Politização e despolitização de quartéis
Uma análise baseada nos conhecimentos já disponibilizados pelos estudiosos da Ciência Política para verificar se é realmente possível obstaculizar a politização
Após a conclusão do julgamento pelo STF sobre a inconstitucionalidade¹ de interpretações excedentes relativa ao artigo 142 da Constituição Federal que estabelece a tarefa das Forças Armadas, emergiram manifestações consoantes a ele reveladas pelos meios de comunicação. E passados alguns dias da arbitragem e no decorrer de uma entrevista², um de seus ministros asseverou que a decisão tomada por ele e demais colegas provocou a ultrapassagem da politização das instituições bélicas. Sem dúvida é uma afirmação apressada e pretensiosa pois foi exposta em meio ao calor dos acontecimentos.
Em sintonia a essa asserção dois documentos elaborados por parlamentares apresentaram o tema da despolitização dos servidores de uniforme. Um deles, a PEC 21/2021, trata da ocupação de cargo de natureza civil na Administração Pública, o qual expõe o argumento de que “a presença de militares da ativa, servindo a governos e participando da luta política partidária, pode contaminar a tropa com a politização e a partidarização do seu corpo, fenômeno nefasto para a democracia”. O outro, PEC 42/2023 diz respeito à alteração das condições de elegibilidade que apresenta a justificativa pertinente à garantia da “neutralidade política das Forças Armadas” e a “necessidade urgente de acabar com a politização nos quartéis”, conforme afirmou um deputado que ajudou a elaborá-lo. De modo inequívoco são propostas bastante débeis pois o mero retorno aos quartéis oferece um ínfimo contributo à intricada dinâmica da politização.
Este segundo alvitre provocou reações contrárias e um dos senadores intimamente ligado aos fardados verberou que o mesmo visa “inibir que militares das Forças Armadas possam se candidatar nas eleições, restringir o direito fundamental de votar e ser votado e reduzir o status de cidadania com a limitação da soberania popular”.
Falas semelhantes também emergiram. Uma ministra do STM asseverou que “é fundamental que haja uma despolitização das Forças Armadas”. Um reconhecido articulista da internet expôs que é preciso “restringir a politização das Forças Armadas”. Outro eminente escritor de grande jornal disse que chegou “a hora e a vez da despolitização das forças para o bem do Brasil e dos militares”.
Embora os ilustres autores sejam diversificados, todos pressupõem que a politização dos fardados é indesejável e que eles devem ser impedidos de se manifestar no interior da caserna. E mais duas convergências se somam a estas, quais sejam, eles não explicitam o entendimento que possuem a respeito da despolitização e nem revelam os argumentos que sustentam a possibilidade de sua concretização. Outrossim em outras esferas da sociedade é recorrente a postura contra essa politização, as quais também agregam as quatro particularidades mencionadas. Infere-se, portanto, que as reações favoráveis à despolitização, embora receptáveis, podem se revelar como expressões do senso comum, indicar a possível existência de um subentendimento ou se assentar em uma espécie de conceito primitivo. Portanto, se faz necessário realizar uma análise baseada nos conhecimentos já disponibilizados pelos estudiosos da Ciência Política para verificar se é realmente possível obstaculizar a politização. É oportuno acrescentar que há mais países no mundo onde está acontecendo a politização no interior da caserna tal como se verá mais adiante.
Clarificação dos termos
Assente-se então que os significados dos vocábulos politização e despolitização precisam ser inicialmente estabelecidos. Quanto à categoria politização, de modo geral, ela significa o ato de transportar uma questão ou uma instituição para o campo da política, ou tornar políticas aquelas coisas que antes não eram políticas. Revela o sentido de mover algo para o campo da esfera pública acompanhada da possibilidade da tomada de decisões coletivas a ele vinculadas, lembrando que tais decisões sempre exigem a escolha entre alternativas conflitantes.
Parece óbvio, portanto, que a despolitização se refere ao movimento contrário, ou seja, o ato de impedir ou retirar uma questão ou instituição do campo político, de tornar não políticas aquelas coisas que poderiam ser políticas ou que se encontravam no ambiente da política. Indica o bloqueio de determinados assuntos para a esfera pública ou a remoção delas desse espaço. Consequentemente o debate tende ao desaparecimento, expiram as escolhas entre propostas diferentes e o cenário político em termos de engajamento se torna muito estéril.
