Populismo ou revolução?
Coube ao coronel Hugo Chávez Frias expressar a revolta da massa popular contra essa degenerescência e liderar a derrubada da oligarquia. Nenhum progressista pode negar-lhe apoio. Porém, nem tudo são flores no processo venezuelano.
A Venezuela vive uma revolução antioligárquica. A massa popular heterogênea e pouco organizada voltou-se contra um esquema de poder político há mais de quarenta anos no governo.
Fruto de um acordo político (Pacto de Punto Fijo) para pôr fim a décadas de governos ditatoriais civis militares, esse esquema de poder, firmado entre as duas forças reformistas então hegemônicas – Adeco e Copei – funcionou bem durante os primeiros anos. Os dois partidos revezaram-se no poder por meio de eleições democráticas e se empenharam em governar constitucionalmente.
Contudo, não foram capazes, tal como as ditaduras civis e militares anteriores, de reciclar a imensa riqueza do petróleo venezuelano a fim de criar uma economia industrial apta a absorver a força de trabalho e garantir-lhe um padrão de vida digno.
Após quarenta anos de exercício do poder, os dois partidos perderam as referências iniciais e terminaram afogando-se na corrupção e na violência policial contra o povo.
Coube ao coronel Hugo Chávez Frias expressar a revolta da massa popular contra essa degenerescência e liderar a derrubada da oligarquia. Nenhum progressista pode negar-lhe apoio.
Porém, nem tudo são flores no processo venezuelano.
A experiência sul-americana com revoluções antioligárquicas não é nada animadora, principalmente para quem teme que o drama latino-americano se transforme em uma terrível tragédia.
Salvo o caso de Cuba, cuja revolução, como afirmou Caio Prado Jr., adquiriu logo o caráter de uma revolução socialista, as que permaneceram com um caráter meramente antioligárquico descambaram para um formato populista de governo – o que as levou ao fracasso, em razão, basicamente, da relação paternalista entre o líder e a massa popular.
Em processos de disputa entre as forças populares e as poderosas forças da direita – invariavelmente apoiadas pelo imperialismo norte-americano – as massas populares precisam estar politicamente preparadas para o enfrentamento. Isto não acontece nos regimes populistas, porque a relação da massa com o líder é uma relação vertical e paternalista, que dificulta a politização.
Enquanto o líder dispõe de recursos para atender às demandas populares – geralmente demandas por maior nível de consumo –, as coisas caminham. Mas se eles faltam em momentos de crise econômica, ele se vê diante de um dilema: radicalizar o processo, correndo o risco de enfrentar um golpe de Estado em condições muito desfavoráveis; ou ceder à pressão dos grupos financeiros e penalizar o povo – o que lhe acarretará temporariamente a perda do apoio de setores da massa, tornando-o presa fácil dos seus adversários.
O surpreendente no caso venezuelano é que este padrão não se repetiu por ocasião da tentativa de golpe de 2002, pois a população das periferias veio espontaneamente para as ruas, obrigando os golpistas a libertá-lo.
Ao que parece, Chávez tem consciência de que o apoio recebido nesse episódio não será suficiente para garantir a consolidação do processo revolucionário quando este for obrigado a realizar as rupturas mais decisivas. A prova disso é que está tentando montar o partido da revolução bolivariana – tarefa bem difícil em uma sociedade sem estrutura de classes definida e que herdou quarenta anos de clientelismo político desbragado e sindicalismo corrompido; além de ter sofrido a influência de uma Igreja profundamente reacionária.
Mas aqui surge a contradição: o carisma de Chávez, sua forma centralizadora de decidir, seu permanente protagonismo político chocam-se com as condições indispensáveis à formação de um partido político dotado de autonomia e independência, capaz de conscientizar e organizar a massa. A centralização das decisões nas mãos do líder carismático prejudica o trabalho político de formação de núcleos independentes e combativos, mobilizáveis na hora de um enfrentamento decisivo com a oligarquia.
Esse é o fundamento da crítica que fazem a Chávez alguns setores da esquerda venezuelana e latino-americana.
Sem dúvida, a crítica tem alguma pertinência, pois a organização de uma verdadeira base revolucionária é incompatível com o relacionamento paternalista entre a liderança de massas e o partido da revolução.
O risco dessa crítica – justa e que não pode ser ocultada – é descuidar da forma de fazê-la, pois a esquerda não pode esquecer-se nunca de que lado da barricada se encontra.
Transformar uma revolução antioligárquica em uma revolução socialista é, indubitavelmente, bem mais difícil do que diferenciar-se de uma oligarquia política que se desmoralizou no exercício do poder. Dosar os passos para realizar esse salto é o maior desafio que está colocado para Hugo Chávez Frias.
*Plínio Arruda Sampaio foi coordenador do plano de ação do governo de São Paulo (1958-62); secretário de negócios jurídicos da prefeitura de São Paulo; deputado federal; deputado constituinte; candidato a governador de São Paulo (1990 e 2006). Dirige atualmente o jornal eletrônico Correio da Cidadania (www.correiocidadania.com.br) e integra o Conselho Editorial de Le Monde Diplomatique Brasil.