PEC 48 atropela a gestão territorial e ambiental em Terras Indígenas
Marco Temporal provoca embate entre sociedade civil e Congresso, movimento indígena alerta sobre os perigos para implementação de política pública com a tese ruralista
Direitos indígenas mais uma vez no palco da política brasileira, a bola da vez é a controversa Proposta de Emenda à Constituição (PEC 48), de autoria do senador Hiran Gonçalves (PP-RR). A medida busca alterar a Constituição Federal de 1988 ao propor modificações no artigo 231 sobre a demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas, estabelecendo um marco temporal específico na constituição cidadã brasileira. Para as lideranças indígenas, a PEC 48 ao alterar direitos originários, ameaça terras já demarcadas, criando um cenário de completa insegurança jurídica.
Em 2012, o Brasil instituiu a Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental em Terras Indígenas (PNGATI), firmada pelo Decreto nº 7.747, com o objetivo de garantir a conservação ambiental de terras indígenas. Fruto de ampla participação indígena, a partir de suas demandas e lutas, a política pública surgiu voltada para a proteção, recuperação e uso sustentável dos territórios indígenas, promovendo a qualidade de vida e respeitando a autonomia sociocultural dos povos.
Ao tornar os territórios mais vulneráveis a invasões, conflitos e ações violentas, a PEC 48 contraria a PNGATI. Essa proposta desafia a política pública que apoia os povos indígenas na gestão de seus territórios e recursos naturais, essenciais para a preservação das florestas. As diretrizes da PNGATI destacam e valorizam o reconhecimento e o respeito pelas contribuições dos povos indígenas, incluindo mulheres, jovens e idosos, na conservação da biodiversidade do Brasil. Elas também ressaltam a importância de que o Estado atue para garantir manutenção, recuperação e proteção dos recursos naturais nos territórios indígenas.
Nilcélio Jiahui, coordenador-geral das Organizações Indígenas do Alto Madeira (OPIAM), destaca que a aprovação da PEC 48 e toda a legislação anti-indígena atualmente em pauta, no Congresso, como a aprovação do Marco Temporal no ano passado – à revelia da decisão do Supremo Tribunal Federal – comprometeria a proteção ambiental e a permanência dos povos indígenas, afetando diretamente a política de conservação ambiental estabelecida pela PNGATI.
“A partir do momento em que essa PEC for aprovada, ela não garantirá mais território ou a permanência dos povos que preservam a natureza. Além disso, retira o direito de viver dos povos da floresta. Isso afeta diretamente toda a política construída para a preservação e proteção ambiental dos territórios indígenas, impactando a PNGATI, que foi criada para apoiar a manutenção da floresta em pé nas áreas protegidas, nos territórios indígenas”, aponta Nilcélio.
A PEC 48 é vista como ilegítima por muitas organizações, pois contraria políticas públicas já conquistadas. A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) observa que há um aumento na pressão de congressistas interessados em explorar recursos minerais nas terras indígenas, especialmente entre os membros da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), ainda, segundo a Apib, grupos interessados em madeira, nas terras e em minérios, como ouro, prata e cobre, lítio, nióbio e silício, estanho, sem mencionar os combustíveis fósseis como petróleo e gás.
Chico Apurinã, assessor indígena no Distrito Sanitário Especial Indígena Alto Rio Purus (DSEI- ARP), destaca que a PEC 48 cria um impasse significativo nas estratégias de proteção dos direitos indígenas, atrasando a mobilização para defender conquistas já realizadas e deixando as prioridades de discussão e planejamento das terras indígenas em segundo plano. “Essa medida traz diversas ameaças como as invasões das terras indígenas, exploração ilegal de madeira, atividades de exploração mineral, divisões dos povos indígenas e fragmentação da organização social. Até mesmo as instituições ambientais de proteção ao meio ambiente ficarão fragmentadas sem mencionar o risco de reduzir as terras indígenas já demarcadas”, afirma.
Em outubro, o Senado retomará a discussão da PEC 48 na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ), contrariando os marcos de sustentabilidade e de direitos territoriais garantidos na Constituição Federal de 1988.
Na avaliação da coordenadora-geral da Federação dos Povos Indígenas do Mato Grosso (Fepoimt), Eliane Xunakalo, a PEC também ameaça a proteção dos povos indígenas isolados, que enfrentam invasões constantes em seus territórios, colocando em risco a sobrevivência desses povos e a integridade dos territórios não demarcados. Vemos aqui outro atropelo na PNGATI, que também estabelece como diretrizes a proteção territorial e ambiental das terras indígenas, incluindo aquelas ocupadas por povos isolados e de recente contato.
Dados do Relatório de Violência contra os povos indígenas do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) referentes ao ano de 2023 mostram que foram registrados 30 casos de invasões em territórios com presença de indígenas em isolamento voluntário, situação que pode ser agravada com todo o avanço da legislação anti-indígena. Em 2023, foi aprovado pela Câmara, o Projeto de Lei (PL) 490/2007 e também no Senado, onde recebeu o número 2.903/2023 e foi, por fim, promulgado, dando origem à Lei 14.701/2023, denominada pelo movimento indígena como a Lei do Genocídio.
A situação de insegurança jurídica gerada pelo avanço do Marco Temporal tem acirrado ainda mais os conflitos nos territórios. Ainda segundo o Cimi, os estados com maior número de assassinatos no ano passado foram: Roraima (47), Mato Grosso do Sul (43) e Amazonas (36). O estado de Roraima, que lidera o ranking, é o mesmo do senador relator da PEC 48, o senador Hiran, região que tem estado na mira da exploração de petróleo e gás, além do garimpo.
Violência institucionalizada
O marco temporal envolve os interesses de diversos grupos, especialmente o agronegócio e parlamentares ligados à temática agrária, que, com a aprovação da Lei 14.701, tem contestado demarcações e acirrado os conflitos. Na última segunda-feira (5) de agosto ocorreu a primeira reunião da Comissão de Conciliação proposta pelo ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes. A Corte já havia declarado a inconstitucionalidade da pauta em decisão anterior, mas, ainda assim, insistiu em pedir a discussão. A Apib ameaça sair da composição da câmara de conciliação e denuncia racismo institucional por parte da Corte.
A dra. Judite Guajajara, assessora jurídica da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), esteve presente na última reunião de conciliação em Brasília, no dia (5) de agosto, e destaca algumas perspectivas sobre a temática. A advogada enfatiza que os eventos atuais são decorrentes de um movimento longo de deslegitimação das reivindicações dos movimentos indígenas. “O marco temporal não é uma tese política que surge do dia para a noite, mas uma reconfiguração do mecanismo instrumentalizado pelo Estado para a usurpação dos territórios indígenas. Essas estratégias, ao longo da história, foram empreendidas em detrimento desses povos, de maneira informal ou até legal. Diversas políticas estatais de institucionalização da violência contra os povos originários foram implementadas”, analisa.
Ela ressalta que o integracionismo, através de políticas estatais anteriores à Constituição de 1988, foi uma tentativa do Estado brasileiro de potencializar o extermínio da cultura dos povos originários, o que se reflete no atual marco temporal. O interesse na ocupação territorial e nos recursos naturais foi o motor dessas iniciativas.
Com a reconfiguração do contexto jurídico a partir da Constituição Federal, foram adotadas outras estratégias de deslegitimação dos direitos originários. “Hoje em dia, o que se vê são vários desrespeitos à legislação junto a essas tentativas de institucionalização. O Congresso atualmente tem atuado bastante em prol da violação dos territórios e coloca dificuldades para a aprovação de leis em favor dessa população”, relata.
Neste contexto, a conciliação demonstra-se uma medida segregatória: “Há uma tentativa de transferir a culpabilidade dos conflitos e das violências contra os povos indígenas para a própria Constituição, contra o artigo 231. Como advogada indígena, digo que é uma situação muito estranha atribuir a culpa da violência a um direito constitucional, uma cláusula pétrea. Em nenhum momento se estava realmente disposto a discutir diretrizes constitucionais, ou mesmo defender a proteção dos direitos fundamentais e da Constituição Federal. Havia um enviesamento político. Os grupos contrários aos direitos dos povos indígenas sentem-se mais fortalecidos com essa mesa de conciliação”.
Para a advogada, o marco temporal tem um impacto imediato na eficácia de políticas como a PNGATI, pois afeta a demarcação das terras indígenas, especialmente aquelas que não iniciaram ou não puderam concluir os processos demarcatórios. Ela analisa que medidas como o marco temporal criam uma grande fragilidade jurídica que não permite que essas sociedades exerçam seus Planos de Vida e as expectativas de futuro: “O impacto imediato se dará na ausência de políticas públicas básicas como a saúde, mas os impactos a longo prazo na vida dos povos indígenas só saberemos a partir das próximas gerações. As mulheres Guajajara dizem que, se a gente não tem a mata, se a gente não tem os pássaros, não há como fazer a transição de meninas para mulheres indígenas. As pessoas interessadas no território sabem disso e fazem questão de fragilizar desde a nossa identidade até o direito ao território.”
A garantia da terra aos povos indígenas ainda é um desafio do Estado brasileiro, mesmo com a nomeação de lideranças indígenas com a ocupação de espaços de poder, a aprovação da Lei 14.701/2023, que buscou deslegitimar a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) contra a tese do marco temporal e o forte lobby da bancada ruralista continuam colocando em risco os direitos indígenas. O movimento indígena é categórico e claro: sem território não há bem-viver, vida, enfrentamento às mudanças climáticas, nem política pública voltada aos povos originários.
A PNGATI tem como parâmetro a garantia de que os povos indígenas possam viver bem em seus territórios, com um ambiente equilibrado e com possibilidades de usufruir de seus recursos com autonomia e sustentabilidade, o movimento indígena permanece organizado e vigilante: “Na minha avaliação estas medidas impactam diretamente a PNGATI. Como podemos implementar uma política para o bem-viver dos povos indígenas, quando é retirado o seu principal direito que é a terra e a vida?”, questiona Sineia do Vale Wapichana, gestora ambiental do Conselho Indígena de Roraima (CIR).
Luana Luizy é jornalista pela UnB e mestra em Direitos Humanos e Políticas Públicas pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e atualmente analista de comunicação na Coordenadoria Ecumênica de Serviço (Cese). Lucas Santos Dias é jornalista pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e analista de comunicação na Coordenadoria Ecumênica de Serviço (Cese)