Políticas sociais como política de Estado
Caso se efetive a institucionalização das políticas sociais – que envolvem, entre outros, transferência de renda, segurança alimentar, combate à pobreza e ampliação dos canais de participação popular -, a “modernização conservadora” que caracteriza a história brasileira poderá finalmente ser superada
O anúncio, recentemente divulgado, de que o governo federal enviará ao Congresso Nacional um Projeto de Lei com o objetivo de institucionalizar diversas políticas públicas sociais existentes representa um importante marco na consolidação dos direitos sociais no país. Chamada comparativamente de “CLT das políticas sociais”, a ideia que preside essa iniciativa é uma espécie de contraparte da controvertida Lei de Responsabilidade Fiscal, que implicou, entre outros aspectos, o ordenamento fiscal e financeiro dos entes federativos, ao estabelecer limites de gastos com pessoal e de endividamento, assim como a instauração de um sistema de planejamento, execução orçamentária e disciplina fiscal.
Embora ainda não se saiba quais os contornos do Projeto de Lei, assim como seu resultado após a avaliação do Congresso Nacional, há menções às seguintes áreas de políticas públicas sociais a ser institucionalizadas: transferência de renda, segurança alimentar e nutricional, combate à pobreza, atenção aos grupos vulneráveis e ampliação dos canais de participação em áreas temáticas na formulação das políticas públicas. Dados esses objetivos, é auspiciosa em si essa iniciativa do presidente Lula, pelas seguintes razões:
• O PIB brasileiro cresceu cerca de 100 vezes no século XX (segundo o IBGE), mas os indicadores sociais da esmagadora maioria dos brasileiros eram, ao final daquele século, comparáveis aos de países africanos. Embora a desigualdade, medida pelo índice de Gini, venha caindo na última década, segundo dados do Pnud1 o Brasil ainda é hoje o 7º país mais desigual do mundo (entre 182 analisados pela instituição).
• O país transitou de uma economia agrário–exportadora para o mundo urbano-industrial, mas seu quadro social não acompanhou tal evolução.
• Em termos políticos, o Brasil experimentou períodos autoritários e democráticos (ambos com modulações diversas) sem que a chamada “questão social” fosse minimamente equacionada.
• Embora desde a última década esteja ocorrendo um importante processo de transferência de renda aos mais pobres, assim como um conjunto de políticas públicas sociais que estão produzindo impactos extremamente positivos a amplas parcelas pobres da população (tendo no Programa Bolsa Família e na valorização real do salário mínimo as mais evidentes), é fato que cerca de 10% dos mais ricos da população têm renda 40,6 vezes superior aos 10% mais pobres (dados do Pnud).
• O déficit social – medido em termos de renda, escolaridade, saúde, saneamento, habitação e longevidade, apenas para citar alguns aspectos centrais – é incrivelmente grande quando se desagregam os números por faixas populacionais e regiões, expressando o enorme fosso entre ricos, classes médias, pobres e miseráveis. As dificuldades para se harmonizar minimamente o tecido social e construir uma esfera pública têm, nesse legado, um importante papel explicativo, embora não o único.
• O não comprometimento em relação às políticas sociais é marcante na história brasileira por uma série de razões, entre outras: Estado historicamente apropriado pelas elites; formação das classes populares pós-industrialização fortemente tuteladas pelo Estado; poucos, descontínuos e parciais períodos de democracia; instituições estatais historicamente capturadas, elitistas e antissociais; formação social iníqua, dominada pelos estratos sociais superiores, que abasteceu (e de certa forma ainda abastece) os principais quadros burocráticos do Estado.
• Mesmo no atual período democrático, iniciado após 1988, um sem-número de experiências – observadas numa Federação que conta hoje com 5.565 municípios e 27 Estados num país de dimensões continentais – demonstra incríveis descontinuidades em termos do comprometimento com políticas sociais. Como aludimos, a responsabilidade social dos governos como política de Estado aparece, dessa forma, como a contraparte necessária da Lei de Responsabilidade Social.
A lista de causalidades é longa e não se pode ter a pretensão de esgotá-la. Esses aspectos dão a dimensão dos desafios a ser enfrentados pelo Estado brasileiro e pelos grupos politicamente organizados comprometidos com a diminuição drástica da desigualdade e, consequentemente, com a construção de um país cujos padrões de igualdade social acompanhem a riqueza existente. A “modernização conservadora”, que caracteriza a história brasileira, pode finalmente ser superada se a institucionalização das políticas sociais se efetivar, garantindo assim simultaneamente o teor político e social da democracia. Deve-se ressaltar que, a partir da segunda metade do século XIX, com as reformas sociais ocorridas na Europa (sobretudo reformas previdenciárias e trabalhistas), democracia deixou de significar apenas o conjunto de direitos civis e políticos universais; passou, paulatinamente, a incorporar os chamados direitos sociais. Estes incorporaram, de forma progressiva, uma ampla gama de aspectos vitais àquilo que se popularizou como “bem-estar social”.
Nesse sentido, foi justamente a luta de classes entre capitalistas e operários, radicalizada por estes últimos – por meios diversos, entre os quais a violência e toda forma de rebeliões –, que obrigou os Estados conformados pelas revoluções burguesas a universalizar o sufrágio e os direitos políticos, entre os quais os de associação, sindicalização e greve: todos cruciais à universalização do conceito de democracia política. A luta popular e operária foi, portanto, crucial tanto à emergência dos direitos civis e políticos universais – lembrando sempre que a “democracia” surgida das revoluções burguesas era, estrito senso, pela e para a burguesia – como às primeiras reformas sociais implementadas pelos Estados. São célebres, nesse sentido, as primeiras reformas previdenciárias levadas a cabo por Bismarck na Prússia a partir de 1889, em razão do temor da revolução socialista que assombrava a Europa naquele momento. Assim, o chamado welfare State, cujo embrião se encontra na Europa desde o final do século XIX,2 teve importantes avanços após a grande crise de 1929, e mais ainda após a Segunda Guerra Mundial: seu advento demonstra a ampliação do próprio significado de democracia. Ressalte-se que foi justamente a organização e mobilização do operariado – entremeada ora por radicalizações, ora por negociações políticas com o capital e o Estado – que levaram os Estados Nacionais a fazer reformas, notadamente as sociais. Daí a “social democracia”, como doutrina e partido político, implicar que a democracia – conceito originalmente político – é também social.3 Em outras palavras, sem um conjunto de direitos que permitam o bem-estar aos trabalhadores, o que implica regular o mercado em vários sentidos, os direitos civis e políticos tornar-se-iam inócuos. Essa constatação, feita a duras penas na Europa pós-revoluções burguesa e industrial, deve ser relembrada ao pensar a conformação social brasileira.
Tendo como quadro de referência a constituição do welfare State europeu e o legado histórico brasileiro à luz dos desafios sociais que o país tem pela frente, pode-se agora observar a associação entre a CLT – que, como se sabe, consolidou um conjunto de leis trabalhistas esparsas na década de 1940, no Governo Vargas – e o conjunto de leis sociais que vem se desenvolvendo após a Constituição de 1988, que representou um marco em termos de direitos políticos, e sobretudo sociais, na história brasileira. A Constituição de 1988 criou um capítulo inédito sobre Direitos Sociais, que fundamentalmente teve por objetivo resgatar a abismal dívida social com a imensa maioria da população brasileira, por meio de um conjunto de princípios e diretrizes universalizantes. Houve avanços nos campos da seguridade social (Art. 194), da saúde (Art. 196 a 200), da assistência social (Art. 203 a 204), dos direitos dos trabalhadores rurais (Art. 7) e dos direitos difusos e coletivos (família, criança, adolescente e idoso, Art. 226 a 230). Por outro lado, a Carta Magna deixou de definir como esses direitos seriam implementados na forma de políticas sociais pelos entes federativos, ao indicar que estas seriam implementadas de forma concorrencial entre esses entes: os municípios, os estados e o governo federal. Em outras palavras, estabeleceu-se o direito, mas não como e quem deveria implementá-lo.
Deve-se ressaltar que a Constituição em tela foi o ponto de culminância de lutas políticas travadas por um sem-número de movimentos sociais, pelos sindicatos e por milhares de militantes, cujas bandeiras amalgamaram demandas por direitos civis, políticos e sociais. Uma democracia social foi justamente a marca das lutas políticas que desaguaram na Constituição.
Passados mais de 20 anos de vigência deste novo marco político, observa-se um grande número de inovações democráticas, a ponto de o Brasil ser uma espécie de “laboratório”, tal a experimentação cujos vetores são a descentralização, a participação popular e a ampliação da cidadania (que, dadas nossas mazelas, é associada pelo cidadão comum fundamentalmente a direitos sociais, embora implique mais que isso).
Esses vetores deram uma configuração inédita aos sistemas social e político brasileiros na medida em que permitiram o repasse de recursos e competências a um ente federativo novo – os municípios, que profusamente se desdobraram em novos municípios após 1988, por meio de consultas populares –, que passou a executar políticas públicas, superando assim a histórica centralização na União e nos Estados. Embora as políticas públicas sociais sejam fortemente induzidas pela União, numa espécie de “descentralização centralizada”, observa-se no país a emergência da lógica dos sistemas unificados em políticas sociais. O Sistema Único de Saúde (SUS), o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), o Sistema Único de Assistência Social (SUAS) e o Sistema Único de Segurança Pública (SUSP) são expressões dos referidos repasses de recursos e competências aos municípios e, em alguns casos, aos estados, e aos Estados e municípios, a partir de princípios gerais estatuídos pela Constituição e induzidos pela União.
Esses novos contornos sociais contam com a possibilidade da participação popular – nos mais variados campos, entre os quais os Conselhos Gestores, que são fóruns institucionalizados para a participação do cidadão comum, e mesmo no orçamento, em alguns lugares. Nesse sentido, o tema da democracia social aparece em sua plenitude ao amalgamar direitos civis, políticos e sociais. Mesmo que os resultados, segundo boa parte dos estudos sobre conselhos gestores, não sejam os requeridos, dado o poder de cooptação política dos conselheiros pelos executivos municipais, o fato é que a existência desses conselhos4 dá à democracia contornos participativos àqueles que queiram participar.5 Trata-se de uma inovação democrática digna de nota, tendo em vista o passado autoritário da história brasileira.
Um olhar para a história
Apesar desse conjunto de inequívocos avanços sintetizados pela Constituição de 1988, que permitiu, a partir deles, o desenvolvimento de novos direitos, a constatação de que parte significativa deles pertence a legislações infraconstitucionais diversas e esparsas – tais como ocorreu com as leis trabalhistas antes da CLT – coloca em questão a possibilidade de retrocesso nos direitos conquistados a duras penas. Deve-se ressaltar que o welfare State europeu somente se desenvolveu e aprimorou em razão de sua institucionalização legal: trata-se de um olhar para a história.
Como os ataques aos direitos sociais não cessaram, tendo em vista a hegemonia das ideias neoliberais desde a década de 1980 – apesar da crise detonada pelo crash do ano passado –, desferidos por conservadores de variada cepa, trata-se de um motivo a mais para amparar institucionalmente milhões de pessoas geracionalmente sem direitos. Mais importante ainda, o atual regime de acumulação capitalista (provindo da chamada terceira revolução industrial) tem como fundamentos as seguintes características, entre outras: a flexibilização da produção, do consumo e da força de trabalho, em escala mundial; o uso intensivo de tecnologias e gestões empresariais vigorosamente poupadoras de mão de obra: daí o chamado “desemprego estrutural tecnológico” levar à perspectiva do “fim do emprego formal”, o que implica consequências marcantes às atuais e futuras gerações; a precarização das relações de trabalho, por meio de processos como a incessante terceirização, o recrutamento de trabalhadores autônomos, temporários e em tempo parcial, como decorrência dos aludidos “desemprego estrutural” e “flexibilização”; e, mais importante, a notável diminuição – na perspectiva da acumulação privada – tanto de trabalhadores como de consumidores, em razão dos processos de obsolescência programada dos produtos, que faz aumentar incrivelmente a circulação de bens em grupos de menores dimensões; dos processos produtivos baseados na engenharia just in time, que possibilitaram o planejamento e a indução da desova de bens e serviços, facilitando a circulação; do desmonte que um tal sistema, em razão também da articulação produtiva em escala mundial, produz aos sindicatos, enfraquecendo sobremaneira o trabalho organizado; e, por fim, a nova lógica dos direitos sociais resultantes da aludida hegemonia neoliberal: a focalização e privatização dos serviços sociais e o domínio da lógica privatista aos direitos, à luz das ideias baseadas nos gurus neoliberais, notadamente Milton Friedman.6
Não bastassem as premissas do capitalismo de acumulação flexível e das ideias neoliberais que as sustentam – e que vigorosamente animaram governos, entidades multilaterais, think tanks e acadêmicos –, há outro importante fator a ser considerado: o sistema político brasileiro. Como se sabe, o regime de financiamento privado das campanhas políticas, cujo resultado é a privatização da vida pública; o multipartidarismo sem lastro representativo, conveniente às elites políticas e estimulador de acordos que descaracterizam os partidos políticos; a necessidade imperiosa de produzir maiorias parlamentares a qualquer custo, com consequências brutais a qualquer sentido programático da vida política, entre outros aspectos, tornam o ato de governar e a administração pública presas fáceis de mudanças de governo e de composição política. Tais mudanças – conhecidas como “políticas de governo” – afetam profundamente a longevidade e estabilidade das políticas públicas. Não que mudanças não sejam legítimas e desejáveis, pois são resultantes da vontade majoritária e do monitoramento de seus resultados; ao contrário: mas devem voltar-se a ajustes e aprimoramentos, e não à sua desestruturação. Afinal, o fato marcante é que o déficit social a ser pago à imensa maioria dos brasileiros, cujos avanços desde 1988 e particularmente na última década, reitere-se, são inéditos, pode retroagir tendo em vista essas duas forças centrífugas: o modelo flexível de acumulação, sustentado ou não pelas ideias neoliberais, e o sistema político brasileiro, dada sua volatilidade, baixa representatividade e captura por interesses privados.
Por tudo isso, na medida em que a Constituição de 1988 aproxima o Brasil dos países de alto patamar de desenvolvimento social e civilizatório, no plano dos direitos, consolidar um conjunto de leis que regulamentam os dispositivos constitucionais sobre as políticas sociais torna-se fundamental à manutenção das reformas que se desenvolvem desde então.
Aos críticos dessa institucionalização, cujas premissas são o engessamento da ação política dos governos; ao aumento dos custos das atividades econômicas que desincentivariam a produção; ao imperativo das metas fiscais quantitativas sobre as metas sociais quanti e qualitativas; ao problema da chamada “porta de saída” dos programas de transferência de renda, entre outros, deve-se argumentar que: a) nenhuma dessas possíveis disfunções seria maior que o abismo social brasileiro, que obsta até mesmo a produtividade empresarial, sem contar a perda de vidas, talentos e oportunidades, historicamente presentes em séculos de exclusão social; b) a oposição à ampliação de direitos é marca do pensamento conservador, que reage a cada inclusão com fundamentações baseadas nas teses da “perversidade”, “futilidade” e “ameaça”7; e c) é claramente factível, por meio da negociação democrática, encontrar mecanismos de monitoramento das políticas e instituir o “controle social” como forma de averiguar tanto o cumprimento de seus objetivos como obstruir seus eventuais desvios: daí o papel das instituições estatais, dos fóruns de fiscalização popular e das entidades politicamente organizadas.
Há a considerar, por fim, que a institucionalização das políticas sociais no país, cujos indicadores têm demonstrado avanços significativos nos últimos 20 anos, não deve representar uma camisa-de-força para mudanças inovadoras nas políticas, mas sim a garantia da perenidade dos direitos sociais como políticas públicas efetivas, que não seja comprometidas pela lógica político-partidária-eleitoral, por crises econômicas derivadas da especulação financeira e da volatilidade do modelo de acumulação capitalista contemporâneo. A esse conjunto de tarefas, a transformação das políticas públicas decorrentes dos direitos sociais em políticas de Estado é altamente alvissareira!
Francisco Fonseca é mestre em Ciência Política e doutor em História, professor de Ciência Política na FGV-SP e autor de diversos artigos e livros, entre os quais O consenso forjado – A grande imprensa e a formação da agenda ultraliberal no Brasil (2005) e Liberalismo autoritário – Discurso liberal e práxis autoritária na imprensa brasileira (2011), ambos pela Editora Hucitec.
*Cristiane Kerches da Silva Leite é economista e cientista política, professora do curso de Gestão de Políticas Públicas da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH/USP).