Para apreender um significado
“Carta a D.” não é um livro que somente conta a história de um amor, é o registro de um significado. Um querer teorizar para si mesmo, ver de forma intelectualizada algo que o próprio autor percebeu que não poderia ser transformado em teoriaRenata Miloni
O ser humano tende a teorizar o amor para tentar explicar causas e conseqüências. Para isso, é preciso entendê-lo antes. Mas, uma vez entendido, esse amor não deve despertar necessidade alguma de ser transformado em teoria. Mais do que entender: assim que compreendido, o amor deve circular de dentro para fora e não girar em seu próprio eixo, tentando encontrar a razão de ser.
Estou aqui teorizando, com a intenção de também “explicar” que uma pessoa não percebe o amor recebido e dado somente amando e sendo amada. Para mim, foi exatamente isso que o filósofo André Gorz mostrou em seu último livro, Carta a D. (Editoras CosacNaify e Annablume, 2007), dedicado à sua esposa Dorine, com quem viveu durante 58 anos. Seu final não foi escrito, mas o mundo soube dele quando foi noticiado que o casal se suicidou em setembro de 2007. E só se entende por completo tal atitude depois de ler essa carta.
Preciso reconstituir a história do nosso amor para apreender todo o seu significado. [1]
Logo no início de Carta a D., Gorz questiona a maneira como tratou a esposa em seu primeiro livro, Le traître (1959), que exigiu do filósofo sete anos para ser escrito. O mesmo questionamento aparece mais adiante, detalhado, e demonstra um pesado arrependimento. Como se tivesse perdido aqueles sete anos e ignorado de certa forma o ininterrupto significado de Dorine em sua vida.
O capítulo deveria marcar a principal reviravolta da minha vida. Deveria mostrar como o meu amor por você ? ou melhor, a descoberta do amor com você ? por fim me levaria a querer existir; deveria mostrar como a minha relação amorosa com você iria se tornar a razão de uma conversão existencial. (grifo meu) [2]
Talvez nem quando compreendemos que certas respostas vêm somente com o amadurecimento nos damos por satisfeitos. O arrependimento é nítido, mas a forma como ele escreve sobre a esposa, o quanto a conhecia e podia discorrer sobre sua personalidade e seu caráter mostra que ela sabia que precisava ser assim. Ela me parecia ter a consciência de que, se pensar numa vida toda, sete anos foram apenas um começo. E ela não desistiria de continuar por qualquer tipo de impedimento.
Você dizia que tinha se unido a alguém que não podia viver sem escrever, e sabia que quem quer ser escritor precisa se isolar; tomar notas a qualquer hora do dia ou da noite; que seu trabalho com a linguagem continua mesmo depois de largar o lápis (…)
[…]
Amar um escritor é amar que ele escreva, dizia você. “Então escreva!” [3]
Gorz, ao descrever Dorine com naturais detalhes, por conseqüência deixa registrado de maneira própria e sincera quem ele mesmo era sem precisar recorrer ao que conquistou na vida profissional. Ele deixa bem clara uma rara honestidade intelectual e que o trabalho, assim como outras áreas de sua vida, não era resultado de quaisquer outros fatores além de sua própria capacidade. E durante o livro todo analisa fatos desses tantos aspectos e conclui, a meu ver, que tudo seria menor e sem sentido se não fosse pela sua esposa e a força que dela originava. E essa análise é o que tornou o livro tão mais especial (palavra que em momentos como este soa muito pequena) para mim.
Aos cinqüenta anos, Dorine foi diagnosticada com uma doença sem cura, a aracnoidite. Foi apenas o início dos problemas pelos quais sua saúde passaria. E ela aprendeu a lidar com eles de forma admirável, criando forças que talvez só quem passe por situações semelhantes possa saber como foi possível.
Tomava posse de si administrando suas dores por meio de antigas técnicas de autodisciplina. A capacidade de compreender o seu mal e tratá-lo lhe parecia o único meio de não ser dominada por ele e pelos especialistas que a transformariam em consumidora passiva de medicamentos. [4]
Carta a D. não é um livro que somente conta a história de um amor, é o registro de um significado. Um querer teorizar para si mesmo, ver de forma intelectualizada algo que o próprio autor percebeu que não poderia ser transformado em teoria. O livro é uma carta tão bem escrita que cada frase vale como citação (ah, o vício) de grandiosos feitos, acontecimentos, sentimentos e, um tanto mais, de como valorizar a vida e o que podemos fazer dela.
Gorz concluiu, demonstrando o que queria encontrar, que aquilo de maior importância que pôde alcançar foi esse desmedido amor, que fez dele a pessoa que tanto conquistou, aprendeu e ensinou. É um livro em homenagem a esse amor compartilhado, mas também às pessoas que os dois foram. À coragem que tiveram para não só despertarem para a vida juntos como morrer em nome dessa união.
Nós podíamos pôr quase tudo em comum exatamente porque a princípio não tínhamos quase nada. Bastava que eu consentisse em viver o que estava vivendo, em amar mais do que tudo o seu olhar, a sua voz, o seu cheiro, seus dedos afilados, o seu jeito de habitar o seu corpo, para que todo o futuro se abrisse para nós.