assim, me parece que é a partir desse desmoronamento que o ato de escrever deixa de ser um simples ajuntamento mais ou menos bem-sucedido de consoantes e vogais. No fim das contas, eu não encontrei desafio melhor, no que diz respeito à literatura, que esse de tentar colocar no papel aquilo que nos deixa sem voz.
Diplomatique – Como você define esse gênero literário?
GB – Quando escrevi meu primeiro livro, eu não me identificava com nenhum dos gêneros literários tradicionais. Acima de tudo, não tinha vontade alguma de escrever romances. Não é por não gostar de romances. De fato, por muito tempo, fiz o que todo mundo costuma fazer: li conforme nos é ensinado em todo lugar a ler, isto é, considerando a literatura como uma esfera totalmente separada da realidade da existência. Como um divertimento deliberadamente circunscrito e, por causa disso, inofensivo. Até ao momento em que me dei conta de que algo estava errado.
Ou seja, que a vida que eu estava lendo nos livros de maneira alguma se parecia com a vida que eu estava vivendo ou que eu estava vendo se desenrolar em volta de mim.
Ela não passava de um “espetáculo”, no sentido que Guy Debord conferiu a esse conceito. Enquanto os livros afirmavam falar da vida, eles na verdade falavam apenas de literatura. Por quê? Seria essa uma fatalidade? Então, quando escrevi meu primeiro livro, senti necessidade de inventar para mim um espaço narrativo dentro do qual me sentisse mais à vontade. Queria ditar minhas próprias leis para reger minha escrita, em vez de obedecer a leis romanescas já estipuladas. E tudo começou a fluir quando encontrei a palavra “relatório”, termo que significa “ação de contar algo que se viu; algo que se ouviu”. Imediatamente ocorreu-me que se tratava, no caso, de um gênero literário completo, equivalente a qualquer outro, que eu podia inventar para meu uso próprio, e pouco importava que eu fosse seu único expoente.
Assim, todos os meus livros são relatórios. Não são romances, nem memórias, nem autoficções ou sei lá mais o quê. Mas sim, “relatórios”.
Diplomatique – O fato de expor sua vida pessoal certamente deve ter criado situações difíceis ou constrangedoras, quem sabe até mesmo no plano sentimental. Em sua opinião, quando o ato de relatar envolve a sua intimidade, existe algum limite que deve ser respeitado?
GB – Ocorre algo estranho e propriamente milagroso quando se escreve: o tempo da escrita não é o mesmo que o tempo social. De repente, as leis que regem a sociedade param de existir. Permanecem apenas aquelas do livro que está sendo escrito. É por essa razão que não enxergo limites para aquilo que um livro pode conter. Contudo, estou perfeitamente ciente de que um livro – como os meus, por exemplo – pode ofender ou constranger certas pessoas. Mas é importante saber que de modo algum se trata de falar de alguém. Os meus livros jamais tomam alguém como alvo. Ainda assim, uma vez que almejo “revirar lentamente as coisas na direção da luz”, não posso proceder de outra forma, a não ser envolver pessoas reais. Se elas se sentirem ofendidas com isso, posso compreender sua atitude. É possível sentir-se vítima de uma crueldade terrível ao ver-se envolvido na narrativa de um autor sem poder replicar. E creio que um escritor responsável tem o dever de procurar entender as mágoas que possa vir a causar. Essa liberdade do artista não é um direito, mas sim uma liberdade que ele toma e que está fadado a assumir depois – sem dispor de qualquer outra alternativa –, expondo seu nome e seu corpo. A esse respeito, gostaria de acrescentar o seguinte: algumas pessoas, entre as quais os meus pais, quiseram me processar depois do lançamento de Rapport sur moi. Pois bem, todas elas desistiram, me dando a seguinte justificativa: “Você está com sorte por ter escrito a verdade”.
Diplomatique – Sophie Calle expôs o fim do relacionamento de vocês de uma maneira artística3. Existe algum paralelo entre o trabalho dela, que questiona a separação entre o público e o privado, e a sua abordagem literária? A intenção não seria a mesma, diferindo apenas na via escolhida?
GB – Em momento algum eu tive a intenção de criar dificuldades para Sophie Calle, mesmo se o seu projeto, ao menos a ideia dele, me desagradava. Porque ela também é capaz de perceber o mal que pode causar ao expor alguém contra a sua vontade, e avaliar se isso é compensado pelo valor artístico do seu projeto. Conforme ela mesma diz: tudo depende de se a finalidade procurada justificou ou não, pela qualidade do resultado, os meios empregados para alcançá-la. Neste ponto estou plenamente de acordo com ela, e, quando vejo o que foi feito com a minha carta de rompimento, eu mesmo posso afirmar que a finalidade justificou efetivamente os meios empregados. É isso o que mais importa.
O convidado surpresa, Grégoire Bouillier. Ed. Cosac Naify, 2009, 120 págs., R$ 39,00
*Maíra Kubík Mano é jornalista, foi editora de Le Monde Diplomatique Brasil e atualmente é docente do Bacharelado em Gênero e Diversidade da Universidade Federal da Bahia (UFBA).