Para automatizar a censura, clique aqui
Em 26 de abril, enquanto a mídia tremia de medo diante da ideia de que um bilionário libertário comprasse o Twitter, o comissário europeu para o mercado interno, Thierry Breton, julgou útil advertir Elon Musk sobre a rede social: “Qualquer empresa operando na Europa deve obedecer a nossas regras”. Que ele proclame uma evidência, que soa como um desafio, diz muito sobre os anos de impotência das autoridades europeias para regular a Big Tech.
Entre as tentativas recentes levadas a cabo sob a égide da presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, o Projeto de Lei sobre os Serviços Digitais, mais conhecido por sua sigla inglesa, DSA (Digital Serviços Act), foi objeto de um acordo político provisório em 23 de abril, entre a Comissão, o Parlamento e o Conselho da União Europeia (UE). Anunciada ao mesmo tempo que sua gêmea, a lei sobre os mercados digitais – que pretendia, por sua vez, reforçar o arsenal regulamentar europeu em matéria de concorrência –, essa iniciativa legislativa devia ilustrar a determinação da UE para contestar a onipotência das grandes plataformas dos Estados Unidos sobre o Velho Continente. Sem surpresa, a elaboração do texto foi acompanhada durante um ano e meio por uma intensa atividade de lobby em Bruxelas e nas demais capitais europeias. Com cerca de 100 milhões de euros gastos na Europa em atividades de influência em 2021,1 a indústria do digital atuou ao máximo para contrariar essas declarações de intenção, do que dá testemunho o frenesi de encontros entre os representantes do Vale do Silício, encabeçados pelo Google, e os altos funcionários e parlamentares europeus.2
O desafio era de monta: após a Regulamentação Geral sobre a Proteção dos Dados Pessoais (RGPD), de 2016, que substituía nesse domínio um texto adotado vinte anos antes, a Lei sobre os Serviços Digitais opera a reformulação da diretiva europeia sobre o comércio on-line de 2001. Ela modifica notadamente o regime de responsabilidade dos intermediários digitais – como as plataformas on-line – e suas obrigações no tocante à “moderação” dos conteúdos.
A esse respeito, a UE multiplica há alguns anos regulamentações de aparência protetora e benevolente, tanto para lutar contra a difusão de conteúdos de caráter terrorista3 como para proteger os conteúdos submetidos a direitos autorais.4 A nova Lei sobre os Serviços Digitais visa a uma melhor harmonização do direito europeu nesse domínio, notadamente por meio de obrigações mais estritas para garantir a retirada de conteúdos considerados ilícitos e a imposição de sanções financeiras em caso de não cumprimento (até 6% da cifra de negócios mundial da empresa infratora).
A lei sem dúvida introduz evoluções salutares, em especial no tocante à transparência dos algoritmos ou à luta contra a utilização de dados sensíveis para fins publicitários. Ainda assim, tais progressos permanecem limitados em relação às ambições originais da Comissão Europeia. Louvado pela mídia francesa como uma ferramenta “que permite lutar melhor contra os desvios da web, como os discursos de ódio, a desinformação ou o plágio” (LeMonde.fr, 23 abr.), capaz de “regular o faroeste das plataformas on-line” (Francetvinfo.fr; 23 abr.), esse texto ameaça o direito à liberdade de expressão e o acesso à informação on-line no continente europeu.
Para começar, ele preserva em larga medida o sacrossanto princípio da autorregulação dos gigantes do universo digital. Assim, a despeito das novas regras, as empresas privadas permanecem as únicas a decidir quanto à remoção de conteúdos on-line. Percebe-se o paradoxo de instituições europeias legislando em nome da salvaguarda do espaço público enquanto subcontratam no privado a aplicação da lei.5 Essa privatização do controle da liberdade de expressão se inspira largamente na abordagem seguida pelo código de conduta europeu visando combater os discursos de ódio, um arranjo “privado” sustentado pela Comissão Europeia desde 2016: Twitter, YouTube e consortes se comprometeram a limpar eles próprios suas plataformas. A censura privada que tal arranjo implica destaca-se por seu caráter arbitrário e não democrático, por meio do qual intermediários se encarregam do controle da expressão em nome das autoridades, o mais das vezes sobre a base de suas próprias condições gerais de utilização, as quais com frequência não respeitam os direitos fundamentais dos cidadãos europeus.
