Participação popular contra o “velho Estado”
Caracas: numa espécie de revolução dentro da revolução, setores populares criam conselhos comunais, e tentam transformar o Estado para tornar reais, enfim, as mudanças no paísRenaud Lambert
O homem se interrompe. Os gabinetes, “não são sua praia”, pois ele só se sente bem com seu capacete preso à cabeça, sua barba de três dias e seus jeans manchados; ele está destoando. Mas não passou quase uma semana atravessando o país para se deixar impressionar, no último momento, por um funcionário da Assembléia Nacional. Caminhoneiro do Estado de Zulia, Juan Guerra lembra-se de que tem direitos e está irritado. Reage e dá um murro na mesa: “Não, nós não estamos pedindo. Nós exigimos do camarada deputado que ele transmita nosso protesto diretamente ao ’cidadão presidente’!”
Em 2000, os 700 caminhoneiros representados por Juan e seu companheiro Jhonny Plogar, deram queixa de seus empregadores, Cootransmapa, Coozugavol e Coomaxdi. Segundo eles, as três empresas, especializadas em transporte de carvão, “usurpam o título de cooperativa para se beneficiarem da isenção de impostos e de contratos com o Estado”. Enviados de departamento em departamento, eles só seriam ouvidos cinco anos mais tarde, depois de terem multiplicado a correspondência, cujas cópias Jhonny tira de uma bolsa abarrotada: “ministério”, “prefeitura”, “governo do Estado”, “Presidência”, etc. No entanto, embora a Superintendência Nacional das Cooperativas (Sunacoop) finalmente retire das pseudo-cooperativas sua “certificação”, a empresa nacional de extração de carvão continua a contratá-las! Por seu lado, o governador do Estado, Manuel Rosales ? signatário do decreto que dissolveu todos os poderes públicos durante o golpe de Estado de abril de 2002 ? não tem pressa. Os patrões aproveitam-se disso para se organizarem. Logo, os “sicários” [1] ameaçam.
Aqui, essa história é quase banal. Aliás, quando os três companheiros apresentam-se diante da Assembléia Nacional para tentar ser ouvidos, a multidão já está compacta. Em toda parte, as mesmas reivindicações: “Abaixo a burocracia! Abaixo a corrupção!”. Por toda parte, também, a mesma certeza: “Estamos com Chávez!”. Pois foi depois de uma administração considerada, na melhor das hipóteses, “ineficaz” e, na pior, “reacionária”, que eles a têm. Aliás, não foi o próprio “cidadão presidente”, que declarou recentemente: “Nosso inimigo interno, um dos mais perigosos para a revolução, é a burocratização e a corrupção! [2]”?
Por certo, esse tipo de discurso já foi empregado, na América Latina e em outros lugares, para atribuir aos assessores incompetentes a má aplicação… da política do presidente! Todavia, o “processo” (como é aqui chamado) bolivariano insiste na participação popular como meio de transformar o aparelho do Estado. É o que se chama, na Venezuela, de “revolução dentro da revolução”.
Até a eleição de Hugo Chávez, em 1998, os dois partidos políticos que dividiram o poder durante quarenta anos (o partido democrata-cristão Copei e o partido social-democrata Ação Democrática), souberam utilizar a renda petrolífera para transformarem duas calamidades em sistema de organização do Estado. Ao mesmo tempo em que os cargos públicos eram distribuídos para comprar a paz social, era preciso curvar-se à ideologia vinda do Norte: a “necessária” retração das políticas públicas. Nessa situação quase paradoxal, o inchaço do aparelho do Estado só podia ser compensado pela? organização consciente de sua ineficácia.
A dramática falta de líderes “sólidos”
Por outro lado, neste país de clivagens sociológicas caricaturais, os funcionários qualificados são, muitas vezes, oriundos de meios totalmente herméticos a qualquer projeto de transformação social, às vezes por ignorância das condições de vida da grande maioria dos venezuelanos. Diretor-geral do gabinete do ministro de Assuntos Exteriores, Gilberto Gimenez esboça um sorriso ao evocar a solução que tenta dar ao problema: “Agora, a promoção está subordinada a estágios de duas semanas nos barrios [bairros populares]”.
Os líderes políticos “sólidos”, em condições de participarem ativamente da transformação interna do Estado não são numerosos. Em menos de um ano, o ministério de Assuntos Exteriores teve seis ocupantes diferentes, antes de conseguir a estabilidade com a nomeação de Ali Rodríguez [3].
