Perseguição aos africanos
Apesar de relatado como ataque xenófobo contra os imigrantes africanos e do Leste europeu, o recente incidente, conhecido como a “revolta de Rosarno”, na Itália, traz uma engrenagem mais complexa que envolve fatores como atuação da máfia e a crise europeiaChristophe Ventura
A carroceria de um veículo carbonizado jaz abandonada, perto do gradil do antigo Opera Sila. Às portas dessa antiga fábrica de transformação de azeitonas, é que se divisa o último vestígio da “revolta de Rosarno”. Em 7 de janeiro de 2010, essa localidade agrícola calabresa de 16 mil habitantes se metamorfoseou em palco de insurreição, depois que um jovem togolês, empregado temporário, Ayiva Saibou, foi ferido por balas de chumbo. Ele voltava da plantação de laranjas, onde 900 trabalhadores viviam uns sobre os outros, em condições sanitárias deploráveis.
“Aquilo foi demais, nos revoltamos”, lembra um deles. “Mas uma parte da população se voltou contra nós e nos atacou”. Diante da violência descontrolada de uma batalha durante a qual uma chuva de pedaços de pau, barras de ferro e coquetéis Molotov se abateu sobre a cidade, em 10 de janeiro, o Estado acabou providenciando a evacuação de mais de 700 imigrantes, em caráter de urgência, rumo às cidades de Crotona e Bari1.
Por que os acontecimentos de Rosarno explodiram em 2010 se a situação econômica e as condições de vida de cidadãos de fora da comunidade já eram conhecidas desde o fim dos anos 1990? A imprensa italiana se limitou a ver essa violência coletiva como uma reação xenófoba. “Revoltas racistas”, “Caça aos imigrantes”. A Itália, “um país unido pelo racismo”, escrevia o The Guardian (10 de janeiro de 2010). Mas essas razões não são suficientes para dar conta da engrenagem desencadeada no início do ano.
À primeira vista, nada distingue essa situação de outras zonas de agricultura intensiva – em particular a Andaluzia2. Nesse modelo de exploração, “a presença de mão de obra sazonal temporária é um fator estrutural. Na Calábria, 95% desses trabalhadores são recrutados de modo irregular”, garante Giuliana Paciola, do Instituto Nacional de Economia Agrária (INEA).
Em 2009, mais de 10.500 trabalhadores de Gana, Senegal, Costa do Marfim, Nigéria e Mali, com ou sem papel – e outros, vindos dos países do Leste europeu, recentemente integrado à União Europeia – trabalharam na região contra 800, em 1989. Só durante o ano de 2009, o número cresceu 30%.
Em geral clandestinos, sem contrato de trabalho, recebendo entre 20 e 25 euros por dia – metade do que ganha um trabalhador regular local – ou um euro por caixote de laranjas, eles trabalham dez horas por dia, de manhã até o entardecer. O “capo” (chefe), que os contrata por jornada de trabalho, fica com parte dos ganhos. Intermediário entre o dono da terra e o operário agrícola, o capo ocupa um lugar central no sistema de recrutamento, influenciado pelo crime organizado, ao qual ele está em geral ligado, em especial nas grandes explorações agrícolas que empregam os “braccianti” africanos.
A partir de 2008-2009, concentrado na Planície de Gioia Tauro – com uma mão de obra numerosa, explorada pela máfia ‘Ndrangheta –, o setor de cítricos mergulhou numa crise sem precedentes. “A queda constante do preço da laranja industrializada, maior parte da produção da planície, tornou-se vertiginosa, chegando ao patamar de 5 cêntimos de euro por quilo”, explica Antonino Inuso, presidente da Confederação Italiana de Agricultores (CIA) da província de Reggio di Calabria. “Só no segundo semestre de 2009, o ganho médio dos agricultores da planície diminuiu 25%.”
Queda dos preços internacionais, forte concorrência de laranjas estrangeiras (sobretudo vindas do Brasil) e fim do preço garantido pela Política Agrícola Comum (PAC): todos esses motivos contribuíram para a degradação da rentabilidade do cultivo de cítricos.
Eleição de prefeitos e conselheiros municipais amigos, controle da administração e empresas de gestão de serviços: práticas que se inscrevem em uma longa tradição da ‘Ndrangheta. Na cultura de cítricos, ela impõe seu preço de venda aos produtores e controla o setor de transformação, transporte e comercialização. Todo o processo está corrompido pelo monopólio mafioso: “Um quilo de laranjas para consumo direto é vendido a 50 centavos de euro pelo agricultor ao comerciante. Esse preço é imposto pela máfia que controla a distribuição e o mercado. Nenhum agricultor consegue vender sua produção por outro preço. E, desse preço, 8 centavos representam o custo de trabalho – 4 centavos quando é sem carteira assinada. Na ponta dessa cadeia, o quilo chega a ser revendido por 2,50 euros, no supermercado”, explica o “comissário extraordinário”3de Rosarno, Domenico Bagnato.
E isso não é tudo. Veterano na luta antimáfia e procurador da República do tribunal de Palmi, Giuseppe Creazzo especifica o detalhe dos métodos que permitem à ‘Ndrangheta desviar recursos públicos regionais, nacionais e europeus. “No setor agrícola, em especial na oleicultura e na citricultura, o controle das terras possibilita aquilatar o apetite dos clãs. O fato de comprá-las e torná-las produtíveis permite ‘lavar’ seu capital, mas também ter acesso a fundos públicos, a começar pelos da União Europeia.” Uma atividade extremamente lucrativa. Em 2007, as autoridades italianas identificaram na Calábria 451 casos de fraudes (dos fundos europeus e dos fundos públicos do Estado italiano), num montante de 125 milhões de euros.
Seguro-desemprego
Na região, um operário rural que tenha trabalhado 51 dias na estação se beneficia de uma indenização, um seguro-desemprego pelo resto do ano. Esse mecanismo também sofreu a ação fraudulenta da máfia e de uma parte dos pequenos proprietários fundiários: eles declaram serem agricultores, pessoas que na verdade não são (“falsi braccianti”) ou fazem outros trabalharem no lugar delas. Com 135.000 operários inscritos no Istituto Nazionale della Previdenza Sociale (INPS, instituição responsável pelo pagamento dos benefícios sociais), dos quais 75% recebem ajuda na forma de indenização4, a Calábria tem a taxa de beneficiários mais alta da Itália”, ressalta Giuliana Paciola. “O INPS saiu de sua letargia e fez a revisão da lista de beneficiários dessas indenizações. E os reduziu à metade desde 2008.”
Ela acrescenta o fato de que a crise econômica generalizada empurrou para o Sul um número significativo de trabalhadores migrantes portadores de documentos, mas subitamente reduzidos à condição de desempregados pelas indústrias do Norte. Exatamente no momento em que, na Planície de Gioia Tauro, a demanda de mão de obra na lavoura de cítricos diminuía drasticamente.
Assim, a partir de 2008, em Rosarno, quatro fatores se encaixaram, parcialmente independentes um do outro, aumentando as tensões econômicas e sociais: a crise do setor de cítricos (o que diminuiu a produção local e afetou o ganho dos agricultores); a modificação dos critérios de atribuição de subvenções europeias (o que tornou a atividade menos atrativa para a ‘Ndrangheta); decisões do INPS (que abalaram um sistema de ganho artificial, do qual beneficiava-se uma parte da população); e por fim, os primeiros efeitos na Itália da crise econômica internacional. Esses diversos elementos – e não somente o racismo – levaram à incandescência as tensões entre os diferentes grupos sociais, sobretudo os pequenos agricultores e os trabalhadores migrantes.
Mas a ‘Ndrangheta continua a exercer seu controle sobre a região. E a aumentar seus lucros faturando em cima de todos
Christophe Ventura é jornalista.