Política social e distribuição de renda - Le Monde Diplomatique

Perspectivas para 2009

Política social e distribuição de renda

por Guilherme C. Delgado
4 de janeiro de 2009
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Na discussão atual sobre a reforma tributária, há uma clara tentativa de “corrigir” as tendências à distribuição de renda presentes na Constituição de 1988. O argumento é que essa política não caberia nos sistemas de tributação e orçamentos públicos, algo que provocaria um retrocesso no campo dos direitos sociais

Ao completar 20 anos, a Constituição Federal de 1988 tem sido comemorada e analisada sob diversos aspectos. Invariavelmente, surge a indagação sobre os significados e os resultados do seu título “Da Ordem Social”, cuja pretensão original é servir de diretriz às políticas da igualdade e de promoção da justiça social.
A distância de duas décadas instiga-nos a verificar resultados que não podem ser atribuídos apenas às inspirações do legislador constituinte, mas, sobretudo, ao jogo político e econômico concomitante à nova ordem constitucional, caracterizado por forte tendência, na esfera econômica, à desregulamentação, “mercadorização” e livre cambismo, indo na contramão da construção de um Estado de bem-estar social.

Visivelmente esgotado o impulso utópico da construção de uma nova ordem social pós-constituinte, os prognósticos sobre a distribuição de renda são até certo ponto inquietantes à vista de claros movimentos de retrocesso político no campo dos direitos sociais, que, com grande frequência pautam a agenda política do Estado, sob a égide das “reformas”. Atualmente existe o apelo para a realização de uma ampla reforma tributária, oficialmente declarada neutra em relação à distribuição de renda. Outra justificativa é a do “ajustamento” à crise financeira internacional.
Há uma clara tentativa de “corrigir” as tendências distributivas da Constituição de 1988, parcialmente exercitadas no seu sistema de proteção social (seguridade social). Delfim Netto expressa esta posição ao declarar que a atual política social “não cabe dentro do Orçamento da União”. A expressão também significaria (segundo essa perspectiva ideológica) que a distribuição de renda não caberia nos sistemas de tributação e orçamentos públicos como políticas permanentes de Estado. É isso que pretendemos analisar em sequência.

Resultados redistributivos
Há uma enorme controvérsia, quase uma batalha ideológica, em torno dos conceitos, medidas empíricas e potenciais causalidades relativas a determinadas melhorias recentes na distribuição de renda no Brasil. Mas há também um consenso sobre o progresso da distribuição da renda do trabalho, aí incorporados os benefícios da Previdência e da Assistência Social.

Vários indicadores de distribuição – coeficiente de Gini, “proporção dos 10% mais ricos com relação aos 40% mais pobres”, etc. – vêm melhorando continuamente no período de 1996-2006, segundo os balanços anuais das PNADs (Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios).
O fato estatístico – a melhoria na distribuição da renda do trabalho, segundo a noção de renda pessoal apurada pela PNAD – presta-se a todo tipo de veiculação de significados e atribuição de causalidades, das quais, à semelhança dos comunicados de guerra dos Estados-Maiores sobre ganhos e perdas nas batalhas, a verdade é invariavelmente a vítima incontestável.
A melhoria na distribuição dos rendimentos pessoais das famílias certamente não é ato de geração espontânea. Não poderia ser explicada por operação autorregulatória dos mercados – nem os neoliberais mais radicais aventariam tal hipótese.
Em uma sociedade de tamanha desigualdade, sob qualquer conceito (rendimentos, capacidade, resultados etc.), somente a esfera pública é capaz de produzir mudanças positivas na distribuição da renda e da riqueza. Se o faz de forma continuada, como tudo indica ser o caso, alguma redistribuição de ativos (ou de riqueza) deveria estar ocorrendo, de sorte a corroborar esse processo.
A política social de Estado é aqui tomada no sentido das instituições do “Estado de bem-estar” que a Constituição de 1988 estabeleceu ou recepcionou e que o jogo político posterior positivou.
A Carta estruturou-se principalmente no reconhecimento de direitos sociais nos campos da proteção social ao trabalho (seguridade social) e da educação básica.
Com tal envergadura e com os princípios (constitucionais) que as norteiam, essas instituições têm a pretensão de exercer função redistributiva da renda e da riqueza social. Afora esse núcleo clássico, a Constituinte estabeleceu critérios de distribuição de terras e um novo ordenamento do direito da propriedade (função social da propriedade fundiária), cuja eficácia real foi praticamente revertida no jogo político posterior. Mas ficando apenas no campo da política de direitos sociais clássicos – seguridade social e educação básica –, pode-se, em princípio, assumir que estes foram e ainda são eficazes no sentido de melhorar a distribuição da renda do trabalho.
Há efeitos diretos dos rendimentos monetários da seguridade social (Previdência, Assistência e Seguro-Desemprego) sobre a renda das famílias, fortemente concentrados no entorno do salário mínimo; e ainda efeitos indiretos da renda familiar imputada pelo sistema de saúde pública e educação básica pública. Os primeiros têm alta correlação com a melhoria dos índices de concentração de renda, enquanto os segundos, associados à distribuição de serviços públicos, denominados “benefícios em espécie” na Contabilidade Nacional, crescem em quantidade, mesmo que com qualidade precária.
Há uma forte consistência nos dados das PNADs e das Contas Nacionais sobre a incidência e participação crescente dos rendimentos oriundos da seguridade social nos rendimentos familiares.
No primeiro caso, das PNADs, a participação dos benefícios sociais antes e depois da aplicação das regras constitucionais evoluiu de cerca 10% em 1991 para mais de 20% em 2003, compensando no mesmo período uma queda da renda oriunda dos salários.
Esse mesmo fenômeno vai se configurar em outro sistema de apuração estatística, as Contas Nacionais, em que se observa, no período de 2000-2004, uma pequena queda na participação dos “salários e ordenados” na Renda Interna Bruta, enquanto no mesmo período os “benefícios sociais” pagos (seguridade e FGTS principalmente) crescem de participação, compensando a perda no campo anterior.
Ressalte-se, para evitar confusões, que as evidências empíricas até aqui levantadas – melhorias nos índices de Gini dos rendimentos do trabalho, aumento da participação dos benefícios da seguridade social na renda do trabalho e aumento da participação dos “rendimentos do trabalho e de benefícios sociais” na Renda Interna – configuram avanços da equidade combinados à política social, mas ainda pouco esclarecem sobre uma verdadeira redistribuição de renda, associada de maneira estrutural a um novo perfil de divisão da riqueza social
A institucionalização, ainda que restrita, de um conjunto de direitos de cidadania no âmbito da política social, com regras de acesso já legalmente positivadas (Previdência Social, Assistência Social, Sistema Único de Saúde, Seguro-Desemprego e Educação Fundamental), constitui, pela ótica do Estado de bem-estar, uma redistribuição de ativos na sociedade, que precisaria ser sancionada por uma nova distribuição funcional da renda, do tipo capital-trabalho, em bases mais igualitárias (ou menos desiguais).
Uma tal iniciativa passa necessariamente pelo sistema tributário, cujos mecanismos e formas de financiamento da política social podem ou não confirmar o sentido redistributivo dessa política.
Mas, antes de olhar para o sistema tributário, vejamos como se estrutura a distribuição funcional da renda em período recente (já sob vigência da atual política social constitucionalizada).
Fazendo algumas adaptações das Contas Nacionais e usando os seus dados e noções, constata-se entre 2000 e 2004 uma pequena melhoria no conjunto das remunerações dos trabalhadores (salários e ordenados + benefícios sociais) relativamente aos rendimentos do capital (Excedente op. bruto + remuneração mista trabalho/capital).
Observe-se que os rendimentos apropriados pelo capital não caem, mas se mantêm no patamar de 45% da Renda Interna, ao passo que as políticas sociais compensam, com melhoria marginal, a perda relativa dos “salários e ordenados” daqueles que as acessam.
Por seu turno, os “benefícios em espécie”, não computados na Renda Interna, correspondem a aproximadamente de 8,5% do PIB, segundo o IBGE, e representariam o acesso do público aos serviços de saúde, educação, alimentação etc., prestados gratuitamente pelas políticas sociais.

Em resumo, a magnitude da política social de Estado, segundo as medições daquilo que é apurado pelas Contas Nacionais, corresponderia a algo próximo da quarta parte do PIB – parte sobre a forma de renda monetária e parte sobre a forma de benefícios em espécie.
Voltando agora à pergunta inicial sobre o sentido redistributivo (ou não) dessa política social, faz-se necessária uma visita ao Orçamento Público e ao Sistema Tributário
Eles revelam-nos que, de fato, houve aumento do gasto social vinculado ao Orçamento da Seguridade Social (OSS) na década 1995-2005, o qual cresceu de cerca de 9,5% para 12,5% do PIB no período.
Em 2005, as fontes de financiamento dessa despesa (a folha de salário de base do INSS e o faturamento das empresas via Cofins) corresponderam a 70% do total da arrecadação do OSS. Essas fontes, como quase toda a estrutura financiadora da seguridade, revelam perfil altamente regressivo da tributação. Traduzindo: são os trabalhadores pobres (as taxas do INSS somente alcançam rendimentos de até R$ 3.000 por mês) e os consumidores em geral que financiam a maior parte do sistema.
Finalmente, ao acenar com uma reforma tributária em 2008 (PEC 233/2008), o Executivo Federal declarou-se oficialmente neutro em relação aos objetivos distributivos das mudanças que propõe. Isso significa que não se pode <>a priori esperar dele qualquer melhoria de sentido redistributivo, considerando-se os próprios fins que essa reforma persegue.
Por outro lado, as mudanças propostas no projeto oficial não são neutras para o Orçamento da Seguridade Social. Suprimem-lhes várias fontes (Cofins, CSLL e PIS/Pasep) e garantias jurídico-constitucionais, oferecendo em troca compensações notoriamente insuficientes para as despesas atuais do sistema, sem sinalizações consistentes para o presente ou o futuro.
Em síntese, à política social fundada em direitos sociais e legitimada pelo ordenamento constitucional pode-se atribuir papel positivo na distribuição da renda. Mas na prática o embate pela redistribuição da renda social nas finanças públicas, grosso modo representado pela repartição capital-trabalho nas Contas Nacionais, continua estacionário, o que significa manutenção da desigualdade pré-existente na distribuição funcional da renda