A facção política que levou Chávez ao poder, o Movimento Quinta República (MVR), não é um partido. Constituiu-se às pressas, a partir de 1994 [4], tendo como base uma coalizão de partidos de esquerda e de antigos movimentos guerrilheiros, entre os quais alguns dirigentes começavam a encontrar certo conforto na sociedade que tanto haviam combatido anteriormente. Ao mesmo tempo, os jovens quadros formados pelos institutos da AD e da Copei logo compreenderam que a candidatura de Chávez oferecia novas oportunidades de acesso ao poder. Daí, um número nada desprezível de adesões…
Em novembro de 2001, quando o presidente assinou 49 “decretos-leis” marcando o ponto de partida das reformas sociais, o artesão da aproximação da esquerda venezuelana com Chávez, Luis Miquilena, julgou-os muito radicais. O ministro do Interior demitiu-se de seu cargo, seguido por seus partidários na Assembléia Nacional. “Perdemos uma legislatura”, explica o sociólogo Edgar Figuera, “quando as leis passaram, eram leis depreciadas: a Venezuela continua a viver no quadro legislativo da Quarta República [5]!”. Paradoxo de um projeto revolucionário que, sem dispor de dirigentes por ele formados, se constrói com as ferramentas legadas por um Estado cuja própria estrutura visava à perpetuação do modelo neoliberal.
Desde dezembro de 2005, os partidos pró-governamentais dispõem da totalidade das 167 cadeiras da Assembléia Nacional. Eles não terão, portanto, essa desculpa para explicar eventuais atrasos na reforma da ferramenta legislativa do país. Mas a taxa de abstenção (75%) que caracterizou esse escrutínio não resultou apenas da deserção calculada da oposição (sabendo-se amplamente derrotada, ela preferiu retirar-se). O índice revela, também, desaprovação popular diante do desvio de rumo dos processos revolucionários que a própria Venezuela deve, também, enfrentar: a substituição de uma elite burguesa por uma elite política que reproduz seus defeitos, particularmente o afastamento progressivo em relação à realidade cotidiana da população.
Sem verdadeiro partido, sem aparelho de Estado sólido, sem dirigentes revolucionários em número suficiente, sem movimento social realmente coerente (no momento, seria necessário acrescentar), o processo bolivariano não é muito diferente das outras experiências revolucionárias latino-americanas.
Das missões aos conselhos comunais
“O povo organizado deve fazer parte do novo Estado, participativo, social, de tal forma que este velho Estado paralisado, burocrático, ineficaz, seja totalmente derrubado”, explicava Chávez em 2004. Na época, ele evocava, principalmente, as “missões”, esses programas administrados pela “comunidade”, que ladeavam o “velho Estado” para atender à urgência social. A recente criação dos “conselhos comunais” [6], em 10 de abril de 2006, representa uma nova etapa importante rumo à construção deste “novo Estado” e das formas de governo local nas quais ele repousará.
Em Vela de Coro, uma casinha abriga a Unidade de Poder Popular (UPP) do sol que castiga a península de Paraguana. Um pequeno cartaz explica: os conselhos comunais “estimulam a democracia participativa (?) visando à articulação das organizações sociais na busca de soluções aos problemas coletivos e visando saldar a dívida social do país.” Neste caso, foi a Prefeitura quem tomou a iniciativa de ajudar a criação dessas organizações, “mas nós só contribuímos com as ferramentas, uma ajuda em caso de conflito. Somente a assembléia dos cidadãos pode tomar decisões”, precisa Xiomara Pirela, coordenadora da UPP.
A função principal do conselho é coordenar e integrar as atividades das organizações já estabelecidas na comunidade: missões, comitês de terras urbanas, comitês culturais, etc. “Ele não é, portanto, o representante, mas sim o porta-voz da assembléia de cidadãos, que é o órgão último de tomada de decisões do povo”, insiste Pedro Morales, diretor da Fundacomun (órgão de financiamento dos conselhos comunais) do “distrito capital”, ou seja, Caracas.
Xiomara Pirela examina inúmeros processos “em andamento”, empilhados em sua escrivaninha e retira deles mapas desenhados com hidrográficas, com um traço por vezes desajeitado: “As pessoas começam fazendo um “croqui social” da comunidade: as casas, os habitantes, as rendas, mas também os problemas de infra-estrutura, os problemas sociais, etc.”. Esse trabalho permite elaborar, em conjunto, o “diagnóstico participativo” e estabelecer prioridades: abastecimento de água, evacuação dos esgotos, criação de um centro de tratamento, etc.
Baseado nesses elementos, o conselho comunal propõe projetos à assembléia de cidadãos, envia-os às autoridades competentes e administra diretamente os recursos alocados por meio de um “banco comunal” sob forma de uma cooperativa. Cada projeto pode receber até 30 milhões de bolívares (aproximadamente 35 mil reais), mas é sempre possível recorrer aos conselhos locais de planejamento público, à prefeitura ou aos estados para incluir projetos mais custosos no orçamento participativo do ano seguinte.
Nos quatro mais desenvolvidos estados da região Occidente ? Barinas, Mérida, Táchira e Trujillo ?, mais de 3 mil projetos já receberam quase 92 bilhões de bolívares (mais de 100 milhões de reais). A partir de 2007, é a metade das quantias provenientes do Fundo Intergovernamental para a Descentralização (Fides) e das arrecadações da Lei de istribuições econômicas especiais derivadas das minas e dos hidrocarbonetos (LAEE) ? cerca de três bilhões de reais ?, que irá diretamente para o financiamento dos conselhos comunais. As prefeituras e os estados, que até então partilhavam este maná, deverão se contentar com o resto.
