Para onde vai Cuba?
Dois dilemas se colocam para a revolução que assaltou a oligarquia, mas também os dogmas revolucionários: até que ponto a mercantilização das relações sociais será compatível com a preservação do ideário revolucionário? O Estado será capaz de disciplinar o capital internacional em defesa da nação na periferia mundial, em pleno século XXI?
1.
Cuba atravessa o maior debate público em 57 anos de revolução. Quem cultua a ideologia totalitária de um país estático em meio a uma sociedade silenciada e apática não tem ideia do que se passa na ilha.
Rafael Hernández, intelectual à frente da Revista Temas, um dos espaços críticos de maior vitalidade no país, enumerou as principais pautas em discussão: 1) o problema da desigualdade, que quadriplicou em 25 anos, em paralelo ao tema do crescimento: seria a desigualdade um custo a pagar pelo crescimento? 2) supercentralização versus controle: como descentralizar sem perder o controle, ou como gerar novas formas de controle? O debate cubano não é pautado pela ideologia do Estado mínimo, pois prevalece a percepção de que o Estado tem um papel social fundamental, e a sua extinção é impossível enquanto houver potências capitalistas; 3) o espaço do setor não estatal, tanto privado como cooperativo. Há diferentes visões sobre como dinamizar e democratizar a economia; 4) modificar o que Raul Castro descreve como “velha mentalidade”, associada aos vícios políticos e culturais herdados da influência soviética. Há um paradoxo, na medida em que os responsáveis pela reforma perderão poder; 5) o papel da lei: há um descompasso entre as mudanças em curso e a lei vigente, que demora a modificar-se.1
Duas questões centrais atravessam esses debates, e se relacionam: a reforma econômica e a democratização da política. Há consenso entre os cubanos sobre a necessidade de ambas, mas há diferentes formas de interpretá-las. No fundo da discussão, se defrontam duas vias: a pretensão de subordinar meios capitalistas a fins socialistas, versus uma democratização em todas as dimensões, que incluem as relações de produção. Enquanto uns sugerem que “O desenvolvimento radica no desenvolvimento empresarial”,2 outros perguntam: “se não estamos prontos para autogestionarnos, quando estaremos?”.3
É provável que as contradições em aberto – os “fios soltos”, no dizer de Valdés Paz4 – aflorem e se encaminhem em uma reforma constitucional anunciada pelo governo, que pode ocorrer ainda em 2017. Não há clareza sobre como se dará o processo, nem sobre o conteúdo e o alcance da reforma. Mas é certa a sua premência, já que muitas das “atualizações” em curso são, na prática, anticonstitucionais. Cogita-se que será necessário, afinal, produzir uma nova constituição.5
A nova etapa será selada com a aposentadoria de Raul Castro, que anunciou que não se reelegerá à presidência do Conselho de Estado quando seu mandato expirar em fevereiro de 2018. O primeiro vice-presidente Miguel Diaz-Canel, que nasceu depois do triunfo revolucionário (no ano seguinte), é o mais cotado para o posto.
2.
Os dilemas do presente mergulham a ilha em intensa introspecção, que enseja reflexões sobre a totalidade do processo revolucionário. Em particular, questiona-se até que ponto a revolução cubana construiu o sujeito de uma sociedade emancipada, o que exige reexaminar a influência soviética.
Quando Piñeiro pergunta “se não agora, quando estaremos prontos para a autogestão?”, é preciso recordar que, nos anos iniciais da revolução, certamente não estavam: a maioria absoluta dos trabalhadores rurais optou por servir a uma fazenda estatal em lugar de constituir uma cooperativa. O legado da escravidão e da monocultura açucareira não favorece a autogestão. Portanto, uma cultura nesta direção precisaria ser forjada.
No desafio de superar as relações hierárquicas de produção, os impasses econômicos e políticos da revolução se encontram. Pois a despeito do alto nível de escolaridade e da notável cultura política do cidadão comum, que impressiona a qualquer visitante à ilha, há uma avaliação generalizada de que prevalecem limites para a formação de um sujeito emancipado.
O educador Ariel Dacal recorda que a educação cubana alcançou níveis de excelência atestados rotineiramente pela Unesco, mas sempre nos moldes do que Paulo Freire chamou como “educação bancária”. Na sua visão, é uma sociedade altamente informada, mas que tem restritas capacidades de produzir política a partir dessa informação.6 Esse é um problema para aqueles que consideram imprescindível contrarrestar a crescente pressão mercantil, com o engajamento crítico em defesa dos valores revolucionários.
A pesada mão da influência soviética inibiu a realização revolucionária nessa direção. O burocratismo na economia militou contra o trabalho livre, o dogmatismo na política contra o poder popular, e o realismo cultural contra a originalidade criadora. Ainda que se admita a aproximação com os soviéticos como uma necessidade, a justificação desses traços em função do imperativo da unidade é discutível. Considerando-se a escassa ingerência da superpotência em assuntos internos da ilha, o mais provável é que a opção traduzisse uma crença genuína nos méritos do padrão soviético.
3.
Ao gravitar para o campo soviético e adotar práticas políticas e culturais a ele associado, a revolução cubana aprofundou a aposta em um caminho referido ao desenvolvimento das forças produtivas. Para fazer uma analogia, apostou em se destacar nos Jogos Olímpicos e teve sucesso neste caminho: durante seguidas edições, amealhou mais medalhas que a América Latina somada. Mas com isso, reforçou a lógica do esporte competitivo de alto rendimento, alinhada segundo critérios nacionais – a despeito de preservar o caráter amador da prática esportiva, também em revisão na atualidade.
O “seguidismo” soviético envolveu a opção por um determinado padrão civilizatório, referido à noção de desenvolvimento. Essa opção teve como decorrência, necessária ou não, políticas antitéticas à autogestão econômica, à formação crítica e à liberdade criativa. No conjunto, foram fatores conservadores que limitaram a realização do ideal humanístico da revolução: o “hombre natural” de Martí, ou o “homem novo” de Che Guevara.
É possível cogitar que os avanços materiais dos anos 1970 ampliaram a margem de manobra futura. O ex-ministro Rodríguez considera que a revolução não resistiria ao impacto do período especial sem a prosperidade dos anos anteriores.7 Porém, esse é um raciocínio questionável, como toda contra-factualidade na história: é possível argumentar que, sem a inserção na órbita soviética, o impacto do seu colapso seria outro. Ou na realidade, sequer haveria período especial. É impossível especular sobre o que teria sido Cuba sem seu atrelamento à órbita soviética, que só se consumou passada uma década do triunfo revolucionário.
O certo é que essa via também condicionou as opções políticas futuras, na medida em que a revolução dos valores, que ampliaria o campo das alternativas, inclusive econômicas, se viu limitada pelo truncamento da radicalização democrática e cultural. É provável que o próprio campo de alternativas teóricas e políticas considerado pela liderança revolucionária – a “máxima consciência possível” na expressão de Lukács – tenha se estreitado. Há nexos objetivos e subjetivos entre a necessidade de aproximação com os soviéticos no passado e a necessidade de abertura mercantil no presente.
Em última análise, o raciocínio da necessária aproximação com os soviéticos implica reconhecer a impossibilidade do socialismo na periferia, sem amparo internacional. Sob essa perspectiva, os limites da revolução cubana estão inscritos nas contradições da experiência soviética. Esse enfoque se justifica no plano da realização material do comunismo, que supõe a revolução mundial. Mas do ponto de vista político, a própria trajetória cubana desafia essa leitura, passado um quarto de século do colapso soviético.
A alternativa às limitações econômicas é radicalizar o lastro político, o que enseja um padrão civilizatório alternativo ao capitalismo, mas também ao comunismo. Isso porque o socialismo primitivo8 enfrenta a desigualdade em condições em que a igualdade na abundância é impossível. Essa disjuntiva se evidencia no presente: diante dos entraves para sustentar-se materialmente; do isolamento político mundial; da avassaladora indústria do entretenimento, da sedução consumista e das modernidades do mundo digital; restaria ao socialismo primitivo fundar-se em valores radicalmente diversos, para além da igualdade e da soberania. Sua salvaguarda seria a unidade popular em torno de um projeto de nação assentado na igualdade substantiva, permitindo a fruição de um conjunto de valores alternativos à sedução do consumo: a igualdade, a participação e a liberdade.
Rechaçar essa possibilidade histórica equivale a resignar-se a uma modalidade de “socialismo dependente”, subestimando a radicalidade humanista implícita ao marxismo, em que a realização da existência transcende em muito as motivações econômicas.
4.
