A pergunta sobre se o Conclave elegerá um papa conservador ou progressista é limitada
O próximo papa olhará para onde e a partir de onde? Quais reformas irá propor e quais não fará?
A morte de Francisco, em 21 de abril de 2025, encerrou um dos papados mais marcantes da história recente da Igreja Católica. Como era de se esperar, o debate sobre seu sucessor reacendeu uma questão recorrente: o próximo papa será conservador ou progressista? Essa pergunta, no entanto, carrega armadilhas. Para começo de conversa: o que define, afinal, um papado como conservador ou progressista?
O papa Francisco, nascido em contexto peronista e conectado com valores da Teologia da Libertação, foi lido por muitos como “progressista”. Seu estilo pastoral e humanista ambiental, abriu portas a grupos historicamente marginalizados na Igreja: indígenas, dissidentes do gênero, prostitutas, imigrantes, trabalhadores, pessoas em situação de rua e outros povos. Ao mesmo tempo, Francisco manteve posições tradicionais e restritivas sobre família e aborto. Sobre aborto, Francisco enfatizou o perdão às mulheres que praticam, mas usou das mesmas armadilhas linguísticas no estímulo ao mito criado pelo Vaticano sobre “ideologia de gênero”, como fez seu antecessor. Isso o torna conservador?
Francisco criticou duramente o capitalismo, denunciando a “economia do descarte” e defendendo justiça social e ambiental. Ainda assim, não avançou em temas como a ordenação de mulheres e a ampliação de direitos dentro da estrutura clerical. Isso o torna progressista? João XXIII, declaradamente anticomunista, por exemplo, foi ao mesmo tempo apoiador da propriedade privada e um defensor da dignidade do trabalho e do direito à associação dos trabalhadores, como expresso na encíclica Rerum Novarum. Isso o torna “conservador” ou “progressista”? Essa dicotomia parece insuficiente para analisar os carismas e legados papais.
Segundo a pesquisadora Brenda Carranza (Unicamp), o papa Francisco atuou a partir de uma teologia da “governança pela acolhida”, especialmente ao abençoar casais homoafetivos — o que, para setores conservadores, já era escandaloso. Por outro lado, a ausência de reformas estruturais também o distancia das expectativas mais progressistas. Francisco, por sua vez, teve o desafio de suceder um papado marcado por denúncias de corrupção e escândalos sexuais, promovendo uma proposta pastoral mais transparente e acessível — ainda que sem romper com estruturas hierárquicas e coloniais de poder.

More:
View public domain image source here
A própria pergunta sobre se o Conclave elegerá um papa conservador ou progressista é limitada e revela seu anacronismo. Trata-se de categorias forjadas na modernidade, especialmente a partir da Revolução Francesa, que não dão conta da complexidade interna da Igreja Católica — como observou o professor Rodrigo Oliveira (PUC-MG). Como ele reflete, a Igreja Católica é harmoniosamente conflituosa: sustenta tensões e disputas que atravessam os séculos, sem se encaixar perfeitamente em dicotomias modernas, ainda que não esteja alheia a elas. Mais apropriado, talvez, fosse usar o termo “tradicional”, pois recorrer a conceitos como conservador ou progressista para interpretar questões religiosas é, muitas vezes, reduzir aquilo que é mais central no catolicismo: a sua longa tradição.
A reação à morte de Francisco revela fissuras internas na tradição do catolicismo. Papas respondem a contextos históricos, pressões internas e externas, e operam com carismas pessoais e institucionais no contexto geopolítico. Enquanto setores progressistas com a morte de Francisco se veem órfãos de um papa que restaurou, em certa medida, a autoestima da Teologia da Libertação, grupos como os “bentovacantistas”, que negaram a legitimidade de Francisco e cultuam a figura de Bento XVI, forjados em grupos herdeiros da Tradição, Família e Propriedade (TFP), mantêm silêncio ou desdém sobre a morte do papa, preferindo um modelo de cristandade católico-extremista. Diante disso, talvez devêssemos nos perguntar menos sobre o “perfil ideológico” do próximo papa e mais sobre qual será o carisma do próximo papa.
Papas confluem carismas e a depender, estão menos ou mais preocupados com temas contemporâneos. O sucessor de Francisco terá que lidar com desafios profundos e conflitos atuais assumidos por seu carisma humanista: manter o olhar para as periferias, sustentar o diálogo inter-religioso, enfrentar o extremismo interno e externo, denunciar guerras e injustiças e, sobretudo, manter a coragem profética de escolher um lado na história geopolítica. O papa Francisco assumiu o sofrimento e um lado, mantendo a tradição, como pauta pastoral. Denunciou o genocídio em Gaza, acolheu refugiados e deslocou o centro da Igreja para o Sul Global.
É utópico crer que o novo papa falará em queda do poder patriarcal-colonial do Vaticano ou que teremos uma igreja dissidente com avanços nos temas da sexualidade e nos direitos reprodutivos, pois estes signos morais da tradição católica, o sustentam. Também é utópico crer que o novo papa adotará o apelo de “bentovacantistas” para um retorno exclusivo ao passado por meio de ritos tridentinos, como ocorreu no Concílio de Trento. Talvez esteja aí a grande diferença entre as fissuras internas na atual tradição do catolicismo: um setor quer empurrar a Igreja para uma reforma de futuro e outra para uma reforma do passado. O próximo papa olhará para onde e a partir de onde? Quais reformas irá propor e quais não fará? Como escreveu Giuseppe Tomasi di Lampedusa em O Leopardo: “tudo deve mudar para que tudo fique como está”. Talvez seja assim que o novo pontífice, que será eleito em breve, encontrará a Igreja Católica. Em transformação e, ainda assim, a mesma.
Tabata Pastore Tesser é Doutoranda em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP) e pesquisadora da linha de pesquisa Gênero, Religião e Poder do Laboratório de Antropologia da Religião (LAR-Unicamp). E-mail: [email protected]