Pão pra pensar
Resta saber se o pão vai sair da sua neutralidade e ser de direita ou de esquerda, assumir-se como fascista ou comunista, a favor ou contra o aquecimento global, se vai apoiar ou destruir os povos tradicionais, se vai defender agricultura orgânica ou agronegócio, liberação ou proibição da maconha e do aborto, garimpo ou floresta, polícia militar ou negros, cultura ou censura, LGBT+ ou hetero, liberação das armas ou educação.
Parece que o velho pão entrou na conhecida arena das controvérsias alimentares e na mesma simplificada polaridade que perpassa muitas decisões do nosso esquizofrênico contrato com o neoliberalismo. Seu consumo tem sofrido um impacto devido às restrições impostas pela dieta de exclusão do glúten baseada em estudos que mostram seus malefícios. Por outro lado, percebemos o crescimento do interesse de pessoas em fazer pães a base de trigo integral, a partir da fermentação biológica natural, o famoso #levainbread das redes sociais. E proliferam aulas de panifício e padarias artesanais e o feitio do pão artesanal ganha uma positividade.
Resta saber afinal se o pão vai sair da sua neutralidade e ser de direita ou de esquerda, assumir-se como fascista ou comunista, a favor ou contra o aquecimento global, se vai apoiar ou destruir os povos tradicionais, se vai defender agricultura orgânica ou agronegócio, liberação ou proibição da maconha e do aborto, garimpo ou floresta, polícia militar ou negros, cultura ou censura, LGBT+ ou hetero, liberação das armas ou educação. O pão vai ter que se posicionar a favor ou contra a privatização das empresas nacionais e das reformas previdenciária e tributária. Pela complexidade que tais escolhas implicam, melhor discutir os simbolismos dos cereais que fazem o pão.
Estudiosos da Nutrição Antroposófica consideram os cereais essenciais para a dieta humana sob as premissas de uma construção de pensamento pré-moderno que buscava relações (alimentares, nesse caso) construídas por similitude ou antagonismo de sabores, influências da natureza, formas e funções. Esse pensamento difere da construção racional que caracteriza o pensamento da ciência alimentar moderna baseada na visão energético quantitativa dos nutrientes. O antropólogo Lévi-Strauss associou tais relações mágicas a doutrina das signaturas, definida como uma capacidade humana de tecer conexões entre as coisas, as quais, do contrário, estariam separadas dentro de nomenclaturas específicas.
Influência planetária
Utilizando essa racionalidade tradicional, a Nutrição Antroposófica relaciona os cereais aos dias da semana, aos elementos, a influências planetárias e a sua distribuição harmoniosa nas diferentes regiões do planeta (não a sua origem necessariamente). Assim, sugere que segunda-feira é o dia do arroz, cereal com estreita relação com o elemento água que por sua vez sofre influência da lua (por isso, segunda-feira chama-se luenes em espanhol e lunedi em italiano) e base da alimentação do povo asiático. Espalhou-se pelo mundo como símbolo da fertilidade e capilaridade da raça amarela.
Terça-feira (martes em espanhol) é o dia da cevada e do planeta marte, cujo elemento é o ferro que representa a região da Europa Central. Quarta feira, miércoles em espanhol, é o dia das ações mercuriais que movimentam o continente africano e seu representante, o painço, cereal invisibilizado na dieta ocidental.
O centeio é o cereal da quinta-feira (jueves em espanhol), adaptado ao Norte da Europa sob as forças de Júpiter e do estanho. Sexta feira é o dia de vênus (viernes em espanhol), do mais caloroso dos metais e dos cereais, o cobre e a aveia que se relaciona as regiões polares do planeta. Sábado é o dia do nosso cereal ameríndio, o milho, uma vez colonizado e novamente fez refém, dessa vez das multinacionais dos transgênicos. É relacionado ao planeta saturno (Saturday em inglês) e ao elemento chumbo. E domingo, Sunday em inglês, é o dia do sol, do povo do Oriente Médio e do trigo, agora ameaçado pelos estudos que desconsideram sua origem e modificações sofridas.
Sete cereais
A dieta antroposófica é baseada nos sete cereais integrais, considerados como alimentos equilibrados em seu valor nutricional e essenciais para o ser humano. A abordagem também sugere que o feitio do pão pode ilustrar os diferentes momentos do desenvolvimento da humanidade sob uma domesticação/ afetação de mão dupla entre os cereais/pães e os seres humanos
Na antiga Pérsia, no século VII a.C, comia-se um tipo de pão aquoso, um mingau cozido de água e farinha, expressão de uma consciência onírica e fleumática dos antigos seguidores de Zaratustra
Os egípcios, em 2600 a. C, deram início a fermentação do pão e também foram os primeiros povos a assá-lo em um forno de barro, utilizando diferentes tipos de cereais e incorporando elementos de ar e fogo ao feitio.
Os imperadores egípcios comiam pão de trigo refinado e seus escravos judeus, pães integrais. A arqueologia veio a revelar que seus ossos mostravam a diferença de classe; ironicamente, a osteoporose aparecia entre a aristocracia egípcia que comia pão branco, enquanto os escravos mantinham esqueletos fortes.
Os judeus faziam o pão a partir do levain, um pouco da massa anterior guardada, expressando nesse ato a importância da continuidade da cultura ancestral e da consanguinidade do povo judeu a ser preservada nas gerações futuras.
