Palestina e favelas cariocas: os guetos negligenciados
O terrorismo de Israel e os esquadrões da morte das polícias seguirão até quando cometendo crimes?
Diariamente nos deparamos com mortes nas comunidades cariocas (rotuladas pejorativamente como favelas, mas ignorando sua origem durante a Guerra de Canudos, quando soldados improvisaram moradias em alguns lugares, inicialmente na chamada Morro da Favela, que recebia esse nome pela presença de plantas conhecidas como “favela” – Cnidoscolus quercifolius), [1] assim como na Palestina ocupada. Confrontos desiguais e que parecem não ter solução.
Muitos podem estar se perguntando qual a relação que essas situações têm. Explico.
As chacinas que ocorrem nas comunidades, eufemisticamente chamadas de “operações policiais contra traficantes”, se utilizam de um discurso vazio, racista e usa armamentos pesados, drones e blindados como os tais “Caveirões” com tecnologia desenvolvida pelas forças militares e sionistas de Israel. [2]
Tal como fazem na Palestina, testam contra o povo inocente, rotulando-os de forma genérica como bandidos, agressores. Utilizando-se de técnica e treinamento das forças militares israelenses, a polícia atua para o genocídio do povo pobre e preto das comunidades periféricas.
Em ambas as situações o Estado é racista, e segue promovendo a limpeza étnica. Racismo esse, é bom que se diga, que atende aos interesses do capitalismo, assim como o sexismo, misoginia, machismo, sustentáculos deste sistema.
Para a mídia, o agente dos crimes sempre é o povo marginalizado (ou, como propagam: bandidos, terroristas, traficantes, suspeitos), cabendo às forças militares reagirem como defesa. Com isso, promovem extermínio através de chacinas.
Não à toa, com governos de extrema-direita no Brasil (sob a égide do inelegível e seus comparsas como Cláudio Castro, Wilson Witzel e cia), as mortes por tais operações batem recordes e são normalizadas como “eliminação de bandidos”. Lembro aqui que durante o primeiro ano do governador fascista Wilson Witzel – aquele mesmo que comemorou com pulos a morte de pessoas, defendeu “tiro na cabeça” e que “abate” de criminoso não é crime [3,4] – houve um recorde nas mortes por ações policiais. [5]
Na Palestina ocupada, não é diferente. Recentemente, o ministro israelense de Segurança Nacional, Itamar Ben-Gvir, defendeu explicitamente o extermínio dos palestinos e árabes, incitando os colonos judeus a atirar, e vangloriando-se de que “neste governo, matamos 120 palestinos nos últimos seis meses e haverá mais no futuro”. [6,7]
Impossível não fazer relação ao ex-presidente e toda sua laia, que defendia exatamente o acesso às armas para “metralhar a petralhada” e “o pessoal do MST”. [8,9] Tais discursos promoveram não apenas a maior radicalização da sociedade, mas aumentaram significativamente os casos de violência e mortes. [10, 11]
No que se refere às ações policiais no Rio de Janeiro, apenas entre 2007 e 2021 foram registradas 593 chacinas, o que resultou em 2.374 mortes, sendo 1.599 apenas na capital fluminense. [12, 13, 14, 15] Em 2022 as polícias mataram 1.327 pessoas no estado, representando um terço das mortes violentas no Rio. [16]
Fiz um levantamento para tentar dimensionar o número de palestinos que já morreram de 1948 – após o início do processo de expulsão e genocídio do povo palestino – até hoje sob a política racista e de apartheid de Israel, com base em dados oficiais da ONU, [17] Human Rights Watch, [18] Israel-Palestine Timeline [19] e Centro de Estatística do Estado da Palestina. [20]
Ainda que não tenha encontrado dados referentes aos anos de 1950 a 1965, fiz o cálculo com base em dois valores: um que se refere aos assassinatos entre 1948 e 1949 (10 mil mortos, com média de 5 mil/ano) e outro com os dados de 1965 até 2022 (25.425 mortos, com média de 425/ano). Sendo assim, projetando-se a média mínima e a máxima, encontrei números estarrecedores: desde o início da expulsão dos palestinos, tivemos entre 41.800 e 64.510 mortos. Em 2023, até junho, Israel já matou 163 palestinos. [21, 22]
E, tal como no Rio de Janeiro, o genocídio continua.
Ilustrando o quão desigual é o conflito, segundo o Statista – portal de estatísticas alemão que reúne os dados recolhidos pelo Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA) –, o número de palestinos mortos é 22 vezes maior que o número de israelenses. [23]
Lembro aqui algumas das crianças vitimadas/assassinadas pelas operações policiais nas comunidades cariocas: Ágatha Félix, Kauê Ribeiro dos Santos, Marcos Vinícius da Silva, Kauã Rozário, Kauan Peixoto e Jenifer Silene Gomes, João Pedro Matos Pinto, Djalma de Azevedo Clemente. [24] E outras que nem chegaram a nascer, como os filhos das dez gestantes mortas nos últimos seis anos, assassinadas pelas tais “balas perdidas” (que sempre encontram pretos e pobres). [25] É justamente no Rio de Janeiro que quase 40% das mortes de crianças e adolescentes de todo o país acontecem. [14]
Na Palestina, crianças também sofrem pela ação truculenta e desumana das forças militares de Israel. Somente entre 2008 e junho de 2023, 1.418 crianças foram assassinadas pelos sioinistas. [26, 27]
No relatório divulgado pela Defense for Children International27 os dados são revoltantes: quatro em cada cinco crianças palestinas detidas pelas forças de ocupação israelenses são submetidas a violência física durante a prisão ou interrogatório. Como forma de tortura, 49% das crianças foram mantidas em confinamento solitário, em média, por 16 dias. 81,5% das crianças relataram terem sido abusadas fisicamente por soldados ou policiais israelenses, o que incluía tapas, socos, chutes e espancamentos com armas. Israel faz isso contra crianças!
Desrespeitando as orientações da ONU – o que não é nenhuma novidade por parte de Israel, que não cumpre os Acordos de Oslo e as próprias Cartas e Resoluções da ONU (Artigos 1, 2, 3 e 4 da Carta das Nações Unidas; Resolução 260 -Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio; Resolução 1514 – Declaração sobre a Concessão da Independência aos Países e Povos Coloniais; Resolução 1761 – Sanções recomendadas contra a África do Sul em resposta à política governamental de apartheid; Resolução 2106 – Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial; Resolução 3068 – Convenção Internacional sobre a Supressão e Punição do Crime de Apartheid) – forças militares seguem sequestrando, aprisionando e torturando crianças palestinas, com média de 600 prisões infantis/ano. [28]
E assim como acontece com a população do Rio de Janeiro, carregam sequelas e traumas para a vida toda. São danos psicológicos (traumas) e físicos (desnutrição, falta de acesso à saúde e água potável) que afetam seu desenvolvimento e até de gerações futuras, como já provou a epigenética.
Sejam danos físicos, mutilações, sejam psicológicas, causadas pelas invasões, tiroteios e arbitrariedades, como as demolições de mais de 131 mil moradias [29] e a destruição de outras tantas pelos israelenses e seus bombardeios, inclusive em escolas e hospitais. Imagine você nascer e não ter liberdade de circulação em sua própria terra, sempre sujeitando-se aos checkpoints sionistas. Imagine uma criança não poder frequentar sua escola porque está em meio a um tiroteio?
Nem mesmo os doentes têm vida fácil sob o regime de apartheid de Israel, que muita vezes impede o tratamento e cuidado de pacientes, como foi o caso emblemático de Kamal Abu Wa’er, que morreu de câncer aprisionado pelos sionistas sem direito ao tratamento. [30] Em 2017, por exemplo, 54 palestinos morreram enquanto esperavam de Israel a autorização para sair dos territórios palestinos em Gaza para receber atenção médica. [31]
Em sua política de terror para gerar um ambiente inóspito à sobrevivência, Israel segue restringindo o acesso aos combustíveis, eletricidade e água potável, principalmente em Gaza. As mais de 2 milhões de pessoas que ali resistem têm apenas 4 horas de eletricidade por dia, e 96% da água potável está contaminada. [32] Em outras localidades, colonos judeus, com apoio dos militares israelenses, invadem terras palestinas destruindo plantações, matando e roubando animais, destruindo moradias e inviabilizando a reconstrução das mesmas, pois até o acesso de caminhões e materiais de construção é limitado pelos sionistas.
Entidades denunciam os efeitos na saúde mental das crianças, expostas constantemente a estressores traumáticos. [33] Levantamentos apontam que quatro em cada cinco crianças na Faixa de Gaza vivem com depressão, tristeza e medo, e mais da metade delas já pensou em cometer suicídio. Casos de automutilação afetam três em cada cinco dessas crianças. Não se estranha, infelizmente, que 91% sentem-se inseguras, 84% com medo e 73% apresentam dificuldades para dormir.
E não se sustenta o discurso de que os palestinos é que não desejam a paz. Lembremos do assassinato, por parte dos sionistas, do diplomata sueco Folke Bernadotte – o mesmo que libertou mais de 30 mil judeus dos campos nazistas –, escolhido como mediador da ONU para pacificar a situação em 1948. [34] Ou ainda podemos citar o assassinato do premiê israelense Yitzhak Rabin em praça pública por um sionista, que era contra o Acordo de Oslo, que daria início a um possível acordo de paz. [35]
E para quem tenta imputar a culpa aos palestinos, lembremos o que Malcolm X disse: “não confunda a reação do oprimido com a violência do opressor”.
O capitalismo, raiz de todo esse mal descrito, segue tentando apagar essas populações através do derramamento de sangue preto e palestino. Não por coincidência, o discurso que os sionistas usaram para a ocupação da Palestina é o mesmo que o militares da época da ditadura (e de onde foram paridas as polícias fascistas que seguem exterminando a população periférica) defenderam para o apagamento dos povos: uma terra sem homens para os homens sem terra.
Novamente, assim como ocorre na Palestina, os órgãos que deveriam ser responsáveis pelas investigações e punições dos assassinos seguem omissos. A ONU, cada vez mais desacreditada e fragilizada, servindo apenas como marionete do imperialismo (decadente) estadunidense/sionista, nada faz. Aqui no Brasil, instituições que deveriam zelar pela segurança e justiça, exercem o mesmo papel ultrajante. Na maior chacina que ocorreu no Rio de Janeiro, a do Jacarezinho e seus 28 mortos, em 6 de maio de 2021, dez das treze investigações do MP foram simplesmente arquivadas. [36]
Assim sendo, lutar pela causa legítima da Palestina é igualmente necessário contra o racismo estrutural impregnado na sociedade como um todo. Afinal, o terrorismo de Israel e os esquadrões da morte das polícias seguirão até quando cometendo crimes? A “carne preta” e palestina pouco importa para a comoção da sociedade? Nossa indignação ficará restrita às notas de repúdio? Aguardaremos atitude de Estados comprometidos com a burguesia? Como diz o camarada André Constantine, naturalizaremos esses “alvos matáveis”? As faixas de Gaza estão clamando por socorro, e este só virá pela organização e mobilização popular.
Assim como Ilan Pappe redefine sionismo como colonialismo, Israel como Estado de apartheid e a Nakba como limpeza étnica, proponho também a ressignificação das operações policiais nas comunidades como genocídio da população preta e polícia como capitães do mato do sistema capitalista burguês. Afinal, em ambas as situações o que se pretende é a eliminação e a desumanização dos povos.
Aos desinformados, o desconto da ignorância. Aos que agem com desonestidade intelectual e seguem apoiando tais crimes, a cumplicidade e a culpa do sangue derramado de pessoas inocentes, injustiçadas pela ação de Estados racistas.