Como não poderia deixar de ser a palavra política constitui o elemento central desses dois significados, ou seja, a gestão do Estado, a qual nas democracias consolidadas viabiliza-se por meio dos representantes escolhidos pelo voto, pela participação direta do povo por meio de mecanismos inscritos na Constituição e pelo engajamento cívico ou cidadania ativa, observando que tal gestão assenta-se na assimetria das relações de poder a qual constitui a sua essência. Observe-se que as deliberações resultantes da política impactam a vida de todas as pessoas e as açulam abandonar o sentimento de indiferença a ela, estimulam se interessar por ela e a nela se envolverem. Ademais, não é acertado e nem confiável delegar todo o poder a uma minoria que soberbamente se considera portadora exclusiva da experiência e dos conhecimentos especializados necessários para bem governar o país.
Em termos de enquadramento cabe dizer que na teoria política a despolitização se situa na seção referente à antipolítica ou pós-democracia. Consequentemente, ela faz referência a um processo que leva a uma política despolitizada, em que a tomada de decisões se encontra cada vez mais escapando do controle e da responsabilização popular. Assim sendo, infere-se que todas propostas suscitadoras da despolitização se mostram como partidárias da antipolítica e contrárias à democracia. Ademais, são completamente indesejáveis por causa do momento delicado em que passam as democracias. Com efeito, um estudo recente sobre as percepções relativas a ela em dezenove países revelou uma elevada desconfiança com os processos eleitorais e uma preferência por governantes antidemocráticos.
O mencionado referencial prevê a existência de uma despolitização governamental, isto é, a retirada dos políticos do controle direto de uma vasta gama de funções, os quais são substituídos por modos tecnocráticos de governança e a delegação de decisões para um grupo de peritos. Destaque-se que a autonomização da perícia constitui a base da despolitização da esfera política. Também anuncia a presença de uma despolitização social que diz respeito ao desgaste gradual da deliberação coletiva em torno de uma questão relevante, porquanto a existência de escolhas sobre tal questão não é mais debatida e vaticina a emergência da despolitização discursiva que indica a recusa da expressão da subjetividade nos debates políticos e a afirmação do palavreado usado pela expertise.
É viável asseverar a existência de certos acontecimentos que podem ser enquadrados na vertente da pós-democracia e da antipolítica. Cite-se o caso do neoliberalismo decadente que emergiu na Inglaterra e nos Estados Unidos e se expandiu para várias partes do mundo cujos adeptos, esforçadamente, conseguem aturar apenas a vigência da democracia representativa. Fazem a defesa da eliminação dos direitos sociais, escudam a presença de um Estado mínimo e robusto, desprezam as conquistas democráticas das maiorias e almejam criar uma nova ordem cultural capaz de transformar profundamente a subjetividade humana, de tal forma que as pessoas não só aceitem, mas assumam a ideia de que o título de cidadão só pode ser outorgado ao consumidor.
O iliberalismo também pode nela se encaixar, haja vista que nos países que o adotam os cidadãos são afastados do exercício de controle sobre as atividades daqueles que operam realmente o poder porque neles se pratica uma democracia parcial. Os governantes iliberais, tais como Viktor Orbán na Hungria e Andrzej Duda na Polônia, são céticos em relação ao liberalismo por causa de muitas expectativas irrealizadas, expressam desilusão com as promessas da democracia liberal e depositam elevada desconfiança nas suas instituições. Após eleitos pelo processo democrático costumam adotar medidas para corromper a democracia e obstaculizar seu pleno funcionamento.
Outrossim o populismo tende a caminhar na mesma direção. Ele diz respeito a uma prática utilizada pelo governante destinada a angariar a simpatia e o apoio dos agrupamentos sociais desfavorecidos que envolve a defesa de seus interesses por meio de políticas públicas paternalistas e assistencialistas. Caracteriza-se por uma relação direta e não institucional entre ele e as massas, pela adoção de um vigoroso nacionalismo econômico, pelo emprego de um discurso centrado na harmonia entre classes sociais, pelo recorrente uso do carisma pessoal, pelo estabelecimento de uma rede de clientelismo e pela rotineira troca de favores. São exemplos típicos Cárdenas no México e Perón na Argentina.
Claramente favorável à política, ao regime democrático e à politização é a manifestação pós-moderna intitulada democracia radicalizada, entendida como aquela que tem por objetivo principal a luta contra todas formas de subordinação, inclusive a resultante das relações capitalistas de produção. Ela se baseia na generalização de uma lógica de equivalência e igualitarismo que não se coaduna com a concentração do poder. Também observa o princípio de que as contendas que acontecem na vida em sociedade com o intento de transformá-la devem levar em conta a ideia da pluralidade de agentes ou o conjunto de movimentos sociais voltados para causas diversificadas, que frequentemente emergem, permanecem por um tempo e tendem ao desaparecimento quando perdem força ou alcançam a finalidade pretendida.
