Plataformas digitais no centro das atenções: regular para avançar
Regulação brasileira caminha para consenso, mas as plataformas resistem, trazendo entraves
2022 ainda parece um ano que não acabou. Mesmo com as experiências vividas em anos anteriores, o processo político foi um dos mais intensos e complicados das últimas décadas no Brasil, especialmente no que se refere a abusos de poder, à desinformação e ao desrespeito às regras do jogo democrático.
Os problemas da desinformação e do poder das plataformas digitais na construção do debate político estão nos holofotes desde que o ex-presidente Donald Trump chegou ao poder nos Estados Unidos, em 2016, valendo-se de uma campanha permeada por fake news e estratégias de segmentação de conteúdos para públicos mapeados, a partir do uso ilegal dos dados pessoais dos usuários de redes sociais.
Essas estratégias foram observadas também no Brasil, sobretudo nas eleições de 2018, que levaram Jair Bolsonaro à Presidência da República, impulsionado por disparos de mensagens em massa e mentiras. Apesar dos escândalos e das cobranças por parte de autoridades e organizações da sociedade civil às plataformas digitais que sustentam as principais redes sociais, as medidas tomadas por elas têm sido insuficientes para enfrentar concretamente o problema.
Em 2022, se por um lado as plataformas digitais não avançaram em medidas para coibir a disseminação de desinformação, discurso de ódio e conteúdos ilegais, por outro, agiram para impedir o avanço da legislação que pretende regular o setor no Brasil. As big techs atuaram agressivamente em detrimento da primeira grande tentativa de regulação dessas empresas. Mobilizada por Google e Meta (holding do Facebook) nos principais veículos de comunicação do Brasil e em suas próprias plataformas, a campanha contra o PL 2630/2020 (o “PL das Fake News”), que visa instituir a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet, evidenciou a pouca disposição dessas megacompanhias transnacionais de tecnologia em aderir a uma proposta democrática de regulação, que objetiva mais transparência em sua relação com o Estado brasileiro e seus cidadãos.
Assim como nos Estados Unidos e na União Europeia, onde existe um forte lobby das big techs contra legislações que estabeleçam critérios mínimos de atuação dessas empresas e mais transparência na internet, no Brasil houve uma campanha nas redes em que os usuários recebiam recomendações de leitura de uma carta em que, de acordo com as empresas signatárias, a versão do projeto aprovado no Grupo de Trabalho da Câmara dos Deputados, em dezembro de 2021, sob relatoria do deputado Orlando Silva (PCdoB-SP), poderia “desestimular as plataformas a tomar medidas para manter um ambiente saudável online”. A mobilização se estendeu, ainda, para anúncios em jornais de grande circulação em todo o país, além de notas dos presidentes das big techs no Brasil em seus respectivos blogs. A ação das plataformas mostra que a regulação é urgente, já que elas se utilizam do seu espaço privilegiado no ambiente digital para seguir desinformando sobre a real proposta contida no documento.
Para Samara Castro, diretora do Departamento de Promoção da Liberdade de Expressão da Secretaria de Políticas Digitais da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República, sem regulação não há enfrentamento às big techs. “Já consensuamos entre ministérios de governo, pesquisadores e sociedade em geral que precisamos de uma regulação da atuação das plataformas. O que precisamos agora definir é o modelo, juntar forças para amarrar os consensos”, avalia, e acrescenta: “Os episódios das eleições de 2022 e o atentado à democracia no 8 de janeiro [de 2023] mostram como essa história ainda não terminou. Precisamos enfrentar as plataformas, que não à toa se posicionaram contra o PL 2630, quando ele podia ser votado com urgência”.
O Projeto de Lei como um marco da regulação
Após um ano e meio de tramitação entre Senado Federal e Câmara dos Deputados, e com a realização de uma série de audiências públicas para debater diferentes itens do projeto com representantes da sociedade civil, da academia e também das empresas, o PL 2630/2020 transformou-se num esboço de um marco decisivo para a regulação das plataformas digitais e o enfrentamento à desinformação no Brasil. O que era antes chamado de PL das Fake News hoje traz um texto mais robusto e contempla, de fato, parte da regulação do setor.