Pão e fé
Os cristãos relacionam o pão ao ideário da fé cristã. Seu inspirador, famoso comunista, incompreendido como todos os outros, pregava igualdade entre os seres humanos, desprendimento dos bens terrenos e frugalidade, alteridade e empatia, e ensinou que repartir o pão é partilhar a divindade. Para um país eminentemente cristão, um dos poucos que ainda nem concebeu a básica ideia de repartir terras improdutivas para acabar com a pobreza e permitir o acesso ao pão de cada dia, o Cristianismo é uma prática, no mínimo, desafiadora.
A última ceia, a base de pão e vinho, simboliza, para uns, a última mensagem do seu convidado especial: a importância do sacrifício pelos outros. Para a racionalidade antroposófica, o banquete frugal aponta o vegetarianismo como dieta a ser adotada já que esse derradeiro ritual prescinde do peixe, sempre presente nas ceias e encontros anteriores relatados na bíblia.
Na França, entre os séculos XV-XVI, surge o fermento químico, uma forma de libertação e independência da massa anterior. Produziam-se pães que correspondiam aos diferentes graus de poder aquisitivo da população, uma individualização por classes, similar a do antigo Egito. Mais tarde, as premissas da modernidade – rapidez, padronização, industrialização e mecanização – se refletem no panifício. O pão integral, a fermentação lenta, o fazer ritualístico e o tempo alongado remetem a uma tradição a ser superada pela modernidade, pela urbanização e pelo ritmo acelerado do capitalismo.
Pão francês
Prevalece no imaginário cultural alimentar, a desqualificação e o simbolismo do pão/tortilha de milho ou do “pão preto” relacionados às empobrecidas culturas tradicionais ameríndias e ao trabalhador. Já o leve pão francês, “branco”, feito de farinha de trigo refinada, representa a elite, a superficialidade e sofisticação do período barroco francês e a importância dos deliciosos prazeres fugazes.
Segundo a Associação Brasileira de Normas Técnicas, o pão francês deve apresentar qualidades como “simetricamente ovalado com pestana, casca crocante e dourada com brilho, miolo branco e algodoado, odor suave e sabor agradável”. Bom lembrar que esse pão sedutor, como muitas elites, se mantém há muitos anos na preferência popular, apesar de ser esfarelento e pouco confiável devido ao uso de aditivos e ao baixo valor nutricional.
João Batista Natali concorda que tais exemplos permitem revelar o valor simbólico do pão. Em artigo publicado em 3 de abril de 1997, na Folha de São Paulo, o jornalista e semiólogo ressalta que o pão implica uma simbologia ligada à própria existência individual do ser humano, já que durante séculos a ideia de vida significava alimentação e o seu consumo se reduzia à satisfação de necessidades elementares como o comer – “pelo menos um pão duro”, como suplicava o falso mendigo avarento da peça de Amaral Gurgel. Seu simbolismo transpassa a linguagem religiosa católica que assumiu a dimensão sagrada do pão transubstanciado e do bento, consumido em abadias e mosteiros.
Linguagem política
E Natali mostra que o simbolismo do pão está presente também na linguagem política. A sempre atual e renovada política do pão e circo expressão criada pelo poeta Juvenal que viveu em Roma por volta do ano 100 d.C., foi usada para denunciar a política autoritária do imperador romano e a falta de consciência do povo que, mantido sem educação política, era facilmente ludibriado e preocupava-se apenas com a comida e o lazer. Farinha e futebol, numa adaptação tupiniquim atual.
O jornalista ainda relembra que em Lyon, na França revolucionária de 1793, a administração baixou um decreto proibindo a feitura de pães que correspondessem aos diferentes graus de poder aquisitivo da população; o pão de valor nutritivo mais baixo para os proletários e o outro, mais sofisticado, para os burgueses e nobres. Criava-se assim, o “pão da igualdade”, ideal não realizado.
Ainda hoje, o pão cria padeiros e empresários enquadrados ‘nos parâmetros do esnobismo’, como diz Natali. É o caso do pão Poilâne feito em padarias francesas que produzem artesanalmente pães assados no forno a lenha, manipulados com pás de madeira, feitos com farinha de trigo puríssima moída em mós de pedra, sem aditivos químicos e fermentados com fermento natural, enviados para clientes além mar, dispostos a pagar mais por esse privilégio. Um consumo de experiência para poucos.
Na mesma Paris, encontramos a padaria anarco-comunista La Conquête du Pain – nome do livro do teórico do comunismo libertário Piotr Kroptkine, A Conquista do Pão. O estabelecimento é autogerido e vende pães a preços abaixo do mercado.
Bem, diante dessa breve fala do pão, resta saber quem vencerá a luta nesse momento. O pão refinado, demonizado pelos estudos científicos controversos, feito às pressas com fermentação biológica industrial, de trigo envenenado por 382 novos agrotóxicos e aditivos químicos sintéticos e modificado geneticamente pelo interesses privatizantes da Bayer e outras multinacionais ou o pão de fermentação lenta, feito de trigo rústico e integral de origem familiar orgânica, preparado com boas intenções e lentidão atemporal, ambos incompreensíveis e inacessíveis para uma boa parte da humanidade sem pão, nem circo.
Elaine de Azevedo é doutora em Sociologia Política, professora do Depto de Ciências Sociais da Universidade Federal do Espírito Santo com pesquisa em Sociologias da Alimentação, Saúde e Meio Ambiente