Pode a China inspirar o direito brasileiro no combate a Covid-19?
Na China, combate a Covid-19 passou pelo uso intensivo de tecnologia baseada em grandes dados fornecidos por celulares, câmeras e cadastros. Esta possibilidade foi potencializada pela difundida cultura de consumo online e uso de carteiras digitais. O georreferenciamento, baseado nas maiores redes 4G e 5G do mundo e alta penetração de telefonia celular na China, forneceu ao governo instrumentos de regulação: desde vigilância, comando e controle aos incentivos comportamentais mais brandos, como fornecimento de cupons de descontos aos cidadãos isolados.
Em tempos de instabilidade política, sanitária e econômica em razão da Covid-19, o direito deve se apresentar para oferecer soluções pacíficas e justas aos conflitos e dilemas políticos, sociais e econômicos que dilaceram o Brasil: o aumento abrupto das já altas taxas de violência doméstica, desemprego e miséria escancararam a necessidade de políticas públicas inovadoras. O debate da renda mínima ganhou destaque por apresentar um reforço ao princípio da dignidade humana, por um lado. Por outro, cria demanda para um mercado desaquecido.
Direitos antigos se confrontam com novos fatos e antigas realidades exigem soluções juridicamente inovadoras. Diariamente desafiada por quem a jurou defender, a Constituição resiliente busca soluções inovadoras que deem fôlego àquilo que prometeu em 1988. No esforço de salvar os direitos sociais e combater a pandemia, devem os estudiosos, fazedores e operadores do direito brasileiro olhar para fora do país, assim como fazem os administradores públicos, médicos e cientistas que combatem a pandemia?
Um combate global – tanto internacional quanto interdisciplinar – à Covid-19 passa pela compreensão de que fracassos relativos de outros país são mais óbvios que as eventuais soluções por eles encontradas. O direito comparado pode significar a superação da indiferença entre países servindo de bússola para a busca de políticas públicas de combate à pandemia e às crises sociais por ela acentuadas.
Neste começo de século XXI, especialmente no contexto da Covid-19, há um país que atrai para si olhares mais ou menos bem intencionados: a China. Foi lá, sob a pressão da urgência e comoção social e crítica da comunidade internacional, que nasceram e foram testados os primeiros instrumentos jurídicos próprios para a gestão das crises que se descortinam desde janeiro.
Já em 24 de janeiro, o Ministério de Recursos Humanos e Seguridade Social da República Popular da China (RPC) promulgou uma orientação administrativa – de natureza normativa, eficácia jurídica nacional e exigível em cortes – regulando as relações trabalhistas sob a Covid-19.
Vejamos uma das provisões deste ato normativo: qualquer paralisação causada por circunstâncias relacionadas ao novo coronavírus, dentro de um ciclo de pagamento de salário (que não é necessariamente mensal) não deve impedir empregados de receber seu direito a seu salário normal. A contagem de tempo de trabalho também não será suspensa para qualquer efeito, inclusive previdenciário. Se o período de desligamento exceder um ciclo de pagamento de salário, este passa a ser, dali em diante, no mínimo, o salário mínimo local ou um subsídio ao empregado por certo tempo, a depender do caso. A norma ainda prevê que as províncias decidirão sobre o subsídio que em Xangai, por exemplo, não deve ser inferior ao padrão de salário mínimo local. Já em outras cidades da província de Zhejiang, o padrão de subsídio é 80% do salário mínimo local.
A solução jurídica apresentada privilegia a manutenção do emprego ou, em alguns casos, a salvaguarda de direitos de quem o perdeu, e funciona em combinação com amplas linhas de crédito barato nos bancos públicos para rolagem de dívidas de empresas que assumem responsabilidades adicionais de solidariedade ao mesmo tempo que podem demitir depois de certo tempo. A orientação, ainda, serve para a coordenação entre níveis de governo, pois as províncias poderão adaptar os direitos às suas realidades econômicas locais.
A Lei da RPC sobre Prevenção e Tratamento de Doenças Infecciosas, de 2013, e o Regulamento de Emergência em Emergências de Saúde Pública, de 2011, preveem que todas as entidades e pessoas públicas e privadas são obrigadas a cooperar com o estado para prevenir e controlar o vírus: as empresas devem informar oportuna e com precisão a condição de qualquer pessoa com, ou suspeita de ter, qualquer doença infecciosa.
A lei, ainda, estabeleceu que as empresas devem estabelecer um sistema de gerenciamento de segurança, conforme exigido pela Lei de Resposta a Emergências da RPC, de 2007, prevendo situações que possam danificar a segurança pública e relatando essa situação aos órgãos governamentais aplicáveis. Para cumprir as obrigações acima, as empresas podem coletar – mas não compartilhar para quaisquer fins que não o de combate a epidemias – informações de seus funcionários relacionadas à doença ou à emergência, mesmo que essas informações não sejam relevantes para seus contratos de trabalho.
Somam-se aos institutos jurídicos às muitas instituições de origem tradicional e moderna que servem de pano de fundo para o combate à Covid-19 na China: desde o que se convém chamar de cultura confuciana – bastante lembrada por suas relações que tendem à harmonia, inclusive por meio do cuidado aos idosos e responsabilização moral do governante – à moderna governança multinível tanto no Estado, quanto no Partido Comunista Chinês (PCCh). Ambas reduziram os custos de mobilização geral e compreensão das regras de isolamento social antes que fossem consenso médico-científico; ou até mesmo antes que as normas jurídicas fossem claras.