Poder paralelo ao dos prefeitos e governadores?
Compreende-se a tentação de alguns prefeitos de fazer eleger “seus parentes” para os conselhos, mesmo que a lei proíba. Entretanto, se “os conselhos comunais são realmente uma solução para os problemas de burocracia e de corrupção, eles também permitirão que se responsabilize uma população habituada a confiar num Estado paternalista e… a reclamar”, continua Morales. E pareceria que a população estivesse pronta a assumir suas responsabilidades?
Nesse 16 de julho, o imenso prédio “bloco 45” do “23 de Enero”, um bairro popular da zona oeste de Caracas, acaba de “vencer uma etapa”, anuncia orgulhosamente uma habitante do local. “Ele é conhecido por ser um dos mais ’imundos’ da América Latina”, explica ela, mostrando os detritos que cobrem as bordas do edifício e que os habitantes lançam pela janela sem parecer se preocupar com os vizinhos. Hoje, no entanto, após meia dúzia de assembléias preparatórias, “as pessoas vão cuidar disso!”. Elas estão elegendo seu conselho comunal.
Um pouco acima no morro, o bairro “El Observatorio” faz a mesma coisa. Um toldo de plástico numa esquina serve de cabine de votação (“o voto deve ser direto e secreto”, lembram) e a fila se organiza diante das urnas de papelão que, como todos puderam constatar, estavam vazias antes da eleição. Lá, como acontece freqüentemente em outros lugares, as mulheres tomaram a iniciativa. A aposta é vultosa e a lei muito clara. Cartazes avisam: “Se não atingirmos 20% da comunidade [7], a eleição não será validada e não adiantará nos queixarmos depois.” Mas as organizadoras estão confiantes: “Os homens virão”, explica uma delas.”Meu marido já foi avisado: se não votar, nada de comida, nada de roupa, nada!”.
Em alguns meses, milhares de conselhos comunais foram criados ou estão sendo formados através do país. Os que haviam precedido a votação da lei estão sendo regularizados pouco a pouco. Já existem mais de 500 no “distrito capital”. Esperam-se cerca de 50 mil no país. Os bairros ricos também fazem sua parte, “quando as pessoas aceitam preencher informações sobre os salários”, ironiza Josephine, uma moradora de Prado del Este. “Mas, ao menos, eles participam, sorriem Xiomara Paraguán e suas amigas: “há poucos anos, quem teria acreditado?”
Uma questão se coloca: por que ter esperado sete anos para criar esses conselhos? “Na verdade, se os prefeitos e os governadores tivessem feito seu trabalho, não haveria necessidade deles”, ironiza Engels Riveira do conselho de Camunare Rojo, “tudo isso, enfim, surgiu, em parte, graças a eles.”
“A grade de ferro que nos protege”
A admiração de que são objeto os conselhos comunais mostra que eles são, antes de tudo, espaços de democracia que atendem a uma necessidade do “processo”. A participação já havia sido encorajada no nível trabalhista (co-gestão, autogestão, desenvolvimento das cooperativas, que passaram de menos de um milhar, em 1999, a mais de 100 mil, em janeiro de 2006) e no cultural (por meio dos comitês culturais de bairro, por exemplo). Faltava organizar suas modalidades no nível político.
É, pois, a “comunidade” ? cerca de 200 a 400 famílias na cidade, uma vintena no meio rural e a partir de 10 entre os indígenas, segundo os termos da lei ?, que se torna a estrutura governamental “básica” do “novo Estado”. E se, como observa Juan Carlos Monedero [8], “o socialismo do século 20 fracassou, antes de tudo, por falta de participação popular”, os conselhos comunais poderiam se revelar uma ferramenta importante na construção do “socialismo do século 21” na qual a Venezuela se engajou.
“Sim, enfim? se o dinheiro realmente vier”, acrescenta, no entanto, Paraguán. “Se o dinheiro não vier, iremos procurá-lo!”, apressa-se em responder-lhe uma mulher, membro do conselho de “El Observatorio”. Nesse bairro, após a eleição, o trabalho já começou. Paraguán participou de um ateliê “de elaboração de projetos sociais” e exibe, orgulhosamente, seu diploma. Em breve, todas as mulheres, membros do conselho, terão um treinamento desse tipo.
Diante da inércia de certos burocratas e “políticos”, é preciso, aqui, contar com o vigor do princípio de “contraloría social”, essa “velha cidadã” que se encarrega da defesa do “seu” processo. Os conselhos comunais poderiam se tornar uma versão mais bem sucedida da “contraloría” e ajudar os venezuelanos a exigir do Estado os meios para que eles exerçam sua co-respo
Renaud Lambert é jornalista.