Para as mídias, um homem a eliminar
Independentemente da fantasia excêntrica segundo a qual as “elites dirigentes” da América do Sul seriam hostis à autocracia, as mídias anglo-saxônicas sempre consideraram Chávez um palhaço que servia apenas para provocar escândalos, arruinar a economia, sabotar as eleições e desrespeitar os direitos humanosSteve Rendall
“O chefinho venezuelano Chávez morreu”, deu como manchete de primeira página o New York Times, enquanto o Times estourava o champanhe diante da “morte de um demagogo” (6 mar.). Ao longo da noite, o canal NBC fez questão de explicar: “A expressão ‘homem forte’ precedia frequentemente seu nome, e por excelentes razões” (6 mar.). Pela manhã, a ABC World News viu o alvorecer do “primeiro dia em que o povo venezuelano deixou de viver sob o jugo de seu presidente”.
Na França, Bernard-Henri Lévy concentrou o fogo de sua crítica no “antissemitismo doentio” do ex-presidente venezuelano (Le Point, 14 mar.). Já o Prêmio Nobel de Literatura Mario Vargas Llosa o inscreveu na tradição dos caudilhos latino-americanos, “esses palhaços horripilantes com as mãos manchadas de sangue, inchados de vaidade pelo servilismo e a adulação dos que os rodeiam” (El País, 10 mar.).
Na noite da morte de Chávez, o serviço de informações da ABC World News julgou útil salientar que “muitos norte-americanos consideravam [Chávez] um ditador”, sem precisar como foi que eles formaram essa opinião. Para ter uma ideia, bastava escutar o elogio fúnebre pronunciado na rádio pública NPR por Michael Shifter, um veterano do antichavismo: “No fim das contas, era realmente um autocrata e um déspota”.
Uma das maiores reclamações dirigidas ao chefe de Estado venezuelano trata da dilapidação da renda petroleira em vãs despesas com educação, saúde ou os programas alimentares, quando todo esse belo dinheiro teria sido mais bem investido nos bolsos privados. Como ressaltou a agência Associated Press em uma nota digna de trote, as vantagens dos programas sociais venezuelanos “eram magras se comparadas aos espetaculares projetos imobiliários que os magnatas do petróleo construíram nas cidades resplandecentes do Oriente Médio, como as torres mais altas do mundo em Dubai ou os projetos que visam construir uma réplica dos museus do Louvre e Guggenheim em Abu Dhabi” (5 mar.). Por que perder tempo alimentando as pessoas quando se podem construir arranha-céus?
Em seu editorial, o Wall Street Journal reunia todas as peças da artilharia retórica utilizada por seus companheiros: Chávez não apenas foi um “petroditador clássico”, dublê de um “demagogo carismático”, mas também criou uma “combinação de palhaçada e cleptomania” que, graças a seus sucessores, vai “perdurar para além de sua morte”. O jornal diário do mundo dos negócios não menciona o desempenho do governo venezuelano em matéria de redução da pobreza, já que ele contradiz o único diagnóstico aceito pela imprensa norte-americana: “A despeito do populismo e dos subsídios governamentais, a vida na Venezuela – principalmente para os pobres – só piorou” (6 mar.).
Alguns meses antes, na rede de televisão France 2, David Pujadas tinha indicado que “80% da população [venezuelana] ainda vive no limite da pobreza” (3 out. 2012); um erro suficientemente embaraçoso para que a rede pública fosse obrigada a fazer uma retificação uma semana depois. O jornal espanhol El País não teve a mesma elegância após afirmar que as desigualdades “não tinham diminuído” ao longo da presidência de Chávez (5 out. 2012). Segundo a Comissão Econômica das Nações Unidas para a América Latina e o Caribe, a taxa de pobreza era inferior a 30% em 2010 (últimos números disponíveis). O país se tornou aquele com a menor desigualdade na região ao longo dos catorze últimos anos.
Para o New York Times, Chávez legou a seus compatriotas uma “nação amargamente dividida”, o que não é surpreendente, já que o chefe de Estado venezuelano não parou, insiste o jornal, de “ampliar as divisões da sociedade” (5 mar.). No léxico do jornalismo autorizado, a palavra “divisão” remete exclusivamente às tentativas de redistribuição das riquezas, não à guerra de classes conduzida pelos poderes econômicos.