Com muito esforço da sociedade civil organizada, especialmente da Coalizão Direitos na Rede (CDR), que reúne mais de 50 organizações, o PL apresentado em 2022 atingiu um texto compatível com o combate às engrenagens das máquinas de desinformação e ódio, sem ferir a privacidade, a proteção de dados pessoais e a liberdade de expressão dos usuários.
Para a CDR, houve conquistas no relatório apresentado pelo deputado Orlando Silva, com a previsão de mecanismos de transparência das ações de moderação por parte das plataformas, a exigência de publicação de relatórios periódicos, além do empoderamento do usuário por meio do instrumento do devido processo, em casos de remoção de conteúdo ou suspensão de contas. O documento busca estabelecer garantias para um funcionamento mais isonômico das redes, de modo a inibir a influência desproporcional do poder econômico que financia a distorção do debate público e avança em direção a um ambiente digital que proteja os cidadãos e cidadãs, além de assegurar alguns direitos.
Debate da regulação no mundo
O primeiro instrumento legal que serviu como marco para iniciar o debate sobre o ambiente digital foi o Communications Decency Act (CDA), nos Estados Unidos, mais precisamente a seção 230, em 1996. Ele determina que provedores de serviços na internet não podem ser tratados como porta-vozes do que é publicado por terceiros. Ele foi tido como referência, inclusive, para a constituição do Marco Civil da Internet brasileiro, mais especificamente, o artigo 19, instituído em 2014. O texto do CDA é dividido em duas seções que tratam sobre a responsabilização das plataformas e moderação de conteúdos.
Na União Europeia, o pontapé para instituir regras para o funcionamento de serviços online foi a Diretiva de Comércio Eletrônico. O texto também trata da responsabilidade de terceiros, quando as plataformas podem ser responsabilizadas por conteúdos, mas também estabelece regras como requisitos de transparência e informação para fornecedores de serviços online, comunicações comerciais, contratos eletrônicos e limitações de responsabilidade dos prestadores de serviços intermediários.
Mais recentemente, em 2020, a União Europeia apresentou o Digital Services Act, que atualiza muitas das diretrizes apresentadas na legislação anterior e que representa um marco na governança da internet e regulação de plataformas em todo o mundo. O regulamento estabelece novas regras sobre responsabilidade de intermediários, publicidade, transparência, remoção de conteúdo, entre outros temas. O novo regulamento aplica-se a todos os intermediários que prestam serviço online na União Europeia: os que oferecem infraestrutura de rede; os serviços de hospedagem, como computação em nuvem; os sistemas de pesquisa online que atingem mais de 10% dos 450 milhões de consumidores na União Europeia; as plataformas online que reúnem vendedores e consumidores, como marketplaces; e redes sociais com um alcance superior a 10% dos 450 milhões de consumidores da União Europeia.
Outras iniciativas de regulação
Em julho de 2022, Frances Haugen, cientista de dados e ex-funcionária do Facebook, veio ao Brasil e, em audiência pública na Câmara dos Deputados, alertou sobre os impactos da moderação de conteúdo da rede social no Brasil. Para ela, as ações contra fake news no país eram “negligenciadas”.
A cientista atuou na rede social no setor que analisou a derrubada de conteúdos impróprios durante a eleição nos Estados Unidos, em 2016, mas saiu da empresa em março de 2021 e, a partir de outubro, começou a denunciar que o sistema adotado pela empresa favorece o compartilhamento de conteúdos “raivosos”, que promovem polarização e, por isso, mais engajamento.
Na ocasião, ela afirmou que o Facebook sabia de muitas intervenções que deveriam ser feitas, porém escolhia não fazê-las, porque isso impactaria no seu lucro. E alertou para a falta de transparência da plataforma em relação a quantas pessoas na empresa estavam olhando para a eleição brasileira com o objetivo de barrar conteúdo inapropriado, ou de coibir a criação de contas falsas. “Até mesmo deixar de responder perguntas simples, como quantos moderadores trabalham em português, mostra uma falta de respeito ao processo eleitoral brasileiro”, destacou Haugen.
A regulação dessas empresas globais, no entanto, é um processo complexo. Como regular nacionalmente plataformas que possuem sedes nos países do Norte Global? Que especificidades os países do Sul enfrentam quando comparados aos países do Norte? Há parâmetros válidos para todos os contextos e que respeitem os documentos internacionais de liberdade de expressão e de direitos humanos?