Ao lado das instituições políticas, o combate a Covid-19 passou pelo uso intensivo de tecnologia baseada em grandes dados fornecidos por celulares, câmeras e cadastros. Esta possibilidade foi potencializada pela difundida cultura de consumo online e uso de carteiras digitais. O georreferenciamento, baseado nas maiores redes 4G e 5G do mundo e alta penetração de telefonia celular na China, forneceu ao governo instrumentos de regulação: desde vigilância, comando e controle aos incentivos comportamentais mais brandos, como fornecimento de cupons de descontos aos cidadãos isolados.
No Brasil a curiosidade em relação às instituições jurídicas e políticas chinesas não é novidade. Na academia, existem boas iniciativas como o Centro de Estudos Legais Asiáticos (CELA) da Faculdade de direito da Universidade de São Paulo e o Núcleo de Estudos Brasil-China da Escola de direito da Fundação Getúlio Vargas no Rio de Janeiro. Se, por um lado, são iniciativas que indicam caminhos, por outro são exceções que comprovam a regra de que direito bom – comparável ao brasileiro ou exemplar – é necessariamente direito continental europeu ou common law anglo-americano.
Nos Estados Unidos, além de revistas acadêmicas e cursos especializados em direito Chinês por todo o país, algumas iniciativas inovadoras chamam a atenção. A Escola de direito da Universidade de Stanford, por exemplo, coopera intensamente com a Escola de direito da Universidade de Pequim e com a Suprema Corte Chinesa para traduções e análises de casos relevantes. Por um lado, a tradução e interpretação colabora para a criação de uma cultura de precedentes vinculantes na China, a partir da cooperação com juízes e professores estadunidenses. Por outro, estudantes, pesquisadores e empresários obtêm acesso, em inglês, a um rico material jurídico. Na Escola de direito de Yale o Paul Tsai China Center conta com professores e pesquisadores internacionais dedicados ao estudo da China e seu direito dentro a partir de metodologias como Law and Society e Law and Economics.
Na China, a corte de internet de Pequim é referência mundial de digitalização judicial com uso de tecnologias como reconhecimento facial, blockchain e inteligência artificial e colabora com cortes de mais de 19 países. Recente e pouco conhecido, o sistema jurídico chinês se especializa e sofistica criando soluções que chamam a atenção do mundo. Não são só iniciativas trilionárias de construção de infraestrutura e a capacidade de importação e exportação da China que deveriam fascinar os operadores do direito. As possibilidades de estudos comparados em direito e políticas públicas — não só judiciárias — são muitas.
Além dos escritórios de advocacia brasileiros interessados em clientes chineses, devem outras instituições construir estratégias para a relação bilateral a partir de suas vocações e interesses. Infelizmente, o interesse brasileiro nas instituições chinesas, dentre elas o direito, não vai muito além do reconhecimento de que “desde 2008 a China é o maior parceiro comercial do Brasil”.

Os valores e história importam para a análise comparada do direito. Isto explica, em parte, o desinteresse brasileiro em relação ao direito chinês, que tem matriz soviética, continental europeia e, em novas áreas, inspiração no direito inglês e estadunidense.
A pesquisa jurídica por comparação olha, inicialmente, para as famílias jurídicas privilegiando uma análise de formação histórica e política das instituições. A seleção de países para este estudo arqueológico, no entanto, costuma ser bastante limitada. Seja por razões lógicas, ou por conta de vieses e preconceitos, normalmente são observados os sistemas jurídicos banhados pelo atlântico e localizados no hemisfério norte. Ainda são influentes as premissas metodológicas de que uma boa análise comparada terá por premissa a existência de claras díades, por exemplo: direito civil/direito consuetudinário e tradição francesa/alemã, direito constitucional/administrativo, rule of law/rule by law.
A função e operação das normas, porém, deveriam ser tão relevantes para o esforço comparativo quanto a origem e familiaridade entre os sistemas. Este esforço pode revelar políticas públicas inovadoras a elas articuladas oferecendo uma oportunidade de inovação no sistema jurídico brasileiro dando a ele soluções que reforcem seus valores. As instituições jurídicas, enquanto tecnologia política de governança e arbitragem de conflitos redistributivos, merecem um olhar comparado que forneça ao Brasil inspiração, mais que um modelo ideal baseado necessariamente em similaridades políticas, históricas ou famílias jurídicas.
Não se deve confundir a pesquisa comparada com a busca pela harmonização política e jurídica proposta e esgotada na década de 90, mas um olhar brasileiro – pragmático e idealista – a China ou qualquer outro país que ofereça soluções para as crises globais do século XXI, da Covid-19 ao aquecimento global.
A pandemia escancara que microbiologistas, médicos e economistas brasileiros estão, no geral, mais atentos às realidades e soluções experimentadas por outros países que os fazedores e operadores do direito. Busca-se nas escolas de direito, tribunais e parlamentos uma atitude metodologicamente rebelde e politicamente responsável de imaginação institucional e cultura da democracia.
Mais do que nunca, os(as) atores(as) e autores(as) da cultura jurídica precisam sair de seus guetos e buscar respostas onde elas estiverem, o que é possível a partir de uma perspectiva funcional do direito. Mais que o uso de máscaras, isolamento social e construção de hospitais de campanha, pode ser que a China – superlativa em grandeza e complexidade – revele soluções jurídicas para o enfrentamento da Covid-19 no Brasil.
Lucas Wosgrau Padilha é advogado, bacharel em direito pela Escola de direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas, pós graduado em direito Econômico, na mesma escola, e mestrando em direito na Universidade de Pequim, onde é pesquisador-bolsista da Academia Yenching de estudos chineses.