Dilemas e perspectivas de futuro
Por um lado, a política social de um Estado fundamentado no reconhecimento dos direitos sociais básicos tem méritos distributivos que não se revelam mais explicitamente apenas graças a processos coetâneos, que em grande medida contrariam essa tendência. Por outro, a continuidade e o aprofundamento do processo de universalização de direitos sociais são vistos com ceticismo por teóricos do Estado de bem-estar
A agenda de reformas do campo conservador está agora propondo forte restrição do Orçamento da Seguridade Social (PEC 233/2008). Caso aprovada, a Emenda Constitucional de autoria do Executivo limitaria ainda mais o ensaio distributivo inaugurado pela Constituição de 1988.
Os propósitos autodeclarados de neutralidade dos mentores do projeto de Reforma Tributária, relativamente à distribuição de renda, não combinam com algumas pressões previsíveis sobre os orçamentos das políticas sociais nos próximos 20 anos. Por um lado, há pressões demográficas oriundas da emergência de uma população em idade escolar sobre o sistema público de educação básica, principalmente sobre o ensino médio. Por outro, há também evidência empírica previsível de que as demandas por benefícios monetários da seguridade social deverão crescer a ritmo mais elevado que o atual, uma vez mantidos os níveis de formalização da força de trabalho e as legítimas demandas por inclusão no sistema de direitos sociais. Ademais, aqui também coexistem fatores demográficos autônomos, como aumento da longevidade e principalmente expectativa de sobrevida dos idosos, que afetam as despesas com os denominados “estoques de benefícios em manutenção” nos sistema previdenciários públicos.Portanto, a política social calcada em direitos básicos, que já adquiriram de legalidade e por essa razão podem ser exercitados por iniciativa dos cidadãos (exemplos dos sistemas de educação básica e seguridade social), passará por notórias e legítimas pressões futuras por sua expansão. Essas pressões de caráter demográfico, político e cultural não podem ser ignoradas no sistema tributário e orçamentário do país,sob pena da própria negação do Estado de direito (social).
A possibilidade de aprofundar a política de direitos sociais e/ou reorientar o projeto de desenvolvimento nacional com o referencial da igualdade tem sofrido crescente banalização no discurso e nas práticas oficiais, cuja retórica da distribuição continua a se apoiar na fala assistencialista, notoriamente insuficiente para promover melhorias consistentes de distribuição de renda.
Por sua vez, setores da esquerda partidária, fiéis ao projeto do socialismo, veem com um misto de desdém e ceticismo as diretrizes do Estado de bem-estar que eles próprios ajudaram a inserir na Constituição de 1988. Na verdade, houve tantas iniciativas de desconstrução dessa nascente que o texto, reformulado por 56 emendas até agora, é encarado com certa desconfiança pelos que defendem um projeto de Nação mais igualitário.

Ademais, é inegável que o país viveu nos últimos 20 anos um processo de inserção econômica externa e um arranjo de economia política interna cuja trajetória concreta caberia nas teses de Celso Furtado, como se fora um percurso da estagnação ao subdesenvolvimento.
Não obstante as críticas à política social pós-1988 situadas à esquerda do espectro ideológico, parece-nos que as teses da distribuição finalmente encontraram no leito dos direitos sociais básicos um campo apropriado para institucionalizar ações públicas conducentes à igualdade. E estas seguem sendo as únicas vias ainda abertas para uma transição do padrão de estagnação e subdesenvolvimento, ainda dominante, para um projeto de democracia com apelo à equidade.
Mas falta ainda consciência cidadã suficiente para mobilizar a sociedade em torno dos direitos sociais, de sorte a sustentar um novo projeto de desenvolvimento nacional. E à própria política social de Estado carece coordenação e articulação orgânicas para conferirem à ação pública o sentido planejado de busca da igualdade
O abandono da política social pela restrição fiscal, como querem os conservadores, com a tese de que esta “não caberia no orçamento da União”, retroage a discussão do desenvolvimento à era da “modernização conservadora” implementada pelos militares, cujos resultados distributivos são conhecidos.

A recuperação dos direitos sociais, devidamente respaldados no sistema tributário e na reorganização do Estado de bem-estar, faz todo o sentido na discussão, ainda ausente no debate político institucional, sobre novos rumos ao desenvolvimento.

*Guilherme C. Delgado é doutor em economia pela Unicamp, economista aposentado do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e consultor da Comissão Brasileira de Justiça e Paz.



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