Pesca na banheira
A maioria das aplicações baixadas gratuitamente vão lhe atribuir outro dedo-duro, muito mais intruso, chamado spywareJacques Nantel|Ariane Krol
Na semana passada, você comprou uma passagem de avião para Montreal. Após verificar as tarifas no site da companhia aérea, você navegou pela internet em busca da melhor oferta e, finalmente, retornou à página original. Para sua grande surpresa, o preço havia subido. Assim, você se viu apressado para reservar o bilhete antes que o valor aumentasse ainda mais.
Você foi enganado.
O site, sem dúvida, se aproveitou de sua primeira visita para registrar o endereço IP1 de seu computador ou, melhor ainda, para inserir um cookie2 em seu navegador. Desse modo, pôde segui-lo na web e identificá-lo como um cliente em potencial: com certeza, você tinha muita vontade de viajar. Quando voltou para procurar a passagem desejada, ele o reconheceu e aumentou o preço para pressioná-lo a concluir a transação.
Usuário da Amazon e do site da Fnac, você se sente como uma criança em uma loja de brinquedos. O melhor de tudo: os títulos recomendados parecem superar suas expectativas. Um vendedor que conhece seus gostos melhor que seus amigos? Difícil resistir. No entanto, esse mecanismo, chamado “filtragem colaborativa”, não é novo. Criado em grande parte em 1995 nos laboratórios do Massachusetts Institute of Technology (MIT), ele permite reagrupar indivíduos com perfis de navegação e de consumo similares. Ao clicar em álbuns, você acredita ser o único no mundo a gostar, ao mesmo tempo, de Gainsbourg, das óperas de Rameau e do Metallica? Não se engane. Pode apostar que milhares de pessoas já compraram esses discos simultaneamente. Gravados e analisados, esses dados permitem calcular as probabilidades de compra de um cliente em potencial em função das páginas que ele visita. Só resta ao vendedor lhe propor o que seus “clones” já compraram e que você ainda não tem.
Essa abordagem baseada em poderosos algoritmos fez maravilhas para a Amazon, gigante do comércio on-line. Suas vendas anuais médias por cliente nos Estados Unidos, antes em US$ 160, ultrapassaram os US$ 240 após a adoção desse sistema de recomendação. Já em 2006 a empresa anunciava que mais de 30% de suas vendas eram realizadas pelas recomendações feitas aos consumidores.3 Um sistema tão eficiente que o site pergunta até se você está comprando esse artigo para você ou para oferecê-lo de presente, a fim de não corromper seu perfil de consumo.
Bem-vindo ao novo mundo do marketing personalizado. Um mundo que quer seu bem… e fará de tudo para consegui-lo. No início dos anos 1980, analisar, por meio de sondagens junto aos consumidores, suas estratégias em função dos “segmentos” visados – donas de casa com mais de 50 anos, profissionais liberais de menos de 35 anos com renda superior a 210 mil francos e que jogam tênis pelo menos duas vezes por mês etc. – era o objetivo final. Os especialistas do setor pescavam de certo modo com rede, depois de seu sonar assinalar um cardume de peixes da espécie almejada. Hoje, não são mais os jovens de menos de 35 anos ou qualquer outro segmento que os interessa: é você. Sem redes, sem sonar: a pesca é feita em uma banheira.
Para isso, os especialistas contam com a cooperação cotidiana – mas mais frequentemente inconsciente – de seus clientes. Os usuários do Facebook, por exemplo (mais de 1 bilhão), fornecem gratuitamente uma mina de informações que qualquer indivíduo razoável se negaria, há alguns anos, a dar a um vendedor: perfil sociodemográfico (idade, sexo, educação, cidade de residência) e, muitas vezes, gostos musicais, lista de amigos, fotos, projetos, sonhos e aspirações.
A essas informações se acrescentam o perfil de navegação em tempo real do internauta e o que chamamos de seu perfil comportamental: os traços deixados quando ele navega na web ou através das diversas aplicações que ele utiliza em seu telefone ou tablet. Ou seja: tudo o que ele vê, lê, escuta, baixa. E, naturalmente, tudo o que ele compra.
Quase todos os sites da internet lhe impõem um cookie que o reconhece quando você retorna. É graças a ele que o preço de sua passagem aérea para Montreal subiu em sua segunda visita. A maioria das aplicações baixadas gratuitamente vão lhe atribuir, além disso, outro dedo-duro, muito mais intrusivo, chamado spyware. Este acompanha suas atividades (páginas consultadas, tempo passado por página, produtos comprados etc.) a fim de transmitir essas informações aos especialistas do marketing − os quais, evidentemente, as utilizarão para melhor dirigir suas ofertas.
Na última vez que baixou uma aplicação em seu computador ou smart-fone, você teve tempo de ler o aviso legal que a acompanha? Se esse é seu caso, parabéns: você faz parte dos 3% de consumidores que se dão a esse trabalho. Caso contrário, você está permitindo ser regularmente espionado e que suas informações circulem de empresa para empresa. Essa é, de fato, a contrapartida do clicar “aceito” para baixar mais rápido uma aplicação sem ler o contrato. Embora discutível, o procedimento é legal.
Apagando as fronteiras entre o real e o virtual
Google Maps, Hotmail, Facebook, Instagram… As aplicações e serviços gratuitos são também cavalos de Troia que oferecem informações necessárias para adaptar as ofertas comerciais. Essa é a missão do responsável pelo SEO (search engine optimization), nova profissão que consiste em apresentar a publicidade certa para o consumidor certo, principalmente por intermédio dos motores de pesquisa. Para grande benefício do Google:4 os serviços sem custos da multinacional californiana lhe renderam mais de US$ 32 bilhões em publicidade em 2012.
Tal operação não é, aliás, sem risco para os publicitários e seus colegas do marketing, pois a medida do retorno sobre o investimento se torna implacável. Há apenas dez anos, a publicidade era negociada quase inteiramente segundo o número de consumidores contatados, quer essa publicidade os interessasse ou não. Hoje, mais de 20% dos ganhos das indústrias são negociados com base no CTR (click-through rate):5 o anunciante só paga se o internauta clicar na publicidade. Daí a necessidade de conhecer esse consumidor sob todos os ângulos.
Outra abordagem baseada na noção de comissão começa a emergir. É o que chamamos de affiliate marketing, ou “marketing por afiliação”. Trata-se de remunerar a publicidade, totalmente ou em parte, em função das vendas: o sr. Dubois clicou no anúncio da empresa X e comprou o produto? A empresa X pagará uma comissão ao site, ao motor de busca ou à rede social que estabeleceu o contato com ele. Podemos ver esse mecanismo em funcionamento no site de algumas companhias aéreas: uma vez que sua passagem é comprada, eles lhe sugerem reservar um hotel. Essa abordagem, assim como a pay per clickque a precedeu, vai de vento em popa, ao contrário da publicidade tradicional, remunerada em função do número de pessoas que a viram (online display). As novas abordagens ancoradas no desempenho imediato encontram certa resistência entre os profissionais do setor, que não querem ver seu papel reduzido unicamente à sua capacidade de realizar vendas instantâneas.
No entanto, essa lógica se impõe. Suponhamos que o sr. Dubois compre o produto apenas duas semanas depois, não pela internet, mas em uma loja situada a 400 quilômetros de sua casa. A comissão é devida? A resposta deve ser afirmativa, pois, cada vez mais, consegue-se acompanhar o perfil de consumo do sr. Dubois, tanto no universo virtual como no mundo real. Trata-se de ficção científica, você acha? É que você ainda não ouviu falar de ferramentas como a carteira eletrônica Google (Google Wallet).
Esse aplicativo, aparentemente simples, levará o marketing personalizado a um nível jamais alcançado. Você baixa o programa em seu celular e coloca suas informações pessoais e seus números do cartão de crédito ou da conta bancária. No momento de pagar, o vendedor terá apenas de captar o sinal de seu celular e, uma vez aprovada, a transação será concluída.6 O comerciante não tem acesso a seus dados financeiros: apenas o Google os possui. É ele que debitará de sua conta para pagar o comerciante. Isso feito, ele conhecerá um pouco mais seus hábitos.
Ainda não chegamos lá, mas é certo que uma empresa como a Google, que é antes de tudo uma gigante da publicidade, tem consciência do potencial de sua tecnologia. Relacionar a publicidade vista e as compras que decorrem dela, sejam as efetuadas em lojas ou no ciberespaço, simplifica a vida do consumidor, aumentando a possibilidade de que ele efetue o pagamento. Resumindo: sob o pretexto de querer seu bem, eles se asseguram, mais do que nunca, de possuir você.
Jacques Nantel é Professor de Marketing da HEC Montreal.
Ariane Krol é jornalista.