Passando a boiada de reformas estruturais
Neste caso, a boiada passa por cima do edifício da Política Nacional de Saúde Mental, no sentido de reestruturar a política de saúde mental para o modelo hospitalocêntrico, cuja história revela seu caráter privatista.
O governo federal anunciou a proposta de revisão da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) e a nova proposta de modelo assistencial em saúde mental, no Brasil, tendo como base o documento “Diretrizes para um Modelo de Atenção integral em Saúde Mental no Brasil – 2020”, elaborado pela Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), Associação Médica Brasileira (AMB), Conselho Federal de Medicina (CFM), Federação Nacional de Médicos (FENAM), Associação Brasileira de Impulsividade e Patologia Dual (ABIPD) e Sociedade Brasileira de Neuropsicologia (SBNp). O documento critica o que é situado como sendo o processo de desospitalização no campo da saúde mental promovido pela Reforma Psiquiátrica, com:
Desvalorização do saber psiquiátrico e redução da posição da psiquiatria na assistência à saúde mental.
Consolidação da atenção psicossocial como modelo único para assistência à saúde mental, sem eficácia científica demonstrada.
Essa proposta propõe revogar a portaria que dispõe sobre o programa de reestruturação da assistência psiquiátrica hospitalar no SUS e criação de ambulatórios gerais de psiquiatria, de unidades especializadas em emergências psiquiátricas. É importante destacar que isso se dá no contexto da pandemia de Covid-19. E, mais especificamente, em um momento em que se registra uma nova onda de aumento de casos em todo o país com impactos ainda desconhecidos sobre a saúde mental da população, mas que já estão sendo antecipados em função do registro de emergências humanitárias anteriores.
Desastres naturais, epidemias, pandemias, conflitos políticos, golpes de Estado e guerras compõem o que a Organização Mundial da Saúde (OMS) define como sendo o quadro das emergências humanitárias. Seu impacto sobre a saúde mental é enorme, conforme é destacado no Guia de Intervenção Humanitária (GIH-mhGAP): Manejo Clínico de Condições Mentais, Neurológicas e por Uso de Substâncias em Emergências Humanitárias (OPAS, 2020):
O agravamento de sofrimentos psíquicos preexistentes – como é o caso da psicose, do transtorno depressivo moderado a grave e do uso prejudicial de álcool e outras drogas.
O desencadeamento de outras formas de sofrimento, diretamente decorrentes da exposição humana às condições de crise humanitária, como é o caso do estresse agudo, do luto e do transtorno de estresse pós-traumático.
A humanidade tem vivido sob a pressão de emergências humanitárias com forte impacto sobre o bem-estar psicossocial da população. O relatório da OPAS, A carga dos transtornos mentais na região das Américas (2018), mostra que na América Latina, Caribe não latino, América do Sul, Canadá e Estados Unidos, problemas de saúde mental são responsáveis por mais de um terço do número total de incapacidades. O mesmo relatório registra como o financiamento em saúde mental estava abaixo do necessário, não respondendo à cobertura das necessidades no setor. Até 2018, o déficit variava de 3 vezes a mais que os gastos atuais em países das Américas de alta renda a 435 vezes os gastos nos países de mais baixa renda da região (OPAS, 2018). O que explica a preocupação recente da ONU em conscientizar os países, imersos hoje na emergência humanitária da Covid-19, no sentido de reverter a negligência e o baixo investimento em serviços de saúde mental, em prol da ampliação da cobertura psicossocial para indivíduos, famílias e comunidades que foram diretamente afetadas.
A proposta do governo é mais uma ação que obedece ao modus operandi neoliberal clássico em Milton Friedman que, em um artigo para The Wall Street Journal, em 2005, ressaltara que emergências humanitárias eram a oportunidade para reformas estruturais. Essa formulação de Friedman (2005) pode esclarecer o que se passa hoje, com a proposta do governo. Trata-se, precisamente, de localizar na pandemia da Covid-19, a oportunidade de passar a boiada das reformas estruturais neoliberais. E, neste caso, a boiada passa por cima do edifício da Política Nacional de Saúde Mental, consolidada com a promulgação da Lei 10.216/01 (Lei Paulo Delgado ou Lei da Reforma Psiquiátrica), no sentido de reestruturar a política de saúde mental para o modelo hospitalocêntrico, cuja história revela seu caráter privatista.
Razões da crítica ao modelo hospitalocêntrico pela reforma psiquiátrica
O processo de reforma psiquiátrica brasileira se inscreveu no contexto internacional mais amplo de combate e superação da violência asilar, tendo inclusive vedação expressa na Lei 10.216, em seu artigo 4º, §3º: são proibidas as internações de pacientes possuidores de doenças mentais em instituições que não proporcionem assistência em todos os aspectos (social, psicológica, médica, lazer etc.) ao paciente e que de igual maneira não respeitem os direitos garantidos a este e assegurados constitucionalmente.
Sua especificidade residiu em duas variáveis: a crise do modelo de assistência centrado no hospital psiquiátrico e a eclosão dos esforços dos movimentos sociais pelos direitos dos pacientes psiquiátricos. Foi o caso do Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM). Suas análises críticas foram relevantes no contexto político-social da época, estabelecendo uma articulação entre um posicionamento crítico diante da conjuntura política, econômica e social, e um posicionamento ético de ruptura com os pressupostos teóricos do paradigma do isolamento e da punição e as representações sociais que estabeleciam a equação entre formas de transtornos psicológicos e periculosidade. Mas o processo de reforma psiquiátrica interrogou, também, a ocorrência de uma rede privada de assistência, conforme pode ser observada a partir dos dados da tabela a seguir.
Evolução do número de hospitais psiquiátricos no Brasil, segundo o prestador (Ministério da Saúde, 1992).
Anos | Hospitais Públicos | HospitaisPrivados/Filantrópicos | Total |
1941 | 23 | 39 | 62 |
1961 | 54 | 81 | 135 |
1971 | 72 | 269 | 341 |
1981 | 73 | 357 | 430 |
1991 | 54 | 259 | 313 |
A tabela nos informa elementos importantes referentes ao modelo hospitalocênctrico:
O salto na formação dos hospitais psiquiátricos privados/filantrópicos entre os anos de 1961 e 1971: de 81 para 269 hospitais.
Comparando a evolução dos hospitais públicos, o salto é maior ainda: 72 hospitais públicos para 269 hospitais privados.
Sendo assim, os dados indicam que o paradigma manicomial não resultava somente da estagnação das estratégias de tratamento do sofrimento psíquico – estagnação extremamente prejudicial, tendo em vista que tais meios não serviam como tratamento propriamente dito do paciente, mas sim, como meio de excluí-lo do seio da sociedade para que esta tivesse o problema eliminado – apesar dos avanços da tecnologia medicamentosa e das psicoterapias no Brasil. Ele refletia a própria gestão dos recursos e a administração pública em si.
Nessa época, além do Ministério da Saúde e das Secretarias Estaduais de Saúde a assistência psiquiátrica também era de responsabilidade do Ministério da Previdência e Assistência Social (MPAS). Além de disponibilizar recursos, a função do Ministério da Saúde e das Secretarias Estaduais de Saúde era administrar macro-hospitais, que abrigavam não apenas as diversas formas de transtornos psicológicos, como também a população em situação de rua, sem especificação na direção de tratamento dos casos que para ali eram endereçados
Os hospitais/albergues recebiam verba da Previdência Social de acordo com os procedimentos realizados e os leitos ocupados. Dentro desse critério, a Previdência também pagava por uma categoria de leito denominada de leitos-chão. Os leitos-chão referiam-se aos pacientes internados sem que, todavia, houvessem leitos correspondentes. Somado a isso, o MPAS exercia a política de compra de leitos juntamente com o INPS já que o primeiro não possuía rede própria.
Os relatórios elaborados pelo MTSM localizavam o INPS e sua política de compra de serviços da rede privada como um dos piores retrocessos no campo da saúde. Tal sistema ocasionava uma gama de problemas, dentre os quais destacam-se:
O pagamento de serviços que não eram produzidos (ex: medicamentos não utilizados, pacientes fantasmas).
O pagamento de serviços que apesar de produzidos não se faziam necessários (ex: internações que poderiam ser tratadas em ambulatórios).
A privatização da saúde mental e sua localização como um dos setores da saúde mais privatizado: em 1941, os leitos psiquiátricos da rede privada passaram de 3.034 para 55.670; em 1965 os hospitais psiquiátricos que tinham convênio com o INPS totalizavam 100, aumentando para 276 no ano de 1976.
Esses dados mostram claramente que a mercantilização do setor ocorria de forma acelerada.
A inovação da Reforma Psiquiátrica: quando a política pública de saúde mental orienta o cuidado
A década de 1980 foi marcada por acontecimentos e transformações no campo da Saúde Mental. A crise na Previdência Social resultou em um novo convênio entre e a Previdência e o Ministério da Saúde. Esse convênio consistia em uma co-gestão dos hospitais, por parte das organizações sociais (OSs). Dessa forma, além de seu envolvimento no custeio, a Previdência também participaria do planejamento e avaliação das unidades hospitalares.
A aplicação do plano do Conselho Consultivo de Administração da Saúde Previdenciária (Conasp) reforçou e disseminou as propostas de mudanças trazidas pela co-gestão. A importância do fato diz respeito ao campo da saúde, de maneira geral, por trazer mudanças nas políticas públicas, tomando como princípios fundamentais: a descentralização, a integração interinstitucional, a hierarquização, a regionalização e a participação comunitária. As propostas e estratégias sugeridas pelo MTSM começaram a ser utilizadas no setor. Uma série de pré-conferências estaduais foram realizadas com o objetivo de organizar os profissionais para a I Conferência Nacional de Saúde Mental, na qual a participação inédita da sociedade civil na construção de um novo modelo assistencial – que deveria repudiar o modelo de isolamento social – somada à aspiração de que a conferência legitimasse as diretrizes propostas pelo MTSM, acabou por transformar a realização do evento em um embate entre a Divisão Nacional de Saúde Mental (Dinsan) e o MTSM. A despeito das tentativas da Dinsan, a I Conferência aconteceu em 1987 sob a direção do MTSM. Esta contou com a participação de 176 delegados eleitos em pré-conferências estaduais e demais segmentos representativos da sociedade. Sua estruturação compôs-se por temas fundamentais para a condução da Reforma:
Tema 1. Economia, sociedade e Estado: impactos sobre saúde e doença mental.
Tema 2. Reforma sanitária e reorganização da assistência à saúde mental.
Tema 3. Cidadania e doença mental: direitos, deveres e legislação do doente mental.
O eixo central desta I Conferência, realizada no final dos anos 1980 e antes da Constituinte, foi denunciar a posição ambígua do Estado no campo das políticas sociais e resgatar para a saúde sua orientação para a igualdade de direitos e o exercício da participação popular combatendo, para isso, a psiquiatrização do social pela expansão manicomial, a miséria social e institucional e, no âmbito das ações governamentais e privadas, sua alienação no campo da saúde. Nesse contexto, foi recomendada à Comissão de Sistematização da Assembleia Nacional Constituinte a solicitação de inclusão de um parágrafo terceiro ao item primeiro do relatório da Comissão de Saúde. É importante destacar, nessa época, a consolidação dos primeiros Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) no Brasil, ocorrido na cidade de São Paulo, em 1987, e o início em 1989 de um processo de intervenção – concretizando assim a necessária atuação do poder de polícia administrativo com vistas a fiscalizar e coibir desrespeitos às mudanças no sistema de tratamento dos indivíduos com transtornos mentais que estavam ocorrendo – da Secretaria Municipal de Saúde de Santos no Hospital Psiquiátrico Casa de Saúde Anchieta – instituição conhecida pela conduta de maus-tratos e elevado índice de mortalidade de pacientes; fato que repete a situação do Hospital de Olinda no século XIX. Neste mesmo período é elaborado o Projeto de Lei Paulo Delgado (Lei 3.657/89), que previa a desinstitucionalização progressiva dos pacientes e a extinção dos manicômios substituindo-os por dispositivos que dariam suporte ao paciente e seus familiares e objetivando a reinserção do paciente no meio familiar e social. Porém, a Lei definitivamente aprovada foi a já citada Lei de 10.216, de 6 de abril de 2001, avaliada pelo movimento da reforma como um ato genuinamente inovador e progressista. No contexto da promulgação da Lei 10.216, em 2001, o Ministério da Saúde passou a elaborar linhas específicas de financiamento para os serviços abertos e substitutivos ao hospital psiquiátrico e novos mecanismos são criados para fiscalização, gestão e redução programada de leitos psiquiátricos no país.
A partir desse ponto, a rede de atenção diária à saúde mental experimenta uma importante expansão, passando a alcançar regiões de grande tradição hospitalar, onde a assistência comunitária em saúde mental era praticamente inexistente. Nesse mesmo período, o processo de desinstitucionalização dos sujeitos que sofreram períodos de longa internação, e com sequelas de dependência institucional, é impulsionado pela criação do Programa De Volta para Casa, que é uma concretização do processo de reinserção social dessas pessoas, de forma digna e estruturada e que ainda inclui um auxílio-reabilitação de R$ 320 mensais; e da proposta de reabilitação psicossocial assistida, de responsabilidade pública, exigida pela Lei 10.216/01.
Uma política de recursos humanos para a reforma psiquiátrica fora construída e traçada uma política para a direção de tratamento do uso abusivo de álcool e outras substâncias psicoativas, incorporando a estratégia de redução de danos. Em 2004, ocorre em São Paulo o I Congresso Brasileiro de Centros de Atenção Psicossocial, reunindo 2 mil trabalhadores e usuários de Caps. Esse processo caracteriza-se por ações dos governos federal, estadual, municipal e dos movimentos sociais para efetivar a construção da transição de um modelo de assistência centrado no hospital psiquiátrico, para um modelo de atenção comunitário.
O contexto dos anos 2000 caracteriza-se, assim, por dois vetores simultâneos: a construção de uma rede de atenção à saúde mental substitutiva ao modelo centrado na internação hospitalar; e a fiscalização e redução progressiva e programada dos leitos psiquiátricos existentes. Os dados publicados pelo Ministério da Saúde em 2012 indicaram a consolidação da reforma psiquiátrica como política oficial do governo federal reforçando não só a redução progressiva e programada dos leitos psiquiátricos como também a construção de uma rede de atenção à saúde mental substitutiva ao modelo centrado na internação hospitalar. Verificou-se então no Brasil a seguinte vetorização das políticas públicas na área da saúde mental: de políticas públicas centradas em torno da constituição dos hospitais gerais e hospícios para políticas públicas centradas na atenção psicossocial.
Passando a boiada: quem são os interessados no retorno do modelo hospitalocêntrico?
Estamos no meio da pandemia de Covid-19 e de uma onda interminável de respostas de negação e indiferença perante a gravidade dessa emergência humanitária no Brasil. É por isso que decidi resgatar um pouco do tempo e do passado, da lembrança, e mostrar sua potência crítica contra o oportunismo neoliberal, que enxerga na emergência humanitária a oportunidade para passar a boiada das reformas estruturais. Reconhecer os dados aqui apresentados, e já publicados em documentos oficiais do Estado brasileiro, é fundamental para que coloquemos limites sobre o oportunismo que assola o governo federal e desmantela o conjunto de políticas públicas de saúde mental. Resta determinar quais são os principais agentes econômicos interessados no retorno de um modelo privatista e de pouca evidência quanto a eficácia.
Claudia Henschel de Lima é professora associada I da Universidade Federal Fluminense, Campus de Volta Redonda, professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia (UFRJ) e professora permanente do Mestrado Profissional de Administração Pública em Rede Nacional (PROFIAP/Capes).
Referências bibliográficas
Friedman, M (2005). The Promise of Vouchers. The Wall Street Journal.
Ministério da Saúde (1992) II Conferência de Saúde Mental. A Reestrutração da Saúde mental no Brasil: Modelo Assistencial. Direito à Cidadania. Distrito Federal: Ministério da Saúde.
Ministério da Saúde; Secretaria de Atenção à Saúde; Departamento de Ações Programáticas Estratégicas; Coordenação de Saúde Mental (2006). Saúde Mental em Dados 3. Ano I, nº 3, dezembro de 2006.
Ministério da Saúde; Secretaria de Atenção à Saúde; Departamento de Ações Programáticas Estratégicas; Coordenação Geral de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas (2012). Saúde Mental em Dados 10. Ano VII, nº 10, março de 2012.
Nascimento Alves,D.S., Fleury Seid, E.M., Schechtman, A. & Correia e Silva, R. (1992). Elementos para Uma Análise da Assistência em Saúde Mental no Brasil. In Ministério da Saúde. II Conferência de Saúde Mental (1992). A Restruturação da Atenção em Saúde mental no Brasil: Modelo Assitencial, Direito a Cidadania. Distrito Federal: Ministério da Saúde.