Para onde vai o Fórum Social Mundial
Após oito anos, o evento que começou no Brasil se espalhou pelo mundo, estimulando iniciativas locais e regionais que questionam a lógica de mercado e a globalização. Plural e horizontal, segue agregando novas propostas sob a perspectiva de uma outra sociabilidade possível
Desde 2001, quando surgiu em Porto Alegre, o Fórum Social Mundial (FSM) tornou-se uma referência da nascente cidadania de dimensões planetárias. Já em seu início surpreendeu pela capacidade de mobilizar milhares de pessoas em oposição à globalização econômico-financeira dominante e ao discurso ufanista de seus pregadores neoliberais. Tendo como antípoda o Fórum Econômico Mundial, conhecido como Fórum de Davos, o FSM vem despertando a esperança onde antes grassava o desânimo, o sonho no lugar da desilusão e o ativismo onde parecia que nada poderia ser feito. A militância cidadã colocou na agenda pública mundial, em alto e bom som, a certeza que “outros mundos são possíveis”, bem diferentes da homogeneidade de padrões culturais e de consumo, da exclusão social e da destruição ambiental, exacerbados pela globalização sob a lógica do mercado.
Em 2008, tendo como referência comum o dia 26 de janeiro, o FSM organizou a Jornada de Mobilização e Ação em várias cidades e países. O objetivo era enraizar o Fórum em nível local e cada movimento e organização tiveram a chance de dar atenção à sua própria dinâmica, percebendo sua relação com o processo mundial. As iniciativas não poderiam ser mais diversas: cada lugar, grupo e evento teve forma própria, de Fórum clássico (Barcelona) a cortejo (Belém), de seminário (Rússia) a evento político-cultural (Rio de Janeiro) e até mesmo eventos plurais (Itália). O importante era o sentimento de pertencimento e o “estar junto”, como uma rede de cidadania ativa que se espalha pelo mundo, virtualmente conectada pela internet.
O FSM saiu muito fortalecido desta jornada em termos de mobilização e identidade local. O dia 26 manteve o contraponto com o Fórum de Davos, que já perdeu muito de sua arrogância. É cedo, porém, para saber sua repercussão sobre as sociedades civis, governos, estruturas de poder, empresas e mídia dominante. No caso do Brasil, é evidente que a variedade de atividades, em diversas cidades, é um bom arranque para o FSM 2009, que será realizado em Belém (PA).
Em seu oitavo ano, muita gente ainda não conhece o Fórum como fonte de sonho e inspiração: temos um enorme déficit, por exemplo, no leste europeu, na Ásia profunda e no Oriente Médio. Mas nesta parte do mundo o FSM não é uma novidade, mesmo que não tenha chegado a todos os lugares. Em sua curta história, o método de produção de uma nova cultura política foi se alastrando de diversas formas. Surgiram fóruns regionais – como o Continental das Américas e o europeu – nacionais, locais e temáticos, totalmente autônomos e auto-geridos, de acordo com o espírito proposto. Perdemos a conta da quantidade de eventos e pessoas mobilizadas. Mesmo reconhecendo o vazio de Fóruns pelo globo, o fato é que estamos redesenhando o mapa mundi, que passa de sua visão eurocêntrica, com a dominação do norte desenvolvido, para algo mais próximo de uma diversidade de povos e culturas que dão vida ao mundo, onde o PIB (Produto Interno Bruto) conta menos que a densidade de movimentos e organizações sociais participantes.
O FSM precisa entrar em nova etapa, mas sem deixar de ser um espaço aberto, de encontro da diversidade dos sujeitos coletivos e atores sociais, de pluralidade de visões e perspectivas, de análises e opções. A energia revitalizante que emerge do Fórum tem muito a ver com o seu método de ação político-cultural, baseado em sua Carta de Princípios. Trata-se de compartir valores éticos comuns, com forte sentido de humanidade e sem discriminações, capaz de unir a diversidade do que somos e desejamos, e de fortalecer um sentido de preservação e sustentabilidade das condições naturais e dos bens comuns da vida, alargando espaços públicos constitutivos dos direitos individuais e coletivos.
O FSM não é um emergente partido mundial e nem uma nova Internacional. O Fórum é o que é por ser capaz de juntar velhos e novos movimentos, o espectro das esquerdas, a gente de “boa vontade” das igrejas diversas e os que se orientam pelo “bom senso”, no sentido definido por Antonio Gramsci. Sem protagonistas pré-estabelecidos por sua posição e função na estrutura social, o FSM é um espaço aberto, que comporta convergências e divergências na criação de novas perspectivas e na construção de outras formas de atuação. Os planos de ação em torno de propostas concretas são de responsabilidade dos próprios sujeitos coletivos e atores sociais, que articulam e definem suas plataformas, com toda a legitimidade.