Antidemocrático?
Chávez nunca foi poupado pelas mídias norte-americanas. Alguns dias depois de sua primeira vitória eleitoral, em 1998, o especialista em América Latina do New York Times, Larry Rohter, já se alarmava: “Com sua vitória na eleição presidencial venezuelana em 6 de dezembro, Hugo Chávez ressuscita um espectro daquilo de que as elites dirigentes da América Latina pensavam ter se livrado: o do demagogo populista e autoritário chamado caudilho” (20 dez. 1998).
Independentemente da fantasia excêntrica segundo a qual as “elites dirigentes” da América do Sul seriam hostis à autocracia, as mídias anglo-saxônicas sempre consideraram Chávez um palhaço que servia apenas para provocar escândalos, arruinar a economia, sabotar as eleições e desrespeitar os direitos humanos. Associá-lo a um tirano “profundamente antidemocrático” (Daily Beast, 7 mar. 2013) era, para elas, uma evidência. O semanário britânico The Economist pôde então, por um lado, se alarmar com uma “deriva ditatorial” na Venezuela (23 set. 2010), mesmo que Chávez sempre tenha vencido seus oponentes de modo limpo, ao longo de um processo eleitoral descrito pelo ex-presidente norte-americano Jimmy Carter como “o melhor do mundo”. E, por outro lado, se felicitar pela chegada ao poder, na Itália, de Mario Monti ao mesmo tempo que concede que ele “pilote um governo ‘tecnocrático’ do qual nenhum dos membros foi eleito” (21 jan. 2012).
Como qualquer governo, o da Venezuela é criticável em muitos aspectos. O coletivo de observação da imprensa Fairness & Accuracy in Reporting (Fair) se preocupou diversas vezes com as tentativas de censura no país, mesmo que este possua uma imprensa de oposição perfeitamente robusta. O caso da magistrada María Lourde Afiuni, jogada na prisão por ter liberado um detento privado de processo por três anos, indica que o Estado de direito venezuelano não foi poupado pelas tentações autoritárias.
É, então, saudável cobrá-lo. O problema é que as mídias ocidentais julgam a Venezuela segundo critérios que elas se recusam a aplicar a outros países. Em 2009, um estudo do Fair consagrado ao tratamento da questão dos direitos humanos nos editoriais da imprensa norte-americana mostrou quanto a visão sistematicamente negativa dada à revolução bolivariana contrastava com a indulgência mostrada no mesmo momento para com o regime colombiano.1 Se a Venezuela de Hugo Chávez podia deixar a desejar, ao menos os jornalistas, os sindicalistas e os militantes associativos não viviam sob a ameaça de terminar raptados, assassinados ou torturados, como era frequentemente o caso na Colômbia. Mas Bogotá é aliada de Washington, e o alinhamento da imprensa norte-americana com os interesses da Casa Branca não favorece um tratamento equilibrado da atualidade estrangeira.
No semanário progressista The Nation, o historiador Greg Grandin lembra que a Venezuela conta com onze prisioneiros políticos, entre os quais diversos responsáveis pelo golpe de Estado fracassado de 2002.2 Ainda assim, são onze. Não podemos ignorar, no entanto, que a repressão política e o uso da força pública diminuíram consideravelmente durante a presidência de Chávez. Segundo um relatório publicado em 2005 pela revista Latin American Perspectives, “o direito de manifestar sua discordância está cada vez mais reconhecido na Venezuela, chegando ao ponto de ser institucionalizado”.3
Dissimulação
Um dos maiores objetivos dos propagandistas ocidentais é fazer acreditar em um desastre econômico. Uma tarefa nem sempre simples na medida em que a Venezuela – se confiamos nos indicadores utilizados pelos próprios jornalistas – até que se sai bem.
Sua economia sofre claramente com uma inflação muito alta (20,1% em 2012), falta de infraestruturas e dependência excessiva de uma indústria petroleira subexplorada. No entanto, depois da greve anti-Chávez lançada em 2003 pelo patronato do petróleo, o país conheceu um índice de crescimento anual médio de 4,3% e uma redução da pobreza em quase 50%, com a taxa de pobreza extrema tendo inclusive registrado uma queda ainda mais espetacular de 70%.
Em 2012, a taxa de crescimento atingiu 5,8%, com uma taxa de desemprego de 6,4% – quer dizer, inferior em 50% ao que ela era antes da chegada de Chávez ao poder –, que poderia ser invejada pela zona do euro. Todos esses resultados foram obtidos graças a investimentos importantes na educação, na saúde e na luta contra a má nutrição. A taxa de mortalidade infantil diminuiu em 30% desde a ascensão de Chávez ao poder, e em 2005 a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) classificou a Venezuela entre os “territórios libertos do analfabetismo”. Mas isso não dissuadiu o Washington Post de fustigar “o desconforto econômico causado por Chávez” nem de acusar a revolução bolivariana de ter “arruinado um país outrora próspero” (5 jan. 2013).
Em dezembro passado, o New York Timespublicou uma reportagem sobre os problemas da vida cotidiana na Venezuela. O autor explicava que Chávez tinha unido à sua causa “uma maioria significativa da população em razão de sua personalidade excepcional, da utilização sem freios dos recursos públicos e de sua capacidade de convencer os venezuelanos de que a revolução socialista melhoraria sua existência” (13 dez. 2012). Como se um povo cujas condições de vida melhoraram efetivamente precisasse ser conduzido pela ponta do nariz para constatar esse simples fato.
Um mês depois, era a vez do site da ABC News pintar um quadro apocalíptico da Venezuela. Assinado por Stephen Keppel, chefe do serviço econômico da rede hispanofônica Univisión, a acusação se intitulava: “Os cinco meios utilizados por Hugo Chávez para destruir a economia venezuelana” (17 jan. 2013).
Por que tanta fúria para fazer a democracia bolivariana parecer uma desoladora ditadura? Por vínculo com o modelo democrático ocidental? Se fosse o caso, os jornais norte-americanos, começando pelo New York Times, não teriam aplaudido com fervor o golpe de Estado de 2002 e se preocupariam mais com a corrupção que suja o sistema eleitoral de seu próprio país. É por uma preocupação com os direitos humanos? Nessa hipótese, os jornalistas teriam consagrado boa parte dos catorze anos de presidência de Chávez para denunciar regimes muito mais condenáveis que o da Venezuela, incluindo muitos aliados dos Estados Unidos.
BOX:
No fim das contas
Crescimento anual médio
• De 1999 a 2012: 3,2%
• Em 2003 (quando da greve patronal no setor petrolífero): −10%
• De 2004 a 2012: 4,3%
Déficit público (2012):
7%
Fuga de capitais de 2003 a 2012:
US$ 150 bilhões
Desigualdade:
a Venezuela se tornou o país mais igualitário da região
Proporção de pobres
• Em 1999: 49,4%
• Em 2010: 27,8%
Proporção de indigentes
• Em 1999: 21,7%
• Em 2010: 10,7%
Taxa de escolaridade no ensino secundário
• Em 2000: 53,6%
• Em 2011: 71,1%
Aumento de investimentos na saúde de 2000 a 2010:
61%
Aumento do número de aposentados de 1998 a 2011:
72%
Principais reservas de petróleo comprovadas do mundo
Produção petrolífera
• Em 1998: 3,5 bilhões de barris por ano
• Em 2012: 2,5 bilhões de barris por ano
Porcentagem de bens de consumo importados (2012):
80%
Porcentagem de produtos alimentícios básicos importados
• Em 1998: 90%
• Em 2012: 30%
Dinheiro doado pelos Estados Unidos aos grupos de oposição
• Em 2000: US$ 230 mil
• Em 2003: US$ 10 milhões
• Em 2012: US$ 20 milhões
Eleições
• Desde 1999: 16
• Vencidas por Chávez: 15
Número de médicos por 100 mil habitantes
• Em 1996: 18
• Em 2012: 58
Steve Rendall é Membro do observatório da imprensa norte-americano Fairness & Accuracy in Reporting (Fair – www.fair.org).