*Luiz Fernando Leal Padulla é professor, biólogo, doutor em Etologia, mestre em Ciências e especialista em Bioecologia e Conservação. Autor do blog e do canal no Youtube “Biólogo Socialista” e do podcast “PadullaCast”. Autor do livro “Um irritante necessário”. Instagram: @BiologoSocialista.
Referências bibliográficas
- PEREIRA, F.M.; CASTRO, C.L.C. & CHEIBUB, D.L. 2019. Favela ou Comunidade? Como os moradores, guias de turismo e outros agentes sociais compreendem simbolicamente o “morro” Santa Marta (RJ)? Revista Brasileira de Estudos do Lazer – RBEL, 6(3): 23-36. Disponível em: https://shre.ink/9Ovo
- Armas e treinamento israelenses em mais uma chacina no Rio de Janeiro. Disponível em: https://shre.ink/9OR6
- ‘Teria dado um tiro na cabeça’, declara Witzel sobre esfaqueador da Lagoa. Disponível em: https://shre.ink/9ORE
- Witzel diz ao STF que “abate” de criminosos não fere a Constituição. Disponível em: https://shre.ink/9ORL
- RJ: Witzel fecha primeiro ano de governo com recorde de mortes pela polícia. Disponível em: https://shre.ink/9ORS
- ‘Atirem nos palestinos’, diz parlamentar israelense com arma nas mãos. Disponível em: https://shre.ink/9ORf
- Ben-Gvir Calls for Assassination of Thousands of Palestinians. Disponível em: https://shre.ink/9ORs
- Em 2018, Bolsonaro defendeu ‘fuzilar a petralhada’. Disponível em: https://shre.ink/9Og4
- Com agronegócio, Bolsonaro exalta armas e diz que anulou ações do MST. Disponível em: https://shre.ink/9OgO
- Com Bolsonaro, aumentou número de mortes por arma de fogo no Brasil. Disponível em: https://shre.ink/9TGg
- Flexibilização de armas na gestão Bolsonaro é responsável pela morte de mais de 6 mil pessoas. Disponível em: https://shre.ink/9TGl
- Operações policiais e violência letal no Rio de Janeiro: Os impactos da ADPF 635 na defesa da vida. Disponível em: https://shre.ink/9TSU
- FBSP – FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário brasileiro de segurança pública: 2019. [s.l.]: FBSP, 2019. Disponível em: https://shre.ink/9TSH
- FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Mortes decorrentes de intervenções policiais. Disponível em: https://shre.ink/9TSE
- GRUPO DE ESTUDOS DOS NOVOS ILEGALISMOS – Chacina Policial. Disponível em: https://shre.ink/9TSi
- A ordem é matar: 1.327 pessoas foram mortas pela polícia do RJ em 2022. Disponível em: https://shre.ink/9TSn
- Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários – ONU. Disponível em: https://shre.ink/9TSA
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- Prisioneiro palestino morre de câncer na prisão de Israel. Disponível em: https://shre.ink/9TXQ
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- 11 coisas que você deve saber sobre o cerco de Israel à Faixa de Gaza. Disponível em: https://shre.ink/9TXg
- 33. TRAPPED: The impact of 15 years of blockade on the mental health of Gaza’s children. Disponível em: https://shre.ink/9TXl
- Foi Israel, não Lehi, que matou o mediador da ONU Folke Bernadotte em 1948? Disponível em: https://shre.ink/9TfU
- Há 25 Anos, o assassinato de Yitzhak Rabin assombrava Israel. Disponível em: https://shre.ink/9Tf2
- Jacarezinho: 1 ano após 28 mortes, 10 de 13 investigações do MP foram arquivadas. Disponível em: https://shre.ink/9TfE
Favelas são os campos de concentração da atualidade. Não há dignidade em moradias precárias. Mas Lula, infelizmente, não quer desafiar nem mesmo a burguesia que controla a especulação imobiliária. Não vejo a esquerda lutar pelo barateamento da moradia, sendo o Minha Casa,Minha Vida apenas uma forma de financiamento, como era o BNH nos anos 70. Falta coragem para acabar com este tipo de abuso chamado especulação imobiliária.