Outra proposta pós-moderna centra-se na tese da democratização da democracia envolvedora de articulações entre a democracia representativa e a democracia participativa em termos de coexistência e complementaridade. Apesar do surgimento de alguns percalços já foi posta em prática de maneira exitosa em vários recantos do planeta com o protagonismo de comunidades e grupos sociais subalternos, ou seja, iniciativas locais tanto em contextos rurais quanto urbanos, tais como na Índia e na África do Sul.
Tem-se ainda a propositura liberal avançada denominada democracia social, que se assenta no pressuposto de que não pode existir um Estado democrático no âmbito de uma sociedade cuja maioria das instituições não são gerenciadas de maneira democrática. Assim sendo, a democracia deve ocupar determinados espaços até então dominados por estabelecimentos hierarquizados e burocráticos. Em decorrência é viabilizado o processo de tomada de decisões por meio do consenso ou do voto. É por demais sabido que em empresas e escolas de muitos países do mundo o emprego da gestão democrática se mostra frequente, particularmente nos Estados Unidos e na Europa.
Como pode ser notado, o referencial teórico exposto não se revela favorável a qualquer proposta de despolitização, seja ela voltada para instituições civis ou militares, ao contrário, se inclina totalmente para o lado da politização, haja vista que a mesma se apresenta como um ato pleno de consonância à política e à democracia. Ademais, a própria dinâmica e as peculiaridades do regime democrático obstaculizam a instauração de barreiras contra a sua marcha. Acrescente-se também que ela contribui muito para que o Estado democrático não entre em um perigoso estágio de ressecamento.
Protagonismo militar
Em relação às Forças Armadas, a realidade evidencia que a despolitização não tem encontrado espaço para nelas avançar porque a politização se encontra presente e ativa. A esse respeito vale lembrar que desde quando elas foram criadas após o imediato surgimento dos Estados nacionais, os governantes democráticos, insistentemente, resolveram adotar e tentar colocar em prática algumas diretrizes que consideraram adequadas para manter estável e harmônico o relacionamento entre civis e fardados. Estabeleceram que os militares deveriam permanecer confinados em quartéis e com plena autonomia se dedicar integralmente à arte da guerra. Assentaram mecanismos de supervisão e determinaram que eles deveriam desenvolver um alto nível de profissionalismo, reconhecer os limites de sua competência ocupacional, subordinar-se aos líderes políticos civis e não realizar intervenções na política. Por sua vez, os civis deveriam conceder autonomia profissional aos fardados, aceitar e legitimar a competência ocupacional deles e não permitir ou incentivar a ingerência política nas Forças Armadas.
Entretanto, tais diretrizes não conseguiram, de modo efetivo, nortear as atividades dos estabelecimentos castrenses, porque não levaram em conta a natureza deles. Embora o pensamento estratégico internacional vigente após o termino da guerra fria tenha atribuído às Forças Armadas o predominante papel de manutenção da paz, que tem sido exercido pelos capacetes azuis da ONU, sua destinação original, que é a guerra, começou a ganhar relevo novamente após a invasão da Ucrânia pela Rússia. E a guerra, como disse Carl von Clausewitz, um notório filósofo que viveu entre os séculos XVIII e XIX e dirigiu suas reflexões para o campo de batalha, é a continuação da política por outros meios.
Além de participar de guerras, de modo submisso à política e em atendimento a objetivos políticos, os servidores de uniforme constituem os elaboradores e executores principais da Política de Defesa Nacional que é voltada para possíveis ameaças externas. Também participam do planejamento e da execução da Política de Segurança Interna que envolve outras instituições paramilitares e setores da sociedade civil. Outrossim, muitos desses servidores frequentemente comparecem à Câmara dos Deputados, ao Senado Federal, à sede do Governo e a Ministérios para tratar de assuntos relacionados à vida das Forças Armadas. Nos cursos que realizam estudam e debatem inúmeros temas e questões das realidades nacional e internacional, os quais também se tornam materiais de vários textos que costumam escrever. Ademais, votam e são votados.
Não é só por serem instituições essencialmente políticas que a despolitização não avança nos estabelecimentos bélicos. Observe-se que a despolitização se assenta no pressuposto da clara distinção entre o personagem civil e a figura militar. Aqueles que a aceitam raciocinam de acordo com as regras do pensamento formal assim explicitadas: militar é militar e civil é civil; militar não é civil e civil não é militar; entre o civil e o militar não existe outra entidade.
