Por que não querer que os incrédulos se contaminem?
Há alternativas ao desejo de que o contágio e a morte sirvam de “lições” aos que não levam o vírus a sério
Somente a experiência determina a percepção? Todas as respostas possíveis a essa pergunta não podem ser determinantes.
Ao dizer categoricamente que não, se deslegitima, por consequência inevitável, os importantes relatos individuais sobre ser migrante, mulher, LGBT ou negro em diferentes lugares e contextos do mundo. Neles, é a experiência de ser que organiza boa parte do agir, do falar e – principalmente – do reagir. Além disso, uma resposta negativa seria também uma tentativa de tirar toda a potência da teoria da interseccionalidade – que só tivemos condições de criar pouco tempo atrás.
Apesar dos tempos estranhos que vivemos, o argumento antiexperiência deve ser raríssimo de se encontrar.
Por outro lado, afirmar sem ressalvas que sim, que a percepção depende somente da própria experiência, significaria tirar das lutas, das narrativas, das atitudes e das mobilizações sociais todos aqueles que podem se colocar nelas mesmo quando diante dos seus próprios privilégios – ainda que isso não pareça ser suficiente para mudar as estruturas que mantém essas mesmas experiências. Essa postura, ao contrário, esvaziaria as várias adesões possíveis a demandas sociais legítimas que, se não são necessariamente experimentadas por todos, podem se fazer conhecer e, mais do que isso, engajar esses mesmos outros em causas importantes.
Sem contar que encapsular a experiência como única condição para perceber teria como outro efeito inevitável justamente uma atitude no mundo que a esquerda liberal de hoje parece abominar: a construção de fronteiras, o enrijecimento de possibilidades, a rigidez do ser e do agir. Para ela, faz cada vez mais sentido viver em um mundo com várias experiências paralelas, além de compartilhadas e divididas constantemente com os outros – até com o objetivo final de aliviar o peso do indivíduo que está fora da experiência considerada “normal”.
Todas essas questões, porém, estão postas novamente em meio à experiência totalizante e totalitária da pandemia, e isso porque ela se adaptou às crises social, institucional e econômica que o país já enfrentava há alguns anos.
Enquanto as curvas matemáticas de contaminados e mortos crescem diariamente, aumentam também os consumos que se fazem dela – muitos minimizando a gravidade da doença e exigindo o fim da quarentena, outros consumindo a pandemia como um desígnio divino ou uma ilusão política de nível global e, entre esses, aquelas que encontram a solução ao vírus na fé individual. Vão de influenciadores digitais a pastores e padres, de pessoas comuns a presidentes.
Do outro lado, entre aqueles que consomem a pandemia como a grave crise social, política e sanitária que é, muita gente não hesita em colocar como alternativa a esses incrédulos, teóricos conspiratórios e religiosos a própria contaminação – ou a morte. São aqueles que argumentam que a única maneira dessas pessoas consumirem a crise do covid-19 como deve ser consumida é contraindo-a, sentindo-a na pele, experimentando-a por si mesmas.
Na mesma linha, há quem defenda que a contaminação ou morte de um propagador desses discursos descrentes pode ser socialmente positivo, porque seriam acontecimentos capazes de ensinar aos demais como a pandemia deve ser realmente encarada.
A lógica por trás desse argumento, sequer tão imperceptível assim, é parecida à do suplício — apresentado em toda sua mediocridade física e metafísica por Cesare Beccaria em “Dos Delitos e das Penas”, no século XVIII, e muito tempo depois pelo filósofo francês Michel Foucault, em seu clássico “Vigiar e Punir”, de 1975. Ambos fazem referência a período histórico semelhante, a Idade Média, em que a punição aos que infringiam as leis seguia uma mesma ideia: não se pode expiar a culpa sem experimentar a dor e a violência da pena no próprio corpo. Foucault, por exemplo, escreve que o supliciado deveria passar por um sofrimento comparável a “mil mortes”, que precisaria — se sobrevivesse — ficar marcado para sempre e, em terceiro lugar, que toda sua dor teria a função de impressionar os outros, “porque o exemplo deve ficar profundamente inscrito no coração dos homens”.
Mas há outra lógica, mais abstrata, que ampara o argumento de que essas pessoas devem ficar doentes de covid-19 para compreenderem a pandemia: a de que não somos mais do que seres reativos, carnais, presos inequivocamente às sensações do corpo, de que o instinto a principal instância de compreensão da realidade — seja lá o que ela for. Esse movimento, no entanto, não leva em conta todo aquele pensamento social, psíquico e filosófico (ocidental) amparado em ideias que vão da dialética de Platão (cujo pilar é o diálogo como instrumento de busca da “verdade”) ao inconsciente freudiano (que supõe que sequer conhecemos a nós mesmos em sua inteireza). Esse pensamento nos leva, ao contrário, a considerar a própria experiência como parte da percepção, não ela em si.
