Política energética negacionista e na contramão
Num momento em que a maioria dos países busca substituir a geração a carvão por opções menos poluentes, o governo brasileiro pretende destinar, ao longo da próxima década, R$ 20 bilhões para a renovação do parque termelétrico que opera com o combustível
A política energética brasileira é um trem desgovernado, em alta velocidade e na contramão. Enquanto pagamos caro pelos efeitos da crise hídrica no setor elétrico por meio de tarifas cada vez mais elevadas e pela deterioração das condições macroeconômicas do país, Brasília finge que os problemas não existem e insiste em políticas que apenas os agravam. O episódio mais recente dessa tragédia são os planos governamentais em favor do carvão mineral, uma contradição em relação tanto à competitividade ímpar das fontes renováveis no país, como aos esforços globais em prol de economias de baixas emissões de carbono, como mostramos no manifesto “Carvão sustentável, a nova cloroquina do setor elétrico brasileiro”. E isso em meio à COP26, quando justamente o Brasil deveria apresentar planos concretos para reduzir as emissões de gases de efeito estufa, não aumentá-las.
Num momento em que a maioria dos países busca substituir a geração a carvão por opções menos poluentes, o governo brasileiro pretende destinar, ao longo da próxima década, R$ 20 bilhões para a renovação do parque termelétrico que opera com o combustível. A promessa é modernizar as usinas antigas, de baixa eficiência e extremamente poluentes que hoje sobrevivem queimando carvão nacional de baixa qualidade graças apenas aos subsídios de mais de R$ 700 milhões pagos todos os anos por meio de nossas contas de luz.
O problema é que são miragens as promessas de novas tecnologias que garantiriam uma queima limpa do combustível fóssil. Nesse sentido, vale lembrar que mesmo potências com muito melhores condições para investir em novas tecnologias estão atuando em favor da substituição da fonte, e não da mudança na tecnologia, enquanto o Brasil insiste em ir na contramão. Sem contar que, em termos econômicos, as tecnologias do “carvão sustentável” não se comparam com a indiscutível competitividade das fontes renováveis no país.
Em paralelo, promessas corporativas de inverter esse tipo de lógica e participar ativamente da transição energética podem ficar aquém do necessário, no limite chegando mesmo a poder ser consideradas exemplos de greenwashing. Afinal, há situações em que se cria uma falsa aparência de sustentabilidade, sem necessariamente sua aplicação na prática. Esforços em defesa do carvão também contradizem, em tese, políticas empresariais voltadas ao meio-ambiente, questões sociais e governança (ESG) e a iniciativa Princípio para o Investimento Responsável (PRI), em particular justamente quanto às práticas de ESG.
Questionamentos nesse sentido podem surgir, por exemplo, a partir da forma como a Engie, maior geradora privada do país, lidou com a usina de Jorge Lacerda (857 MW), um complexo termelétrico a carvão dos anos 1960 localizado em Santa Catarina.
Em 2015, a matriz da multinacional francesa se comprometeu a eliminar do seu portfólio global, até 2025, toda geração a carvão. O problema é que, pelo menos no caso da usina brasileira, essa eliminação está se dando por meio da venda da unidade – que acaba de ser concluída -, não do seu descomissionamento. Desse modo, as emissões de gases de efeito estufa e outros poluentes devem ser mantidas. Trata-se, portanto, de uma transição que, na prática, fica limitada ao esforço de se livrar da responsabilidade de desativar a usina, bem como dos passivos trabalhistas, ambientais e sociais gerados pelas atividades carvoeiras.
O fato é que o dinheiro que hoje é destinado a subsidiar esse tipo de usina deveria ser destinado a uma transição justa e de verdade, com foco na garantia de um futuro melhor para o meio ambiente e a sociedade em geral. Isso passa, por exemplo, pelo desenvolvimento de programas voltados à requalificação profissional dos trabalhadores da cadeia do carvão, investimentos em energia limpa e exclusão definitiva do combustível fóssil da matriz elétrica brasileira, como proposto no estudo Usinas Termoelétricas e a Crise no Setor Elétrico Brasileiro pela Covid-19.
Mais, se mesmo em meio à grave crise que não dá tréguas, o país tem disponibilidade de R$ 20 bilhões para destinar ao setor elétrico nos próximos anos, que o faça com responsabilidade e consciência. São recursos que, se bem aplicados, tem potencial de fazer toda a diferença para que o Brasil entre nos trilhos para aproveitar sua disponibilidade de energia renovável a baixo custo em favor não só do seu futuro, como de toda a humanidade.
Clauber Leite é coordenador do Programa de Energia e Sustentabilidade do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec).