Para refundar a União Européia
Novas dúvidas e questionamentos abalam o grande projeto europeu, no momento em que se expande para 27 países. Para evitar que a crise se aprofunde, a saída é pensar num continente articulado por visões comuns de mundo — não pelas forças cegas do mercadoPaul Thibaud
A Europa é vítima do dogma de não pensar a Europa. Para restabelecê-la, não é preciso dotá-la de algum órgão supostamente necessário (uma presidência, por exemplo), mas mudar radicalmente de método, sair do encadeamento dos prazos inscritos no calendário de suas instituições, que promovem apenas o desenvolvimento do aparelho — e não à orientação do projeto. A mentalidade habitual, dita funcionalista, é o desenvolvimento de um pressuposto prático: o mercado é uma maravilhosa máquina para unificar; é e deve ser a base e a matriz de tudo.
De acordo com esse postulado, a Europa não foi desejada nem organizada por si mesma. Ela crescerá bem, ela crescerá inevitavelmente, quando o mercado tiver produzido seus efeitos sobre os povos. No atual modo de agir (em crise), o mercado único e a Europa política e social são considerados como dois segmentos da mesma reta, enquanto é sua compatibilidade que causa problema. Os idealizadores da Europa sempre miraram além do mercado, a partir do mercado. Esse desejo sempre foi frustrado. O hiato entre a Europa mercantil, da concorrência entre os povos, e a Europa da solidariedade e das ambições comuns permanece negado ou impensado.
Esse pressuposto prático a favor do mercado como base da união do continente é inseparável de uma antiga opção estratégica: por não poder suscitar diretamente um propósito comum, optou-se por fazer da Europa uma entidade homogênea da qual, cedo ou tarde, uma vontade emergirá por geração espontânea. O caminho escolhido foi menos o da união que o da uniformização. Não o caminho da política, mas o de uma socialidade cujos dois aspectos principais são o mercado e o direito – uma socialidade totalmente orientada para tornar iguais as condições e as oportunidades dos indivíduos de todas as nações. Essa uniformização restringiu consideravelmente a margem de ação dos Estados, o que foi aceito por muitos dirigentes — nem todos liberais dogmáticos, longe disso – considerando-se que essa era a passagem obrigatória para uma futura nação e uma nova política.
A Europa avança, portanto, de acordo com as oportunidades, os problemas do dia e as pressões dos lobbies, mas essencialmente por uma seqüência de respostas jurisdicionais e regulamentares aos pedidos de “abertura” e de nivelamento das especificidades apresentados por indivíduos que desejam estar em toda parte como na própria casa ou por comerciantes que querem simplificar a vida. A falta de plano, os constantes excessos, a ausência de limites para o ativismo das instituições (a Corte de Luxemburgo está agora entrando no domínio do direito penal), esse desenvolvimento indefinido e sem projeto explícito é um falso pragmatismo. Esse desenvolvimento sem coerência e em todos os sentidos (a Europa se ocupa de tudo, como podem perceber os que leram o projeto constitucional) atrai “indiretamente” um desfecho: ela será, mais dia, menos dia, uma nova nação que não precisará ser anunciada para estar presente de modo implícito em todas as decisões européias.
A tentativa frustrada de criar um “povo europeu”
Hoje, esse método está em xeque. Trabalhada pela Europa mercantil, a matéria social não foi, absolutamente, transformada em povo europeu; as manifestações populistas são testemunhas disso. Quanto às instituições, sua inépcia para responder aos desafios da globalização mostra o impasse de um pragmatismo que não desembocou na emergência de uma vontade. Há excesso de Europa como sociedade de mercado e não há suficiente Europa política, mesmo que a abertura recíproca das nações tenha sido um ganho. Essa construção desequilibrada é um canteiro de obras sem perspectiva de dar certo.
Além desse fracasso, podemos ler uma falência cultural e até mesmo espiritual. Desde a origem, e visando à paz perpétua no continente, a Europa pretendeu ser pós-histórica e antipolítica, maldizendo seu passado, não querendo ver senão paixões perigosas – era uma obsessão de Jean Monnet – nas fidelidades históricas, e utilizando o mercado como tela para ocultar a memória dos povos. Chegou, portanto, o momento não de institucionalizar a União, de fazer dela uma vaca sagrada, mas sim de traçar seu balanço crítico para, finalmente, dar-lhe um roteiro e, até mesmo, refundá-la. Essa avaliação contraditória, só pode ser legitimamente conduzida por aqueles que lhe delegaram o essencial das competências que ela exerce: os Parlamentos nacionais: primeiro, cada um à parte; depois, por meio de uma confrontação de seus pontos de vista.
Se admitirmos que a Europa não seja nem uma zona mercantil nem uma nação em formação, só poderemos concluir que ela deve se organizar em dois níveis: de uma parte, o do espaço comum e da socialidade comum; de outra, o das nações e dos projetos políticos. Esta dualidade existe, em princípio, nas instituições: a Comissão, o Parlamento e a Corte de Justiça de um lado; o Conselho, de outro. Na prática, ela é interminavelmente erodida por uma tendência a unificar a Europa em torno do dispositivo permanente que, de fato, dispõe da iniciativa e que associa, efetivamente, a Comissão, o Parlamento e a Corte. Citando um exemplo essencial: de acordo com o antigo Ministro dos Assuntos Estrangeiros, Hubert Védrine, foi a Comissão que se encarregou da expansão em direção ao Leste, com uma falta de preparação deplorável e deplorada.
Essa preponderância da Europa integrada sobre a Europa política e a “engrenagem” como prática exprimem um preconceito fundamental relativo à natureza e à história da Europa: esta seria fundamentalmente homogênea e em seu seio todas as diferenças seriam contingentes e deléveis. Não haveria necessidade de produzir a unidade, ela estaria oculta sob a couraça das nações, sendo necessário apenas fazê-la aparecer, libertá-la. O realismo consiste, ao contrário, em dizer que a unidade da Europa, saltando uma diversidade essencial, deverá ser produzida e mantida. Isso implica um outro método: o de uma Europa da vontade, Podemos descrevê-la por um encadeamento de três orientações: distinguir o que é comum e o que é próprio de cada povo; implicar os assuntos políticos, os Estados-Nações na ação comum; definir um projeto europeu.
Papel indispensável dos estados-nações
Distinguir significa que a Europa deve respeitar a dignidade moral e institucional dos diferentes povos. Isso exclui, particularmente, uma afirmação sem limite da superioridade do direito europeu, mesmo sobre as Constituições nacionais. Se todos os Estados da Europa são reconhecidos como democráticos, suas Cortes Constitucionais podem verificar a compatibilidade do direito comunitário com os princípios fundamentais que elas devem fazer respeitar, aceitando a possibilidade de resolver politicamente os eventuais conflitos. Isso caminha lado a lado com a aplicação de um princípio de confiança entre os povos dos Estados-membros. Essa confiança, cujo direito de instalação em todo o território da União Européia é uma manifestação evidente e essencial, deveria ser explicitamente afirmada como um critério de adesão.
Esse respeito pelas nações que formam a família européia não vale apenas no domínio do direito: também justifica que se limite a pressão do mercado sobre elas. O nível da pressão mútua que a unificação instaura entre nações deveria ser medido e sistematicamente circunscrito. Disso decorre a necessidade de um princípio de correspondência entre a concorrência e a harmonização das regras, não podendo a segunda ser postergada, quando se instaura a concorrência.
Se a Europa não é essencialmente um mercado, a questão dos direitos alfandegários internos não deveria ser tabu. Está claro que algumas diferenças de remuneração são insuportáveis na Europa expandida. O princípio de concorrência eqüitativa não pode ser estranho à Europa da diversidade e da confiança.
Implicar, por meio dos seus Parlamentos, as comunidades políticas nacionais na política européia é a chave de tudo. As assembléias eleitas não mais podem ser reduzidas ao papel humilhante de transpor, para suas legislações, o que já está decidido na esfera européia. Elas devem ter um papel no início e no final da decisão. No início, antes mesmo que os projetos de decisão tenham tomado forma, é preciso organizar debates paralelos, cujas conclusões seriam comparadas, particularmente, no Parlamento Europeu. Esta assembléia é, realmente, muito mais legítima como local de confrontação dos pontos de vista nacionais do que para ilustrar uma “europeidade” pura quase inexistente. Os debates nacionais versariam menos sobre questões a resolver do que sobre as orientações e os motivos de se empreender esta ou aquela ação. Os Parlamentos de cada Estado deveriam também, no final, avaliar, separadamente e, posteriormente em comum, o resultado de um processo europeu ao qual eles sacrificaram muitas de suas prerrogativas.