Na busca para estabelecer um texto que abarque as complexidades em regular as big techs, tentativas de formular diretrizes gerais ou parâmetros que orientem futuras legislações vêm sendo feitas. Em um processo iniciado em 2019, diversas organizações da América Latina, em conjunto com acadêmicos, e com o apoio do Intervozes, lançaram o documento intitulado “Padrões para uma regulação democrática das grandes plataformas que garanta a liberdade de expressão online e uma internet livre e aberta”, que apresenta “recomendações sobre princípios, padrões e medidas de co-regulação e regulação pública para proteger as liberdades de expressão, informação e opinião dos usuários de plataformas e garantir uma Internet livre e aberta. A proposta inclui tanto limitações ao poder das grandes plataformas de Internet (tais como redes sociais e mecanismos de busca) como proteções para dotar os intermediários de instrumentos adequados para facilitar o exercício da liberdade de expressão”.
Em processo similar, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), iniciou em 2022 um processo de consulta pública para estabelecer um documento que sirva como diretriz para a construção de futuras regulações. O texto, intitulado “Guia para a regulação das plataformas digitais: uma abordagem multissetorial para salvaguardar a liberdade de expressão e o acesso à informação”, passou por diferentes períodos de sugestões e chegou a ser discutido em uma conferência realizada na sede da Unesco, em fevereiro de 2023, à qual o Intervozes e outras organizações brasileiras estiveram presentes. O documento segue em consulta pública e deve ter uma versão finalizada em setembro deste ano.
Ainda que a pertinência do tema seja inegável, e que a construção de marcos regulatórios que abarquem as plataformas seja urgente, muitas discussões têm sido feitas de maneira apressada e sem o devido espaço para uma construção cautelosa e multissetorial. Além disso, algumas dessas propostas de regulação – inclusive o PL 2630 – não abarcam a crítica feita por parte da sociedade civil latino-americana de que o processo de moderação de conteúdo está relacionado a estruturas e políticas de funcionamento das próprias plataformas. A estrutura algorítmica, o lucro através do engajamento, o mercado de dados e a captura da atenção são fatores que afetam diretamente a maneira pela qual as plataformas irão estabelecer suas políticas de moderação de conteúdo.
Nesse sentido, ainda que com uma legislação bem construída, o problema que está sendo discutido parece que não irá se encerrar se o modelo de negócios das plataformas não for repensado. As legislações atuais ou os documentos de diretrizes que focam apenas na moderação de conteúdos não são suficientes. Complementar a isso, é necessária uma regulação que exija uma maior transparência algorítmica, para que a sociedade entenda como e porquê a moderação é ou não realizada em cada caso, além da regulação econômica, e que estabeleça parâmetros para os modelos de negócios que respeitem a privacidade e os dados pessoais dos usuários e impeça que a internet seja dominada por monopólios digitais globais.
A regulação das plataformas em 2023
Após os ataques antidemocráticos em 8 de janeiro de 2023, o governo Lula retomou o debate em relação à regulação das plataformas. O governo elaborou uma proposta que obrigaria as redes a removerem material que incitem golpe de Estado e encaminhou para o deputado Orlando Silva, relator do projeto de lei 2630/2020. Orlando Silva aceitou parte das propostas, porém manteve mecanismos para que o dever de cuidado não fosse utilizado como justificativa das plataformas para cercear o debate nas redes sociais e reiniciou a articulação na Câmara dos Deputados para votação da urgência, que foi aprovada no dia 25 de abril de 2023. Na semana seguinte, as plataformas lançaram uma ofensiva contra o PL 2630, o que comprometeu a base de votação favorável ao projeto e fez com que a votação do mérito da proposta fosse adiada. Este será um dos principais temas da agenda do direito à comunicação em 2023.
Sheley Gomes é cientista política pela Universidade de Brasília (UnB), pós-graduanda em direito e relações governamentais pelo UniCEUB, mestranda em Mídia e Estudos de Área pela Charles University e associada ao Intervozes.
Viviane Tavares é jornalista e coordenadora executiva do Intervozes
Ramênia Vieira é jornalista, especialista em Gestão de Políticas Públicas e coordenadora executiva do Intervozes.