PEC 9/23 chancela exclusão de mulheres e negros na política
Estamos assistindo a algo que já está se tornando rotina no país: a tentativa de anistiar os partidos que não cumpriram a cota de financiamento de candidaturas ou não destinaram os valores mínimos em razão de gênero e raça nas eleições
Os indicadores que revelam as desigualdades de gênero e raça existentes no campo político brasileiro são reflexo dos nossos indicadores sociais, espelho da nossa sociedade racista, classista e sexista. Portanto, estamos assistindo, mais uma vez, a algo que já está se tornando rotina no país: a tentativa de anistiar os partidos que não cumpriram a cota de financiamento de candidaturas ou não destinaram os valores mínimos em razão de gênero e raça nas eleições, tal como demonstra a linha do tempo desenvolvida pelo instituto A Tenda das Candidatas, em abril de 2023, e disponibilizada em cartilha.

Créditos: Colagem do site A Tenda das Candidatas
Recapitulando brevemente, em 2022, através da EC 117/2022, foi inserida na Constituição Federal a obrigatoriedade de os partidos políticos destinarem percentual proporcional dos recursos de financiamento público para campanhas de mulheres (mínimo 30%) e pessoas negras. Essa regra já existia para as mulheres desde 2018, por determinação do STF e do TSE, tendo sido constitucionalizada através da EC 117. No entanto, através da mesma norma, os partidos políticos também aprovaram uma autoanistia que os absolvia da responsabilidade pelo não cumprimento da regra até 2022. O que já estava escancarado se confirmou: após a anistia concedida em 2022, a maioria dos partidos descumpriu a lei eleitoral estabelecida pela EC 117/2022 nas eleições de 2022 e não destinou os recursos financeiros obrigatórios proporcionais a gênero e raça. Regra ou lei, não importa, a burla e a consequente anistia parecem ser as únicas certezas.
Em 2023, como esperado, surgiu uma nova proposta de anistia, a PEC 9/23, a qual os partidos tentam aprovar – e estão conseguindo, haja vista a aprovação em dois turnos na Câmara dos Deputados, no dia 11 de agosto deste ano. Trata-se de uma nova emenda constitucional, com uma nova anistia para que os que não cumpriram a regra sigam sem cumprir, em claro prejuízo às candidaturas de mulheres e de pessoas negras.
As consequências dessa anistia ultrapassam a questão de menos recursos financeiros serem direcionados para mulheres e negros. Vão muito além até mesmo do problema da baixa representatividade desses grupos na política. Em um contexto político em que os direitos humanos estão em constante ameaça, no Brasil e no mundo, um ataque aos direitos políticos de maiorias sistematicamente minorizadas pode ser irreversível. Ao retirar esses direitos políticos, o que está sendo feito é a limitação desses grupos nos espaços de poder e decisão. E também de outros grupos historicamente oprimidos, como os LGBT+ e indígenas.
Isso significa que as investidas contras os direitos das mulheres e negros, que são direitos humanos, terão menos possibilidade de resistência e combate, uma vez que esses grupos não estarão – como não estão e nem nunca estiveram – com o poder proporcional de decisão. Portando, a aprovação da PEC 9/23, que chancela a exclusão de mulheres e negros da política, significa também o enfraquecimento desses grupos frente a defesa de todos os seus direitos. É preciso fazer a devida conexão entre esse retrocesso e o potencial de inúmeros outros que inevitavelmente virão como decorrência dele.
Em um momento em que deveríamos estar discutindo quais são as formas de aprimorar a lei, para aumentar a representação política de mulheres e pessoas negras, estamos precisando lutar e explicar o problema de mais uma anistia. E o caminho nós sabemos: é necessária a criação de fiscalização e regulamentação eficazes para que a lei tenha parâmetros que delimitem melhor os critérios do repasse, de forma a efetivamente chegarem onde precisam; é preciso que fique explícito quais são os tipos de candidaturas que as cotas de financiamento contemplam (se apenas proporcionais ou também majoritárias); é imprescindível que se garanta que esse percentual não seja direcionado apenas a um ou poucas mulheres ou pessoas negras. Além disso, o tempo importa, por isso, é necessário a garantia de que os recursos direcionados a mulheres e negros sejam repassados em tempo hábil para uso, e não só para constar no final que ele foi cumprido.
No entanto, o que estamos assistindo agora é justamente o caminho contrário: estamos testemunhando representantes, em sua maioria homens brancos, de partidos de todo o espectro político, contribuírem para enfraquecer uma lei que tem como objetivo o fortalecimento de nossa democracia. Ao aprovarem mais uma anistia no que diz respeito ao não cumprimento de leis de ações afirmativas na política, o recado que fica mais uma vez é que, quando se fala em dinheiro, não há discurso partidário pró-igualdade que se sustente (com pouquíssimas exceções). Assim, a tramitação da PEC 9/23, que seguirá para o Senado, após já ter sido aprovada em dois turnos na Câmara dos Deputados, representa uma evidente ameaça não apenas aos direitos das mulheres, negros, indígenas e LGBT+, mas também à democracia brasileira.
Laura Astrolabio é diretora e cofundadora da Tenda das Candidatas. Advogada, especialista lato sensu em direito público, tendo atuado como advogada do Sindicato dos Trabalhadores em Educação da UFRJ (2005-2018), mestre de políticas públicas em direitos humanos do NEPP-DH-UFRJ, pesquisa democracia, relações étnico-raciais, gênero, representação política, políticas públicas e sub-representação de mulheres na política, autora do livro “Vencer na vida como ideologia : meritocracia , heroísmo e ações afirmativas”. Co-autora dos livros “Tem saída ? Ensaios críticos sobre o Brasil” e “A Constituição por elas”. Articuladora política do movimento Mulheres Negras Decidem.
Hannah Maruci também é diretora e cofundadora da Tenda das Candidatas. Mestra e Doutora em Ciência Política pela Universidade de São Paulo, onde desenvolve pesquisa sobre a sub-representação das mulheres na política. Atua com formação de mulheres para a política desde 2015, tendo atuado como Agente de Governo Aberto no município de São Paulo, como coordenadora de projetos na Coordenação de Políticas para as Mulheres da Prefeitura de São Paulo, pesquisadora na Fundação Getulio Vargas e, mais recentemente, como professora de Ciência Política na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Foi pesquisadora visitante na Universidade de Humboldt (Alemanha). É coautora do livro Candidatas em jogo: um estudo sobre os impactos das regras eleitorais na inserção de mulheres na política e do manual Orçamentos Sensíveis a Gênero e Raça.