O processo cubano teve limites para superar a alienação do trabalho e da política e, como decorrência, para gerar uma cultura emancipadora. É certo que tudo depende da régua com que se mede: Cuba é uma sociedade mais democrática, autoconsciente e culta do que qualquer Estado burguês.
É também mais humana: os cubanos têm escassa vivência sobre o que seja violência policial; briga de torcidas; o telemarketing te ligando; uma gravação eletrônica te atendendo; decorar senhas; porta giratória; catraca; publicidade nas ruas, televisão, jornais, revistas, cinemas; marketing eleitoral; parlamento como um balcão de negócios; cartório; crime organizado; segurança privada; chacina; presídios superlotados; ensino como negócio; saúde como negócio; previdência como negócio; cultura como negócio; cinema caro; ballet caro; livro caro; transporte público caro; remédio caro; vestibular; fast-food; despejo; criança que trabalha; criança fora da escola; mãe que não tem onde deixar criança para trabalhar; casar é fácil e grátis, divorciar também; analfabetismo; big brother; radar de trânsito; trânsito; shopping center; loteria; bingo; culto (embora cresça o neopentecostalismo); pornografia; fome; desemprego; abandono na infância; abandono na velhice. Em suma, o cubano tem pouca familiaridade com a experiência do desamparo.
É evidente que há muitos problemas e dificuldades: ônibus insuficientes e lotados, baixos salários, trabalhos muito aquém das capacidades, filas, pouca variedade de produtos, escassez eventual, cortes de energia, casas caindo, processos morosos, funcionários arbitrários ou descomprometidos, imprensa chata, internet precária… Uma lista que seria alongada por qualquer cubano.
Alguns desses problemas são iguais em outras partes. Outros são diferentes, mas não necessariamente piores. Os cubanos se queixam da burocracia do Estado, mas não têm ideia do que é ser atendido por uma voz eletrônica, baixar um formulário na internet, pagar uma taxa, voltar outro dia e não ser atendido. Em Cuba, as pessoas ainda falam com pessoas.
Subsistem o racismo e o machismo. Mas muitos negros são médicos, dirigentes e professores, enquanto as mulheres são maioria nas universidades e em setores como saúde, ciência e cultura. Também se fala da ineficiência do Estado. Mas é um Estado que alimenta, veste, educa, cuida, defende e dá cultura para toda a sua população. A ineficiência depende do ponto de vista.
Medida na régua do capitalismo contemporâneo, Cuba é uma espécie de reserva ecológica de valores humanos que o mundo se empenha em desnaturalizar: “para nós, você não é um estrangeiro, é um ser humano”, ouviu colega brasileiro, inseguro se receberia atendimento médico na ilha. “Os médicos cubanos são os melhores do mundo, porque são os mais carinhosos”, emendou um pai.
Porém, o desafio de sustentar o socialismo primitivo em um século XXI muito primitivo e pouco socialista exigiria uma radicalização democrática da economia e da política, enraizada em uma elevação da consciência crítica e da criatividade da sua população, o que não foi semeado sob a órbita soviética. Quando a direção revolucionária iniciou a autocrítica em meados dos anos 1980, temeu-se que os desafios colocados pelo período especial em meio ao colapso do socialismo real, tornariam a radicalização democrática uma empresa arriscada. Naquele contexto, a coesão nacional sobreviveu como um valor porque o povo entendeu o que acontecia, e incorporou a adversidade como sua.
5.
A situação atual é ambígua, porque a mudança também sopra por ventos mercantis. Como expressão desta ambivalência na relação com o Estado, os cubanos querem mudar, mas preservando as conquistas; apostam no mercado, mas regulamentado; atraem capital internacional, mas defendem a soberania.
Há um componente de conformismo, mas também há consciência crítica nesta ambivalência. Para fazer uma analogia: o cubano é casado com uma panela velha, que faz comida boa. Olha a sedução loira em Miami e mantem a cabeça no lugar: sabe que não são elas que lhe esperam no divórcio. Provavelmente, ficaria só na multidão, que lhe aplaudiria a normalidade. E como o cubano da revolução teme o desamparo, segura o casamento.
Mas como não se realiza no casamento, cogita os prazeres interditados. Mais significativo, considera que pode ser feliz em outra relação, já não tão estável, mas que lhe mobilize. Daí a ambivalência.
No recente filme Ya no es antes, um cubano divorciado recebe a visita do seu amor de juventude, há décadas vivendo nos Estados Unidos. A mulher se mostra fútil e volúvel – uma histérica, na acepção psicanalítica do termo. Mas confrontado com a solidão, ele se ajoelha diante dela ao final.9 Difícil que essa mulher cozinhe cubano, ou que a relação seja suave – mas não morrerão de fome nem de tédio. E o filme foi eleito o preferido do público no festival de Havana de 2016.
Por fim, a ambiguidade existe porque a vida não é somente difícil, mas às vezes carece de sentido. Se o consumo preenche os vazios existenciais no capitalismo, o antídoto socialista é prover vias de realização existencial, esvaziando de sentido o consumismo.
Em Cuba, avançou-se muito nesta direção: forjou-se uma cultura em que ninguém se orgulhava de bens materiais, mas sim porque exerceu a solidariedade em Angola. É uma revolução em que se perdeu o respeito pela riqueza, pela propriedade privada e pelo imperialismo. Talvez não sejam os revolucionários “movidos por um profundo sentimento de amor” idealizados pelo Che, mas todos têm dentes saudáveis: ao menos já têm a dentadura do homem novo, como disse Martínez Heredia.10
Na atualidade, o dinheiro recuperou poder, embora ainda não a sua legitimidade. Ressurgem famílias que gastam o que não têm em uma festa de quinze anos, ou em um casamento ostentação. Observa-se comportamentos voltados ao olhar do outro, característicos de uma sociedade narcisista: são posturas conservadoras, discrepantes da ética revolucionária em que se forjou a emancipação cubana, mas não necessariamente contrarevolucionárias. Mais grave é a percepção de que, pouco a pouco, se naturalizam coisas do capitalismo, como aceitar como normal que um compre algo que outro não possa. Nesse contexto, Martínez Heredia considera que em Cuba os revolucionários não estão perdendo a batalha, mas tampouco a estão ganhando.
6.
Na Cuba atual, o Estado perdeu o monopólio das perguntas e das respostas sobre o futuro do país. A ordem social em que o Estado tem o compromisso de resolver os problemas dos seus cidadãos, em uma trajetória que aponta para o comunismo, entrou em crise. O sentido das mudanças iniciadas no período especial já não tem caráter provisório nem reversível, e a utopia comunista, rarefece. Vive-se um momento de transição, em que o paradigma anterior perde lastro na realidade, mas ainda não se consolidou uma alternativa com capacidade mobilizadora comparável.
O sentido da mudança na ilha está em disputa e imagina-se o país de muitas maneiras. Obama compartilhou a sua com os cubanos em visita ao país: “Nos Estados Unidos, temos um monumento claro do que podem construir os cubanos: se chama Miami”.11
Dentro da ilha, existe alto consenso em torno a um projeto de nação que preserve a universalidade das conquistas sociais e a soberania. As reações espontâneas à morte de Fidel deram este testemunho: quem falou em juventude indiferente ao falecimento do comandante expressou um desejo e uma mentira. Os cubanos homenagearam em massa o líder do processo que consumou a nação, a despeito de discrepâncias que todo cubano tem. Foi um reconhecimento a quem defendeu o povo no passado, mas também um tributo ao presente e uma mensagem ao futuro: as manifestações tiveram um importante efeito demonstrativo junto aos Estados Unidos e ao mundo.
Como disse a presidente da Federação de Estudantes Universitários, o problema não é os que estão contra a revolução,12 mas os rumos que a revolução tomará: em que medida será possível preservar o valor da igualdade perante as mudanças em curso, e como fazê-lo. O futuro que respiram os cubanos já não é a utopia de uma sociedade sem Estado, sem classe e sem propriedade privada, mas é uma combinação entre direitos universais gratuitos e de qualidade, com relações mercantis disciplinadas por um Estado soberano.
Diante desse cenário, dois dilemas se colocam para a revolução que assaltou a oligarquia, mas também os dogmas revolucionários: até que ponto a mercantilização das relações sociais será compatível com a preservação do ideário revolucionário, ainda que em sua versão minimalista? O Estado será capaz de disciplinar o capital internacional em defesa da nação na periferia mundial, em pleno século XXI?
Na obra moral regeneradora da revolução cubana, o otimismo da vontade enfrenta o pessimismo da razão.
*Fabio Luis é professor de Relações Internacionais da Unifesp e autor de Além do PT. Crise da esquerda brasileira em perspectiva latino-americana.