Esses princípios são muito débeis e totalmente insuficientes para fazer avançar e aprofundar o raciocínio. Veja-se que existe outro ser entre o militar e o civil e que é, simultaneamente, civil e militar, qual seja, o cidadão de uniforme. Note-se que é esse personagem que integra as Forças Armadas dos países europeus desde há muito tempo, o qual não é submetido a nenhum processo de despolitização. Possuem e exercitam todos os direitos inscritos em documentos legais, inclusive o de livre expressão, de organizar e participar de sindicatos e de realizar greves.
O cidadão de uniforme emergiu graças ao acelerado e irreversível movimento da civilinização, que pode ser entendida como a presença ativa de civis nas Forças Armadas ou o emprego nelas de concepções civis. No âmbito das sociedades democráticas, o pujante avanço da tecnologia se apresenta como o grande responsável pelo fenômeno da civilinização porquanto ele aproxima cada vez mais os paisanos dos fardados bem como desfaz progressivamente a distinção entre eles. Esse amálgama de indivíduos e instituições contribui bastante para o desfazimento da separação entre militares e civis, possibilitando aos primeiros se comportarem como os segundos na esfera política. Observe-se que na Europa, as atividades públicas dos militares giram mais em torno das suas associações, pois elas os representam em suas demandas profissionais. A esse respeito cabe recordar que em 2016 soldados da Macedônia do Norte ameaçaram a realização de uma greve geral contra a política remuneratória em vigor. No ano passado cerca de duzentos oficiais, sargentos e praças portugueses vestidos à paisana compareceram ao Terreiro do Paço em frente ao Ministério das Finanças para acusar o governo de falta de vontade para negociar o pagamento de horas extras trabalhadas e criticar as diferenças salariais entre os que entram e os que já se encontram nas fileiras. Na Alemanha a possibilidade de demissão sumária de soldados voluntários após quatro anos de trabalho foi refutada pelos fardados que a considerarem ilegítima. Também já aconteceram manifestações desligadas de associações. É o caso ocorrido neste país em 2020, pertinente a um soldado que veio a público denunciar o que denominou de cultura tóxica de aceitação e de cultura do medo em referência ao comportamento de colegas da extrema direita, coletivamente ignoradas e toleradas. Outrossim, na França em 2021 um grupo de fardados divulgou nos meios de comunicação um texto que acusou o governo de ser incapaz de enfrentar o avanço do islamismo, da imigração e da violência interna. Apesar do Paquistão não pertencer à Europa, ele precisa ser mencionado haja vista que é bastante pertinente, pois seus militares, desde há muito tempo, interferem no processo eleitoral de tal forma que conseguem garantir que só os candidatos favoráveis a seus interesses conquistem a vitória nas eleições.
Nos Estados Unidos da América do Norte os fardados são orientados a disfarçar sua conduta para aparentar que são indivíduos apolíticos. Entretanto, a manutenção dessa sonsice é praticamente impossível haja vista que o próprio Departamento de Defesa emitiu a Diretiva 1344.10 relativa às Atividades Políticas de Membros das Forças Armadas em Serviço Ativo, as quais indicam aquelas que são permitidas e proibidas. Duas regras essenciais devem ser rigorosamente cumpridas, quais sejam, não se envolver em atividades políticas no ambiente de trabalho e não usar seus cargos para atacar ou defender questões políticas. Outras normas tratam de condutas específicas e indicam o que podem fazer, e muitos realmente fazem, tais como: escrever textos para jornais, blogs e redes sociais expressando opiniões políticas pessoais; assinar petições para ações legislativas; exibir adesivos de para-choque não ofensivos em veículos particulares; usar camisetas ou distintivos políticos quando não estiver fardado e emitir opiniões sobre candidatos e questões políticas
Cabe lembrar que no ano passado uma fundação que atua no país realizou uma pesquisa sobre o movimento da politização na caserna e descobriu que a preocupação dos servidores de uniforme para com ela vem crescendo porquanto 68% dos militares entrevistados disseram ter testemunhado uma politização moderada ou significativa nas Forças Armadas. Ela revelou também que dirigentes do Pentágono passaram a defender políticas e programas do Partido Democrata, em especial aqueles relacionados à diversidade, equidade e inclusão ao lado de um plano que inclui a obrigatoriedade de que todos os veículos militares não táticos sejam livres de emissões que afetem o clima, apesar da maioria dos oficiais se identificar e endossar abertamente o Partido Republicano. Expôs ainda que aproximadamente metade dos fardados costuma asseverar em público que o país deve continuar apoiando a Ucrânia na guerra contra a Rússia.