Mas estamos no FSM não tanto por propostas e sim por valores e princípios comuns no enfrentamento da “crise de civilização”, que a radical expansão da globalização desnudou: o modelo industrial-predador-consumista, que concentra riquezas, cria desigualdades sociais, exclui, alimenta a lógica de violência-terror-guerra e destrói o clima e o planeta em que vivemos. As alternativas não são únicas, mas diversas, como somos e como é a própria natureza. A certeza que temos é que tudo pode ser diferente do que existe hoje, desta globalização neoliberal que nem perspectiva de futuro nos pode dar.
Espaço plural de ação
Isto posto, penso que o FSM perderá muito caso se torne uma força política unificada, com direção centralizada em uma espécie de nova Internacional de esquerda, como vários grupos participantes propõem. Não se trata de definir uma plataforma mínima comum por um grupo de iluminados. Ao contrário, acredito que precisamos garantir um espaço em que cada militante sinta sua demanda reconhecida e legitimada, porque reconhece e respeita todas as outras demandas e seus portadores. Nós nos necessitamos mutuamente e por isso nos engajamos num diálogo intra e inter sujeitos sociais, que deve ser o mais radical possível em seus métodos e propostas.
Até aqui, o FSM aponta para esta última alternativa e ainda pode fortalecer muito seu olhar para a base, no sentido de buscar soluções onde vivemos e criamos nossas sociedades e culturas, nossas economias e nosso modo de nos gerir. Emerge do Fórum um sentido de localizar e relocalizar a vida, a economia e o poder, como exigência de um mundo inclusivo e sustentável, onde cabem todos e todas de forma digna, com direitos e responsabilidades compartidas. As estruturas de poder e os mercados regionais e mundiais são subsidiários e não forças de empuxe. Neste sentido, o desafio não é enquadrar-se na velha política e na geopolítica do mundo, com suas dominações baseadas no controle de bens e recursos. Trata-se, antes, de transformá-la, torná-la radicalmente democrática, tanto em suas dimensões de cidadanias locais como
em sua perspectiva cosmopolita. Não queremos apenas criar condições para outra globalização, mas sim refundar a vida neste mundo, baseando-nos em sua gente, com suas culturas e identidades, e no que o nosso maior bem comum, o Planeta Terra, nos dá em sua diversidade.
O FSM pode contribuir muito ao fortalecer o processo de mobilização e encontro, de troca, elaboração conjunta e confronto de idéias, antes, durante e depois de seus eventos. Penso que será possível constituir coalizões em fóruns específicos, que aprofundem temáticas e conhecimento estratégico para a ação, agrupando de forma mais constante redes, alianças e campanhas que já estão engajados em tais problemáticas. O exemplo mais evidente é o que vem ocorrendo em torno da água, entendida como bem comum. A multiplicação de tais iniciativas com o método do FSM são promissoras. Nestes espaços mais delimitados, torna-se fácil definir um plano de pesquisa, de ação e de elaboração continuada, que dê maior profundidade, através de diálogos e controvérsias, à diversidade de propostas que a cidadania mundial está construindo de baixo para cima. Os grandes eventos do FSM, que continuam muito importantes por seu impacto político e para a recarga coletiva de baterias, poderão dar visibilidade maior aos consensos e dissensos, aos acúmulos e aos déficits, estimulando o poder instituinte e constituinte da cidadania diante do Estado e das economias.
No horizonte do FSM já temos definido um grande evento mundial em 2009 na região amazônica, compartilhada por nove países da América do Sul. O FSM de Belém nasce carregado por enorme simbolismo, que agrega e aponta para outra perspectiva. Depois da Jornada de Mobilização de 2008, teremos a oportunidade de juntar, num mesmo lugar, as várias expressões da nascente e militante cidadania planetária. O local escolhido é, por si só, cheio de sentido para o que buscamos.
Enquanto o mundo inteiro discute a lógica do terror e da guerra e a nova agenda – a questão ambiental – para o pós-neoliberalismo, em Belém estaremos demonstrando a nossa radical adesão às questões do bem comum natural, base de toda vida, como referência do que somos e do que queremos. Vamos trazer para primeiro plano a densidade social e a resistência dos povos da floresta à investida das grandes corporações e aos predadores de sempre. Resgataremos uma questão e um modo de ver profundamente locais e, ao mesmo tempo, universais. Não tenho dúvidas que este FSM fincará um marco fundamental da nossa agenda bem no centro do debate mundial.
*Cândido Grzybowski é sociólogo e diretor do Ibase, Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas.