Pelos becos e vielas da periferia
Nas duas últimas décadas surgiram novidades no mercado editorial brasileiro: jovens da periferia começam a mudar o setor, engrossam o número de leitores no país, produzem literatura de qualidade, criam novos selos, multiplicam ações independentes e elevam a autoestima das camadas mais carentes da população
O panorama literário do país é dominado por livros didáticos, de autoajuda e religiosos. Porém, aos poucos, as grandes editoras vão percebendo a força de uma nova literatura que pulsa nos grandes centros urbanos. Usando a internet como vitrine, seus autores abusam da criatividade e aproveitam o avanço tecnológico para lançar produções de alto nível, sem o respaldo de um nome consolidado no mercado.
Entre os anos de 1990 e 2000, o volume de publicações no Brasil dobrou, segundo dados do Sindicato Nacional dos Editores de Livros. E a tendência de aumento da produção, assim como do número de leitores e do faturamento do setor se mantêm crescentes1, devendo-se, também, ao surgimento de diversas pequenas editoras.
A profusão de novos selos espalhados por todo o Brasil comprova que são elas as responsáveis pela renovação da literatura contemporânea, uma vez que buscam e encontram novos autores, além de publicarem suas obras e servirem, muitas vezes, de porta de entrada para editoras maiores.2
Como exemplo dessa tendência, podemos citar a editora Medusa, em Minas Gerais, extinta no final dos anos 1990 e que lançou nomes importantes da poesia contemporânea. No Rio de Janeiro, a editora 7Letras é dona de um vasto catálogo literário e tem entre seus autores nomes como Cacaso, Chacal e Carlito Azevedo. Em São Paulo, a editora Ciência do Acidente foi responsável pela captação de escritores em diversas partes do país. Idealizada por Joca Terron, publicou autores importantes como Marçal Aquino e Glauco Mattoso. Em Porto Alegre, a Livros do Mal, especialista em prosa contemporânea, deu notoriedade impressa a nomes que já faziam sucesso na internet, como Daniel Galera e Daniel Pellizzari – escritores e idealizadores da marca.
Galera avalia que o cenário, hoje, é favorável a quem quer escrever um livro. Para ele, não é difícil ser escritor no Brasil, no que concerne à produção. “O difícil é ser lido por mais que poucas centenas de pessoas, porque há poucos leitores para livros que não sejam espíritas ou de autoajuda.” Hoje, quem não consegue uma editora pode recorrer à internet, a edições independentes e outros meios. “Não estou falando em ganhar dinheiro com a literatura, o que é um pouco mais complicado”, pondera.
A escritora gaúcha Clarah Averbuck, que trabalhou com Daniel Galera em importantes projetos na internet, acabou de ser selecionada no programa Petrobras Cultural e vai ganhar bolsa para escrever o quarto livro de sua carreira. “Isso sim é vida”, comemora. A garantia de remuneração para quem, por opção ou por “estar no sangue”, vive de escrever, não é muito precisa. “Os textos são mal pagos. Isso quando não têm a cara de pau de pedir um texto de graça.”
Um fato obrigou Clarah a tomar uma atitude, no mínimo, inusitada. “Comprei um lote do meu próprio livro, Máquina de pinball, da editora, porque eles pretendiam fazer um saldão e comercializar os que estavam no estoque a preços ridículos, alegando que estavam se estragando.” Nos exemplares adquiridos, a autora não notou nenhum exemplar danificado. O estranhamento ainda é maior quando analisado do ponto de vista comercial. O filme Nome próprio, lançado há poucos meses, é baseado nessa obra, de sua autoria. A atitude da editora parece vir na contramão do mercado. “As pessoas não compravam o livro simplesmente porque não o encontravam. Eu mesma comprei tudo e comercializei. Senti-me uma marginal, não fazendo literatura marginal.”
Joca Terron, designer gráfico, escritor e editor, atribui a dificuldade de fazer literatura no Brasil a um problema estrutural. Para ele, é tão difícil como fazer qualquer outra coisa que não pertença à atual escala de valores das pessoas. “Infelizmente, as pessoas valorizam o que não tem valor. Preferem bijuterias à educação. Mas quem poderia culpá-las por desprezar o que não conhecem?”, questiona.
No entanto, os esforços somados para a promoção da leitura, de novos escritores e a sustentabilidade do ofício de escritor vêm ganhando fôlego a cada dia. Marcelino Freire, para quem “escrever é uma maldição”, acredita que o cenário editorial do Brasil está melhorando. Eventos como festas literárias, bienais, bolsas de criação e prêmios aquecem o mercado e incentivam a produção de novas histórias.
Autor de cinco livros publicados e ganhador do prêmio Jabuti de 2006 com o título Contos negreiros, Marcelino figura entre os principais nomes (e agitadores) da nova geração de escritores. De sua relação visceral com a literatura surgiu a “Balada Literária”, evento que, desde 2006, reúne anualmente quase uma centena de escritores, nacionais e internacionais, no bairro paulistano da Vila Madalena. O segredo é não parar nunca. “Tenho de lembrar que sou um escritor contemporâneo, desconhecido. Tenho de catar o leitor à unha. Sair do casulo à procura de novas frentes. O negócio é fazer. Escrever, escrever, escrever, sem concessão. O resto acaba se ajeitando.”
O movimento em prol da literatura ultrapassa os grandes centros, ganha os becos da periferia e ilumina as “quebradas” com discussões que antes pareciam pertencer apenas a um grupo social mais privilegiado financeiramente. Sob o prisma de uma linguagem que está longe de obedecer à norma culta, lança mão de gírias, denuncia o dia-a-dia nada fácil de quem vive às margens da sociedade, mescla dificuldade e criminalidade a um lirismo dolorido e promove resultados surpreendentes. O movimento recebe a alcunha de “literatura marginal”. O termo já teve diferentes empregos e significados. Literatura marginal foi definida ora para classificar as obras literárias produzidas e vinculadas à margem do mercado editorial, ora para o tipo de linguagem apresentada, ou ainda para temáticas peculiares aos sujeitos ou espaços tidos como marginais.3
Ao que parece, a “nova literatura marginal” é uma síntese de todas as definições anteriores, constituindo, sobretudo, a resistência e o esforço para preencher as lacunas deixadas pelo poder público. A apropriação do termo tal como colocado aqui foi feita pelo escritor Ferréz em três antologias veiculadas pela revista Caros Amigos, nos anos 2001, 2002 e 2004.
Para Fábio de Souza Andrade, crítico literário e doutor em teoria literária pela Universidade de São Paulo, a publicação, que derivou no movimento “literatura marginal” como instrumento de afirmação e conhecimento, “faz da literatura veículo de crítica e se constitui como alternativa à pouca atenção do Estado e ao esgotamento de outras esferas de atuação política”.
Ferréz lembra bem da realidade do seu bairro, Capão Redondo, zona sul de São Paulo, em meados de 1997, quando lançou seu primeiro livro. Fortaleza da desilusão foi feito de forma independente, editorado e vendido pelo próprio autor, de porta em porta.
Não se falava em literatura, pouco se sabia sobre ela nos arredores. Sem bibliotecas, sebos ou espaço para debates, o autor invadiu os shows de Rap – comuns na região – e debates políticos pedindo licença para dar uma fita sobre seu livro. Dessa forma, apresentou a seus companheiros a forma de expressão escrita, culminando no debate sobre literatura e abrindo um foco de interesse onde o ensino público não gera grandes resultados, a livraria não existe e o centro está longe demais.
Em 2000, Ferréz escreveu Capão pecado, que virou best-seller, foi publicado em cinco países e adquirido pelo governo federal para o acervo das bibliotecas públicas.
A ação inicialmente solitária de Ferréz ganhou expressão e agentes. Organizado e motivado pela edição da Caros Amigos, o movimento adquiriu forma e expressividade e desencadeou novos projetos. Hoje há saraus literários, quase todas as noites, em vários pontos do bairro. Poetas proliferam, seguindo o nome de maior evidência do Capão. O resultado disso tudo? “As pessoas leem mais para escrever melhor”, diz Ferréz, citando o clássico de Aldous Huxley, “As portas da percepção são escancaradas. E isso constrói uma sociedade melhor”.
Entre outras atividades, Ferréz criou uma biblioteca comunitária e distribui livros e revistas gratuitamente em escolas, unidades da Febem (agora Fundação CASA), presídios e favelas. Preocupação quanto ao estilo do que é produzido parece não ser o mais importante. “O que vale é fazer, ‘passar a letra’ para quem merece e se identifica com aquilo.”
“Quando a gente diz ‘nóis vai’ é porque nós vamos mesmo.” A afirmação é de Sérgio Vaz, poeta e morador do bairro Pirajussara, no município de Taboão da Serra. Já publicou quatro livros e há sete anos fundou a Cooperifa, definida como um “movimento cultural de resistência da periferia”. A iniciativa agrega artistas amadores e profissionais de diversas áreas, como músicos, artistas plásticos, atores e poetas, que se reúnem semanalmente no bar “Zé Batidão” no Jardim Guarujá, zona sul de São Paulo, para expor seus produtos artísticos em saraus.
Menos preocupado com o surgimento de novos autores, o Sarau da Cooperifa tem o compromisso de despertar novos leitores. As edições de quarta-feira no boteco do Zé chegam a juntar 200 pessoas da comunidade. São crianças, adultos, jovens, pedreiros, advogados, músicos, professores, comerciantes, aposentados, entre tantos. Para participar, basta dar o nome e declamar poesias próprias ou de escritores conhecidos.
A afirmação de Vaz parece verdadeira. Segundo o poeta, a periferia tem feito a sua parte no incentivo à leitura. “Só em 2008 lançamos mais de 30 livros na comunidade. O livro, que outrora era para nós um desconhecido, hoje circula livremente pelos becos e vielas da nossa quebrada.”
Na avaliação do crítico literário Fábio de Souza, o movimento dos saraus tem fôlego na periferia e não pode ser negligenciado. “Põe na ordem do dia a importância da elaboração simbólica, cria debate e sentido numa experiência de exclusão, carência e violência cotidianas que tem poucas frentes de superação.”
No entanto, ele pondera que o rótulo “marginal” cresceu enormemente e comporta outras formas de arte profundamente mediadas pela lógica de mercado, ou que migraram para o centro do cânone. “Sua apropriação para fins de marketing não é novidade.”
“Marginal”, para ele, não pode ser chancela imediata de qualidade para a matéria artística. “Não é porque alguém se ocupa da violência contemporânea e põe em foco a periferia que será necessariamente crítico. A forma de expressão faz toda a diferença” alerta.
Mas as ações da periferia não parecem se ocupar destes questionamentos. Ferréz admite que exista a perspectiva de fazer um trabalho com qualidade cada vez maior, mas que o compromisso é com a mobilização, sempre. Sérgio Vaz questiona: “Queria perguntar para todos aqueles que se incomodam com a nossa literatura produzida na periferia: para quem a gente tem de pedir licença para escrever?”.
Novos selos
O engajamento da população que vive na periferia de São Paulo e os novos nomes de todo Brasil que figuraram nas antologias idealizadas por Ferréz criaram um movimento maior, a editora Literatura Marginal.
Além de continuar o trabalho de divulgação de escritores desconhecidos, a iniciativa tem um projeto ousado para este ano: o selo LM editará livros de novos autores e também de escritores marginais conhecidos do grande público, como Plínio Marcos, Lima Barreto e John Fante, a preços muito acessíveis. Tais edições só serão vendidas na periferia, e a equipe de oito integrantes da LM já mapeou e escolheu as bancas que receberão os exemplares em São Paulo.
A mesma literatura que motivou Ferréz, serviu de instrumento para a artista plástica Lúcia Rosa ajudar a tecer um futuro melhor para vários catadores de lixo e seus filhos. Lúcia é coordenadora do projeto “Dulcinéia Catadora” que, desde o ano passado, vem ganhando notoriedade e fazendo história no cenário da literatura e da ação social.
Com sede em uma ONG no centro de São Paulo, a editora Dulcinéia Catadora publica livros produzidos de forma totalmente artesanal, utilizando papelão para capa e papel reciclado, nos quais são impressas histórias de autores iniciantes e escritores de reconhecido valor literário.
Os oito jovens que integram o projeto compram o papelão por R$ 1 o quilo – valor 3 vezes mais alto que o mercado comum – e fazem a criação das capas. Junto com artistas plásticos, aprendem a lidar com pinceis, tintas, cores e apuram o olhar. Os participantes, com idade entre 17 e 20 anos, agora viajam pelo país apresentando o projeto, lidam com novas realidades e conhecem hábitos não pertencentes ao seu mundo até então. Hospedam-se em hotéis, desafiam-se a encarar o público e ganham novos horizontes. Por um dia de trabalho, os meninos recebem R$ 30. Isso garante uma renda mínima para que possam sonhar com um futuro de boas possibilidades.
Até o momento, a Dulcinéia já publicou 44 autores, fora a antologia dos saraus da Cooperifa e a Antologia Bêbada. A escolha dos textos é feita por um conselho editorial. Marcelino Freire, Glauco Matoso, Alice Ruiz e Joca Te
rron engrossam o rol dos escritores mais expressivos da atualidade, publicados pelo selo.
*Fabiana Guedes é jornalista.