Em Israel os fardados também gozam de liberdade política. E do mesmo modo reina uma falsa percepção quanto ao traço apolítico dos militares, porquanto os mesmos se vêm como um corpo profissional que atua segundo uma concepção apartidária. Acreditam que fazem parte de um exército cidadão que se apresenta como a nação em armas pois reflete os matizes da sociedade civil haja vista que são oriundos de todas as camadas sociais. O livro de cabeceira deles, que contém o código de honra, os orienta a não se envolverem em atividades políticas. Entretanto, essa orientação vale muito pouco, a começar pela concepção de Estado que assumem. Com efeito, ele é idealizado como um Estado Guarnição, ou seja, sustentado pelo poder castrense. São os militares que possuem um Estado e dessa forma também pode ser visto como um Estado Patrimônio.
No que diz respeito aos palestinos, seus contendedores históricos, se arvoraram do direito de os policiarem e de os julgarem em processos judiciais. Por se considerarem um Exército do povo, que representa a unidade nacional, sentem-se à vontade perante as decisões políticas. Veja-se que em julho do ano passado milhares de fardados reformados e ativos se dirigiram ao Parlamento em Jerusalém para se juntarem ao protesto popular de oposição à reforma judicial promovida pelo governo e bradaram um grito de guerra contra a gestão ditatorial de Netanyahu. Em 2010 impediram a realização de um ataque às instalações nucleares do Irã solicitada por líderes políticos, e em 2019 não deixaram Netanyahu declarar a anexação da Cisjordânia, além de interromperem uma grande operação militar em Gaza. Outrossim, vale realçar que os militares estão acostumados a participar ativamente da elaboração das políticas de governo, bem além do estreito campo da segurança e da defesa, haja vista a longeva existência de órgãos específicos nas Forças Armadas que desenvolveram competências na área de estudos e pesquisas, oferecendo análises, elaborando propostas e minutas de projetos e apresentando diversas alternativas que abarcam as dimensões políticas, sociais, culturais e religiosas.
Considerações finais
Pelas colocações feitas anteriormente é possível inferir que a despolitização é uma atividade impossível de ser efetivamente concretizada porque o ser humano se define como um ente político, ele se sente impelido a agir na esfera pública porque as decisões que aí são tomadas abalroam a vida de todos. Por sua vez, as instituições que integram o Estado também são eminentemente políticas, e aqueles que dela fazem parte reagem politicamente.
Outrossim, a despolitização é um evento indesejável, porquanto se enquadra no âmbito da antipolítica e da pós-democracia. A inglória tentativa de concretizá-la se revela como uma inoportuna maneira de contribuir para o enfraquecimento da política e para o embotamento da democracia que na atualidade vem sofrendo um processo de definhamento por causa de diversos fatores dentre os quais se destacam ações deletérias de governantes iliberais.
As Forças Armadas pertencentes aos Estados nacionais são estabelecimento políticos indubitáveis, haja vista que os servidores de uniforme protagonizam a feitura da política de defesa, atuam na elaboração da política de segurança e operam na materialização de ambas. São agentes da guerra, uma extensão da política. Participam das contendas bélicas de modo subserviente à política e em resposta a finalidades políticas. Outrossim, nos dias que correm, os fardados, em múltiplos recantos do mundo, frequentemente se encontram realizando uma diversidade de ações políticas permitidas pelas legislações locais.
Autoridades civis e militares de países democráticos onde ocorre o fenômeno da politização na caserna, particularmente o Brasil, devem fazer o seu controle tanto no âmbito interno como no campo externo dela por meio da elaboração e promulgação de leis consentâneas. Tal legislação, junto ao acompanhamento de seu emprego, deve ser capaz de fazer com que a politização em andamento não esmoreça a supremacia do poder civil sobre os militares, não incentive o uso da instituição bélica para constranger governantes, não ameace ou destrua o regime democrático e não provoque, de forma abrupta ou paulatina, a decadência do exercício profissional.
Antônio Carlos Will Ludwig é professor aposentado da Academia da Força Aérea, pós-doutorado em educação pela USP e autor de Democracia e ensino militar (Cortez) e A reforma do ensino médio e a formação para a cidadania (Pontes).
¹ Julgamento do STF: ADI 6457 solicitada pelo PDT em 2020.
² “Entrevista: Ministro Barroso em Cambridge a jornalistas”, Folha de S.Paulo, 6 abr. 2024, p.A10.