Para derrubar este sistema Vampiro
Para Karl Marx, “o capital é trabalho morto, o qual, como um vampiro, vive apenas para sugar o trabalho vivo”. Mikail Bakunin dizia que “vampiros da história, sempre se nutriram de sangue humano”. Hoje, não por acaso, são dezenas de charges que assemelham o presidente não eleito Michel Temer ao monstro sugador de sangue.
Na Conferência Internacional dos Partidos e Organizações Marxistas-Leninistas realizada em Portugal no ano de 2013, o militante búlgaro Simbad Mirinari apresentou um poema em que uma figura mitológica do imaginário europeu aparece duas vezes:
Na praça para o 1° de maio – eu apareci
“ousar mais!”
Para derrubar este sistema vampiro,…
A guerra vai continuar, mesmo sem mim,
Por um mundo novo, sem vampiros sem alma,
Por isso eu digo: VIVA A REVOLUÇÃO! [1]
Trata-se do vampiro. Por que tal personagem tornou-se um lugar comum nos discursos dos movimentos revolucionários? Defendemos a hipótese de que tal questão é uma estratégia argumentativa desenvolvida na eloquência das esquerdas. Utilizando-se dos saberes e valores socialmente compartilhados, edificam uma retórica que visa promover a adesão por meio das emoções (ojeriza, raiva, injustiça etc.) que tal imagem macabra pode despertar.
A lenda que se tornou tópica
Este texto é vítima de seu próprio tempo. Por um lado, vivemos em um momento em que os vampiros ocupam um grande espaço na indústria cultural e, por outro, presenciamos a irrupção da retórica como objeto de poder nas ciências sociais.
Entendendo a retórica como a busca dos meios adequados para chegar-se à persuasão, debruçaremo-nos em um ponto específico dessa arte: o topos. Logo no início dos Tópicos, Aristóteles apresenta as razões de se refletir sobre o tema, e define topos como “proposições geralmente aceitas”, que permitem “defender um argumento sem nada dizermos de contraditório”[2]. São lugares-comuns que formam “imagens em ação” que, para Cícero, podem ser “percorridas com rapidez e penetrar com força na mente” [3].
Após a comuna de Paris, o patrão deixou de ser visto como pai e uma série de termos emprestados ao bestiário passou a exprime sua imagem, “saguessugas, chacais, piolhos”. “Como um vampiro o patronato suga o sangue do povo até a medula, até a morte”[4]. É exatamente o uso de tal monstruosidade na eloquência das esquerdas, com o intuito de depreciar a ação desumana do capital, que iremos observar no presente texto.
O vampiro explorador
O vampiro é uma monstruosidade imaginária herdada de tempos medievais e incorporada à literatura ocidental. Sabe-se que pessoas eram desenterradas de seus túmulos suspeitas de vampirismo. Suas cabeças eram cortadas e estacas de madeira eram encravadas no coração destes desgraçados, excluídos do mundo dos mortos e do mundo dos vivos. Achados arqueológicos e fontes escritas comprovam a existência destas práticas, principalmente na Europa oriental.
No mundo político ele aparece no século XVIII. “Desde 1741, o termo ‘vampiro’ assume na Inglaterra o sentido de ‘tirano que suga a vida de seu povo’, e Voltaire, depois, afirma que ‘os verdadeiros vampiros são os monges, que comem à custa dos reis e dos povos’” [5] , explica o historiador Claude Lecouteux. Aqui começa a história do vampiro nas linguagens políticas, e é exatamente através desta noção de parasita e de explorador das massas populares, retratando o conflito burguês/proletário, que a criatura sedenta por sangue irá aparecer na retórica das esquerdas.
Em Karl Marx, encontramos o personagem mitológico quando o filósofo afirma que “o capital é trabalho morto, o qual, como um vampiro, vive apenas para sugar o trabalho vivo, e quanto mais sobreviver, mais trabalho sugará” [6]. No 18 Brumário de Luís Bonaparte destaca que “a ordem burguesa, que no princípio do século pôs o Estado para montar guarda sobre a recém-criada pequena propriedade e premiou-a com lauréis, tornou-se um vampiro que suga seu sangue e sua medula, atirando-o no caldeirão alquimista do capital” [7]. Em outra situação, tratando das horas prolongadas do trabalho, Marx resgata a imagem vampiresca do burguês: “O prolongamento da jornada de trabalho além dos limites do dia natural, adentrando a madrugada, funciona apenas como um paliativo, pois não faz mais abrandar a sede vampírica do sangue vivo do trabalho” [8].
Cícero refuta a ideia de que a figura de retórica seja ornamento [9]. Assim, o vampiro, na atividade retórica das esquerdas, entre metáforas e analogias, não é um mero enfeite no discurso, pelo contrário, possui uma função de extrema importância.
Marx usa o termo “vampiro”, para estabelecer uma ligação simbólica entre a exploração da classe operária com a classe que a oprime. Mostrando que a aprovação da Lei das Dez Horas foi uma grande vitória da “economia política da classe operária”, diz que é necessário ainda mais para combater a “indústria britânica que, qual vampiro, não podia viver senão de chupar sangue, e ainda por cima sangue de crianças”. Marx dramatiza ainda mais o seu discurso comparando a misteriosa religião de Moloch, que só sacrificava crianças uma vez por ano em rituais solenes e que “não tinha uma propensão exclusiva para os filhos dos pobres”, [10] com a máquina capitalista.