Esse argumento aparece em toda sua força em um artigo publicado há quase dois anos na revista Piauí pelo professor e cientista social Antonio Engelke, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) – como uma crítica à ideia de “pureza” da experiência Diz ele que “a experiência é uma condição necessária, mas não suficiente, para o conhecimento. Há sempre um hiato entre aquilo que experimentamos e o modo como lhe conferimos inteligibilidade: nenhuma experiência constitui por si só uma história acabada, apenas oferece elementos a partir dos quais podemos tecer sua significação. Paradoxalmente, a experiência pode ser ao mesmo tempo uma condição para o conhecimento e um obstáculo à sua obtenção, pois é também o excesso de proximidade ou familiaridade que introduz problemas à nossa capacidade de compreensão”.
Quais são, então, as alternativas? Como não querer que contraiam a doença ou morram por causa dela para dar o exemplo justamente aqueles que não se importam com os impactos coletivos de seus atos individuais em meio a uma pandemia de um vírus desconhecido?
Se a crítica é legítima (como é) e se se pretende coletiva, no sentido de privilegiar a sociedade ao invés dos indivíduos, então ela é potente por si só para prevalecer sobre aqueles que minimizam ou desacreditam da situação. Do ponto de vista prático, esse é o discurso que já está posto por diferentes instâncias sociais relevantes — dos veículos da imprensa às empresas privadas, da publicidade à maioria das instituições públicas nacionais e internacionais. Como também ensina muito do pensamento social produzido no século XX, são elas que, em sociedades democráticas, orientam os discursos em circulação, inclusive permitindo a criação dos que se opõem a eles.
Esse sentido coletivo da crítica, aliás, pode ser um dos caminhos para aquela já tão falada mudança em direção à solidariedade social adaptada ao capitalismo no mundo pós-pandêmico. Ou seja: usar esse argumento como álibi para construir sociedades diferentes.
Sendo a crítica legítima, há outras posturas para torná-la inevitável. Uma delas (mas não só) é o diálogo — justamente o oposto da reação, do instinto, do animalesco, por ser, nos seres humanos, onde ele atinge seu nível mais alto. Ao desejo do suplício dos incrédulos estão colocadas todas as possibilidades de conversa, de todos os ramos possíveis da comunicação, das ideias, da circulação instantânea de informações, dos fatos, da retórica e da oratória, do texto, da notícia de jornal, do poema, do convencimento, da ironia e suas variantes e de todas as outras possibilidades de interagir. O diálogo é uma demonstração de que a experiência, por mais que seja fundamental para a percepção, não a constrói sozinha, e de que há outros meios (coletivos, para o mundo que virá) de observar o mundo.
Se não são suficientes por si só, se não garantem um sucesso definitivo, são os melhores que temos em relação ao desejo de que o outro, em posição contrária, morra. Sem contar o paradoxo de que, do outro lado, estão também aqueles que desejam que peguemos a doença para percebermos ela não “passa de uma gripezinha” – então, as duas posturas se tornam idênticas, apesar de parecerem completamente contrárias.
O historiador israelense Yuval Noah Harari, autor do best-seller “Sapiens”, por exemplo, tem utilizado uma ideia parecida para propor uma cooperação global diante da pandemia: “[A comunicação] é a grande vantagem dos humanos sobre os vírus. Um coronavírus na China e um coronavírus nos EUA não podem trocar dicas sobre como infectar humanos. Mas a China pode ensinar aos EUA muitas lições valiosas sobre o coronavírus e como lidar com ele. O que um médico italiano descobre em Milão no início da manhã pode muito bem salvar vidas em Teerã à noite”, escreveu em março.
Por fim, assumir as várias formas de comunicação em detrimento à contaminação dos que nos são opostos não significa tê-la como instrumento possível em qualquer momento da história. Muitas revoluções do passado não aconteceriam se elas fossem nossa única alternativa. Ao contrário, essa postura é uma maneira possível de lidar com este contexto em específico, em que o país não convive apenas com um vírus desconhecido como crise.
Assim como já havia escrito há um mês, o mundo do lado de lá da pandemia espera ansiosamente pelo que estamos fazendo agora, no meio dela. Se já abundam prognósticos positivos (seremos mais solidários, compreensivos, preocupados com o meio ambiente e menos individualistas e consumistas), também é o momento de refletirmos sobre o que não queremos levar para lá.
Vinícius Mendes é jornalista, cientista social, mestrando do departamento de Sociologia da USP e professor do curso de Jornalismo da Universidade Paulista (UNIP).