“Assinaladores de confiança”
No entanto, a Lei sobre os Serviços Digitais comporta igualmente diversas novidades. Ela cria, por exemplo, o estatuto de “assinaladores de confiança”, encarregados de apontar conteúdos ilícitos. Quem pode reivindicar tal estatuto? Grupos da sociedade civil, especializados, por exemplo, em questões de desinformação, mas também autoridades repressoras estatais, cujas demandas de remoção reclamam um atendimento sem demora pelas plataformas. Pode-se imaginar sem esforço a inquietação de grupos de oposição em uma época em que governos liberais e autoritários qualificam como fake news os discursos que contradizem sua visão de mundo… Para garantir a boa execução das operações, todo fornecedor de serviços digitais deverá indicar um representante legal no seio da UE, tido como responsável em caso de não cumprimento.
Quais conteúdos se encontram a partir de agora regidos por essa regulamentação? Depois de ásperas negociações, o legislador visou a mensagens consideradas ilícitas tanto no direito nacional como no direito europeu. Ora, os Estados-membros mostram a esse respeito divergências significativas: o direito húngaro proíbe certas palavras e símbolos “comunistas” ou LGBTQIA+ que não representam problema no resto da UE. Portanto, a lei reconhece indiretamente essas normas.6 Certos atores querem ir mais longe e submeter à lei não apenas os conteúdos ilícitos, mas igualmente conteúdos “prejudiciais”, como as notícias falsas e a desinformação, e até mesmo “expressões radicais”, a exemplo de uma proposta do governo francês que havia passado despercebida até o momento.7
A questão da liberdade da mídia se coloca, portanto, com acuidade: a imprensa, supostamente independente, terá de se curvar a um regulamento concebido para plataformas comerciais como o Facebook? Os editores e alguns parlamentares pretendiam isentar a mídia tradicional das regras fixadas em lei, para não submeter a atividade jornalística ao controle direto das plataformas. Mas a Comissão Europeia e o governo francês torpedearam essa iniciativa em nome da necessidade de tirar do ar determinados órgãos estrangeiros da mídia. Esse texto legitima assim uma forma de censura extrajudiciária da internet sob o controle de autoridades europeias e nacionais.
No contexto da invasão russa da Ucrânia, os legisladores europeus introduziram ainda um novo mecanismo de reação às crises. Em situações ditas excepcionais, o texto autoriza medidas revogadoras do direito de expressão em nome da luta contra a manipulação da informação on-line. Trata-se notadamente de preencher o vazio jurídico que a União Europeia encarou durante a proibição, controversa juridicamente,8 da difusão dos órgãos russos de mídia RT e Sputnik na internet.
Em um quadro mais geral, uma contradição fundamental atravessa essa nova lei. Enquanto ela mantém a proibição de princípio de uma vigilância generalizada dos conteúdos pelas Big Techs (já instituída pela diretiva sobre o comércio on-line de 2001), suas disposições encorajam, e até impõem, a montagem de sistemas de filtragem automatizada sobre o conjunto das plataformas digitais.
Com efeito, a Lei sobre os Serviços Digitais foi concebida “sob medida” para as grandes empresas tecnológicas. Nacionais ou europeus, os negociadores sempre tiveram como referencial as mais importantes plataformas, como Facebook e YouTube. Ao obrigar sob pena de sanções todo serviço digital a prevenir a presença em seus servidores de conteúdos ilícitos – e portanto, concretamente, a vigiar as comunicações –, o texto beneficia diretamente os gigantes que já dispõem de técnicas de reconhecimento automatizado de conteúdos. Sua aplicação agravará provavelmente as assimetrias de poder e de recursos entre grandes e pequenos atores que essa regulação pretendia combater.
Se reforça a automatização da “censura”, a lei evita qualquer questionamento frontal do modelo econômico dessas grandes plataformas. “Com o #DSA, a época em que as grandes plataformas on-line se comportavam como se fossem ‘grandes demais para se preocupar’ chega ao fim”, proclamou o comissário europeu Thierry Breton sobre o Twitter (23 abr. 2022). Mas, na prática, a Comissão escolheu atenuar os efeitos e não suprimir as causas. Em vez de promover um modelo livre e descentralizado, como o das plataformas Matrix ou Mastodon, a lei louvada por Breton aceita provisoriamente a governança algorítmica inicialmente desenvolvida pelos gigantes tecnológicos dos Estados Unidos para impô-la progressivamente a todos.
O efeito Bruxelas
Desde 2016, a aceleração legislativa em torno das políticas digitais no seio da União Europeia sugere o despontar de um novo modelo europeu de regulação. Se as normas da UE pretendem se distanciar das abordagens norte-americanas e chinesas, na realidade retomam os fundamentos destas: fascínio pelo gigantismo e busca da competitividade digital de um lado; automatização e privatização do controle da expressão pública do outro. Após a adoção em 2016 da RGPD, surgiram diversas propostas destinadas a colocar os marcos de um quadro regulamentar harmonizado e favorável aos interesses europeus. Entre elas estão a lei sobre a governança de dados, adotada pelo Parlamento Europeu em 6 de abril para favorecer o acesso das empresas a estes, e o recente projeto de lei sobre a inteligência artificial (IA), encaminhado em abril de 2021.
Com essa proliferação de iniciativas, a Comissão Europeia pretende agir em escala mundial, graças ao famoso “efeito Bruxelas”.9 A expressão, criada pela jurista Anu Bradford, descreve o poder normativo da UE, cujas regras tendem a se espalhar como mancha de óleo – um exemplo é a adoção de legislações nacionais referentes à proteção de dados por diversos países, com base no modelo da RGPD. Adotada em 2017, a lei alemã NetzDG sobre conteúdos de ódio on-line já foi parcialmente retomada por uma dezena de países, entre os quais Honduras, Vietnã e Belarus.10 Será esse o caso da nova Lei sobre os Serviços Digitais, num momento em que várias grandes potências como China, Índia e Estados Unidos inscreveram a reforma de seu arsenal legislativo visando ao setor digital na lista de suas prioridades? Em caso contrário, o efeito bumerangue, em vez do “efeito Bruxelas”, se fará sentir: à medida que outras potências regularem seus setores digitais, as obrigações inicialmente destinadas aos gigantes norte-americanos golpearão em primeiro lugar os atores europeus.
*Clément Perarnaud é pesquisador associado à Escola de Governança de Bruxelas – VUB (Bélgica).
1 “The lobby network: Big Tech’s web of influence in the EU” [A rede de lobby: a rede de influência da Big Tech na UE], Corporate Europe Observatory, Bruxelas, 31 ago. 2021. Disponível em: https://corporateeurope.org.
2 “Big Tech brings out the big guns in fight for future of EU tech regulation” [Big Tech exibe a artilharia pesada na luta pelo futuro da regulação tecnológica na UE], Corporate Europe Observatory, Bruxelas, 11 dez. 2020. Disponível em: https://corporateeurope.org.
3 Regulamento (UE) n. 2.021/784 do Parlamento Europeu e do Conselho de 29 de abril de 2021 relativo à luta contra a difusão on-line de conteúdos de caráter terrorista.
4 Diretiva (UE) n. 2.019/790 do Parlamento Europeu e do Conselho de 17 de abril de 2019 sobre o direito autoral e os direitos vizinhos no mercado único digital e modificando as diretivas n. 96/9/CE e n. 2.001/29/CE.
5 Ler Félix Tréguer, “Les deux visages de la censure” [As duas faces da censura], Le Monde Diplomatique, jul. 2020.
6 “EU: Put Fundamental Rights at Top of Digital Regulation” [UE: colocar os direitos fundamentais no topo da regulação digital], Human Rights Watch, Bruxelas, 7 jan. 2022. Disponível em: www.hrw.org.
7 “EU: Free speech under attack: French Presidency proposes action against ‘radical rhetoric’” [UE: liberdade de expressão sob ataque: a presidência francesa propõe ação contra a “retórica radical”] StateWatch, 24 mar. 2022. Disponível em: www.statewatch.org.
8 “The European Union’s RT and Sputnik Ban: Necessary and Proportionate?” [O banimento de RT e Sputnik na União Europeia: medida necessária e proporcional?], DSA Observatory, Amsterdã, 22 abr. 2022. Disponível em: https://dsa-observatory.eu.
9 Anu Bradford, The Brussels effect: How the European Union rules the world [O efeito Bruxelas: como a União Europeia governa o mundo], Oxford University Press, 2020.
10 Jacob Mchangama e Natalie Alkiviadou, “The digital Berlin Wall: how Germany (accidentally) created a prototype for global online censorship – Act two” [O Muro de Berlim digital: como a Alemanha criou (acidentalmente) um protótipo para a censura on-line global – Ato dois], Justitia, Copenhague, set. 2020. Disponível em: https://futurefreespeech.com.