Por mais Estado, e menos poder
O que até agora era chamado, com desdém, de “a rua árabe” se transformou em “povo”, mesclando todas as classes sociais e todas as faixas etárias. Será essa uma nova “Primavera Árabe”, esperada há tanto tempo, desde a vitória sobre as forças coloniais britânicas e francesas?Samir Aita
Os fundamentos da “Primavera” residem muito além das reivindicações pelas liberdades políticas e pela democracia. É preciso buscar na economia política as razões da rejeição dessa “exceção árabe”, à qual o novo despertar quer pôr fim: regimes autoritários e estáveis desde os anos 1970. Pois se, nessa parte do mundo, as monarquias são absolutas e as repúblicas petrificadas por presidentes vitalícios (e por cargos hereditários), foi porque um poder supremo1 erigiu-se acima do Estado e das instituições implantados a partir da independência e dotou-se dos meios para perdurar.
Como foi que ele conseguiu? É claro, apoiando-se nos serviços de segurança que ele controlava diretamente e que escapavam de toda supervisão dos parlamentos e até mesmo dos governos. Assim, não era raro ver um membro dos tais serviços admoestar um ministro ou impor-lhe uma decisão. Mas, esses aparelhos – tentaculares – foram necessariamente financiados, assim como as diferentes redes clientelistas nos partidos únicos ou avassalados. Os fundos que os remuneravam não provinham verdadeiramente dos orçamentos públicos, diferentemente dos da polícia ou do exército, mas sim de fontes diferenciadas.
A renda petroleira havia aumentado consideravelmente após a explosão do preço do petróleo bruto em 1973. Nos circuitos de comercialização, e com a conivência das grandes transnacionais, uma parte das receitas era recolhida diretamente para os cofres das famílias reais ou “republicanas”, em vez de alimentar o tesouro público. O “ouro-negro”, entretanto, não era a única fonte dos recursos captados pelo poder. Além das comissões recebidas nos grandes contratos públicos (tanto civis quanto militares), que diminuíram por causa das restrições orçamentárias impostas pelos “ajustes estruturais”, novas oportunidades foram surgindo. Assim, nos anos 1990 ocorreram ao mesmo tempo a introdução da telefonia móvel e a primeira grande onda de privatização dos serviços públicos, com “parcerias entre o público e o privado” de diferentes naturezas.
A crescente globalização das economias árabes e as exigências impostas pelo FMI aceleraram essa dominação do poder sobre a economia, em particular após a grave crise financeira que se alastrou em 1986.2 Esta gerou desdobramentos: diminuição dos investimentos públicos e enfraquecimento dos governos em seu papel regulador; e a introdução de transnacionais em situações de monopólio ou oligopólio, em troca da partilha dos dividendos com a cúpula no poder.
Mais tarde, foi a vez do setor imobiliário. Arrebatados pelo entusiasmo generalizado suscitado pelo “milagre de Dubai”, todos os poderes árabes empreenderam operações imobiliárias espetaculares que permitiam disfarçar a mistura dos interesses públicos e privados. Terrenos foram declarados de utilidade pública para serem vendidos a baixo preço a empreiteiras; os centros históricos de muitas cidades foram abandonados e as obras de renovação dos seus riyad3 foram oferecidas a investidores fascinados pelo “charme do Oriente”. Com isso, os preços do mercado imobiliário local acabaram rivalizando com aqueles praticados em Tóquio, Paris ou Londres.
O mecanismo essencial que permitiu o funcionamento de toda essa máquina foi o setor bancário. Este possibilitou não apenas a lavagem do dinheiro da renda adquirida, como também a reciclagem desta em operações imobiliárias e comerciais. O setor bancário também foi usado como instrumento de dominação pelo poder, ao qual ele permitiu garantir de maneira duradoura a submissão e a fidelidade das empreiteiras locais, por meio do crédito.4
Contudo, esse desenvolvimento excepcional gerou um efeito colateral nefasto: o enfraquecimento do Estado e dos serviços públicos. Os membros dos governos eram cooptados na cúpula do Estado; nos melhores casos, tratavam-se de tecnocratas oriundos das grandes instituições internacionais (o Banco Mundial, em particular) e que careciam de uma legitimidade eleitoral, ou ainda de um programa em relação ao qual eles teriam que prestar contas. O Estado acabou sendo considerado como uma mera burocracia. Até mesmo o exército foi se enfraquecendo.5
O modo de governo foi se transformando e acabou se tornando totalmente diferente daquele que havia sido implantado a partir das independências – e que havia permitido a eletrificação do campo, e ainda a generalização da educação pública. Os serviços públicos foram se deteriorando, em proveito de uma privatização oculta praticada ao sabor das rendas que alguns conseguiam acumular. Até mesmo na rica Arábia Saudita, em Jedá, a água encanada está disponível apenas uma vez por semana.
Toda vez que um escândalo vem à tona, campanhas anticorrupção são lançadas, mas os seus efeitos são limitados. Como se essa fosse apenas uma questão moral ou religiosa, como se não se tratasse na verdade de uma apropriação sistêmica do valor agregado praticada por um grupo dirigente que, pelas suas características, passou a ser comparável com… o grande capital.
Na base da pirâmide social, a dignidade humana e o valor do trabalho acabam vilipendiados. Cerca de um terço da população ativa está no setor informal. Assim, não são levados em conta nas estatísticas do desemprego, o que não impede estas de apresentar uma taxa de dois dígitos, há duas décadas. Outro terço da população ativa é empregado no setor privado chamado de formal; em sua maior parte, constituído quer por trabalhadores independentes, quer por “assalariados” sem contrato de trabalho, nem previdência social, nem aposentadoria, nem mesmo direitos sindicais. A tal ponto que a própria noção de assalariado se perdeu,6 ao menos fora do setor público e da administração. Neste último caso, os direitos sociais continuam sendo preservados, o que torna os cargos muito cobiçados, principalmente por mulheres. Mas as oportunidades são raras, justamente em razão das políticas de “ajuste estrutural” que impõem a redução dos gastos do Estado, e não o aumento das suas receitas.
Foi preciso esperar o advento da geração oriunda do baby boomárabe, cujos integrantes passaram a ter idade para trabalhar no decorrer dos anos 2000, para que, na Tunísia e no Egito, a base da pirâmide sobrepujasse o topo. E que em muitos outros países, a estrutura social como um todo fosse abalada. Alguns se dizem espantados diante da multiplicação das reivindicações sociais ou corporativas que arrebentaram em todo lugar, como se a construção pós-independência tivesse ocorrido de modo pacífico.
Pois é justamente o Estado de direito que precisa ser reconstruído nos países árabes. Um Estado no qual o poder é temporário, submetido às instituições, e não em levitação acima delas; e no qual as rendas do poder sejam desmanteladas uma após a outra, assim como os monopólios, de modo a libertar a energia para empreender. Um Estado no qual as liberdades políticas e sociais são garantidas para todos, de modo que aqueles que trabalharem, conquistem seus direitos por meio da luta e da negociação. Um Estado de consenso social que tenha obrigação de prestar contas. Essa evolução não será nada fácil de alcançar; pois a tendência mundial, inclusive na Europa, não aponta nessa direção…