Friedrich Engels faz referência à figura vampiresca quando trata da exploração do proprietário na civilização ateniense. Quando a dívida atinge um alto nível, o camponês é forçado a vender seu filho para o mercado de escravos estrangeiro: “E, se, ainda assim, o vampiro não se saciasse, podia vender como escravo seu próprio devedor. Essa foi a aurora da formosa civilização do povo ateniense”. [11] Onde houver a exploração do homem pelo homem (atividade que se intensifica com o capitalismo), a figura do vampiro será acionada.
Considerado por muitos o pai do anarquismo, Joseph Proudhon denunciava as mazelas que a propriedade trouxe para a sociedade. “O proprietário conserva-se estranho à ação social: mas qual um vampiro, os olhos fixos na presa, está pronto a saltar sobre ela e a devorá-la”.
No clássico Entre Camponeses de Errico Malatesta, Tiago tem medo de conversar com Pedro por este ter ideias revolucionárias as quais a polícia, os patrões e a Igreja condenam. Na verdade, diz Pedro, são “eles que gostariam de sugar até a última gota de nosso sangue e tratam-nos, em seguida, de canalhas e de fora-da-lei se tentamos melhorar o nosso destino e buscamos nos subtrair de sua tirania”.[12] O vocábulo “vampiro” não foi utilizado, mas a principal prática que o caracteriza é inequívoca.
O saber científico também é visto por meio de tal ícone tenebroso nos escritos anarquista de Piotr Kropotkin. Critica os famosos darwinistas sociais por trazerem a teoria do conflito pela sobrevivência para o mundo humano. “Estes acabaram por conceber o mundo animal como um mundo de perpétua luta entre indivíduos semifamintos e sedentos do sangue uns dos outros”. [13] Em sua perspectiva anarquista, Kropotkin entende que o progresso humano se encontra mais pela “ajuda mútua” entre os indivíduos que pelo conflito.
Através do vigoroso materialismo de seu tempo, aspecto que até mesmo Malatesta irá enfatizar em um discurso em sua homenagem, Mikail Bakunin diz que as abstrações levam os povos a sacrifícios em prol de uma minoria exploradora, “vampiros da história, sempre se nutriram de sangue humano”.[14] É entre os próprios operários, ludibriados pela magia das abstrações religiosas dos teólogos, que se encontram as causas da dominação.
O vampiro na atividade discursiva dos anarquistas atravessa o Atlântico e chega ao Brasil. Maria Lacerda de Moura (1887-1945), escritora, professora e militante do movimento operário no Brasil no início do século XX, faz seus apontamentos sobre a luta de classe na sociedade capitalista: “Não podemos compactuar com o canibalismo desta sociedade de vampiros a sugar todo esforço humano e cuja preocupação absorvente é inventar meios e policiais de repressão a coragem heróica da resistência”. [15]
Em outra situação, o imigrante português Albino Moreira Dias, militante anarquista e sindicalista, manifesta-se no jornal A Voz do Trabalhador, dizendo que os operários “precisam se organizar para defender o seu caráter e a sua dignidade rebaixados ao último extremo pelos vampiros que lhes chupam o sangue dia e noite”. [16] Temos o antigo monstro que habitou a mentalidade europeia por séculos, sendo usado para denominar os grupos que revitalizam a profusão do capital.
Lenin resgata a figura do vampiro ao criticar o filósofo Kautsky, pois no momento em que os operários começam a construir um Estado proletário, “no fogo da guerra civil, a esboçar os princípios fundamentais dum Estado sem exploradores, então todos os canalhas da burguesia, todo o bando de vampiros, com o seu acólito Kautsky, clamam contra a ‘arbitrariedade’”. [17]
Enquanto a Rússia passava pelo seu processo revolucionário, Rosa Luxemburgo, em conferência a 17 de dezembro de 1918, discorre sobre o dilema “ou Assembleia Nacional ou todo poder aos Conselhos de Trabalhadores e Soldados”. Mostra sua posição ao lado dos Conselhos e destaca a importância de Marx para compreendermos a ordem burguesa que se instalou em âmbito mundial que, “tal qual um vampiro, mantém sua vida sugando o sangue proletariado”. [18]
Considerações Finais
Hoje, embora muito mais uma figura charmosa que temerária, muito mais objeto de desejo que de repulsa, a imagem dos vampiros, vira e mexe, ainda se mistura a de políticos corruptos coadunados ao mercado. São dezenas de charges que assemelham o presidente não eleito Michel Temer, com suas privatizações e reformas impopulares, ao monstro sugador de sangue. A escola de samba Tuiuti, que ganhou o segundo lugar no Carnaval deste ano, desfilou no topo do último carro alegórico com o “vampiro neoliberalista”. Não podemos negar que entre as diversas metáforas que dão pompa aos ideais das esquerdas, o vampiro tem presença marcante nas relações entre capital e trabalho.
A criatura aparece na eloquência revolucionária despertando uma aversão, talvez até mesmo ódio, ao capitalismo. Como mostra o semiolinguísta Patrick Charaudeau: a compaixão ou o ódio não são resultados de uma simples pulsão, mas se constroem pela representação que se tem do objeto.[19] O objeto em nosso caso seria direta ou indiretamente o capital que recebe um teor macabro para suscitar nos ouvintes a raiva que, rompendo o medo, seja capaz de fomentar a luta pela transformação social. Ter o sangue derramado no combate é mais glorioso que tê-lo sugado pelo monstro do capital. As mentalidades remetem “às formas de resistências”, dizia Michel Vovelle. [20] As esquerdas não podem esquecer-se apreender o que as pessoas temem e o que as alegram para assim evocar a vontade, a paixão de lutar por um mundo mais justo.
Raphael Silva Fagundes, Doutor do Programa de Pós-Graduação em História Política da UERJ. Professor da rede municipal do Rio de Janeiro e de Itaguaí.