Essa deliberação anterior e posterior é necessária para ancorar a Europa nos espíritos, dar-lhe uma visibilidade e uma consistência capazes de possibilitar o reconhecimento, em suas decisões, de um sentido e de uma legitimidade.
A partir da diversidade, construir um projeto europeu
Por não ser uma realidade política direta, ela é sempre percebida através de um prisma nacional. É preciso, pois, que ela encontre formas de vida política equivalentes às que, no âmbito das democracias nacionais, servem, como alternância, para combinar a unidade e as divergências. A Europa atual teme as divergências e prefere abafar sua diversidade numa sucessão de consensos e de acordos. Para sair da esterilidade e da confusão resultantes, é preciso que ela aprenda a manter sua diversidade política através das cooperações, das isenções (opting out) e dos compromissos experimentais, cuja existência poderia, em contrapartida, facilitar a generalização da decisão majoritária.
Para manter a democracia européia, é preciso, pois, visar, não uma unidade global, mas uma unidade diversificada, distinguindo, nas diversas instituições, diversos domínios, diversos níveis de integração. O que depende da base indispensável, fazendo da Europa um espaço aberto e compartilhado; as políticas comuns que expressam a vontade de contar em um universo que se unifica; as cooperações livres, enfim.
Definir uma atitude e um projeto comuns dos povos europeus é uma obrigação diante de uma organização do mundo que lhes lança um desafio urgente. Esses povos não possuem outra opção além de tomar posição conjunta sobre os grandes desafios, quer se trate da hostilidade de uma parte significativa do mundo muçulmano no Ocidente, da desorganização da África, da ameaça comercial do Extremo Oriente ou do novo nacionalismo norte-americano. A Europa deve dotar-se de um objetivo histórico atual, portanto, de uma doutrina da globalização, na qual ela entraria com seus próprios princípios.
O primeiro princípio (o da precaução) seria o de uma “concorrência eqüitativa” limitando o perigo que consiste em apreender o mundo como um só bloco, como uma massa homogênea e, portanto, em não atentar para a extrema diversidade das situações. O segundo (princípio de ação) seria a obrigação moral de oferecer a todos os povos as oportunidades de modernidade científica e técnica, tendo consciência de que, em um mundo que não é senão o mesmo cenário, a diferença das possibilidades abertas não pode permanecer o que ela é atualmente. Nessa doutrina deveria figurar uma posição definida perante a pressão migratória externa, a qual deveria comportar cotas de admissão por país, mas também a garantia de que essas fossem respeitadas.
Em alternativa à federação, uma Europa das Nações
Este esboço inscreve-se, evidentemente, na linha da “Europa das Nações”, da “Europa européia”. Charles de Gaulle certamente errou em não dar continuidade a tal projeto, após o fracasso do “plano Fouchet” negociado no período de 1960 a 1962 [1] Apostamos, aqui, que o acordo sobre o fundo, a natureza e os objetivos da Europa deve preceder a eventual fusão institucional.
Outros, ao contrário, podem pensar que a simples opção clara pelo federalismo para alguns países (no âmbito da zona euro) pode, ao dar o exemplo de uma coerência, despertar a energia necessária para um grande projeto. Mas, atualmente, quais seriam os países candidatos a esta aventura? E mesmo se um “núcleo federal” se formasse, ele seria, no estado atual das coisas, um alvo para a concorrência social e fiscal dos outros países da União. Os projetos de “núcleo duro” europeu têm o duplo defeito de nunca definir a relação do núcleo com o resto, e de não caracterizá-lo senão de maneira quantitativa (mais Europa) e não segundo o gênero de Europa que se trata de reforçar.
As propostas aqui apresentadas tentam antecipar-se à opção a favor o