O que é o vírus e quem nós somos?
Ao questionarmos sobre a origem da pandemia, caímos novamente em uma pergunta cada vez mais longe de ser respondida
Ainda que as perguntas que intitulam esse artigo não estejam postas diretamente, um dos principais movimentos do nosso presente imediato tem sido respondê-las – sempre partindo da primeira para desaguar, inevitavelmente, na segunda, em uma espécie de jogo cuja perspicácia está no fato de que, para cada tentativa particular de explicar o que é o vírus, chega-se a uma resposta diferente para quem nós somos.
É só depois de trilhar cada circuito de respostas possíveis do jogo que, então, os prognósticos e previsões distintos entre si sobre o que será do mundo quando a epidemia passar são produzidos.
Um dos caminhos mais comuns por enquanto – talvez uma tentativa de oferecer alívio às pessoas que conseguiram ficar em quarentena – termina obrigatoriamente na esperança. Nesse circuito, o vírus vai de uma mensagem natural para o aperfeiçoamento do espírito humano (um argumento que tem perpassado líderes religiosos diferentes entre si, como a missionária Monja Coen e pastores evangélicos) até uma oportunidade dada pelo acaso para que as relações sociais se tornem menos racionalizadas e mais solidárias.
A previsão final, neste caso, é que a pandemia será como uma brecha produzida pela colisão entre dois momentos históricos: aquele em que a individualidade da democracia capitalista liberal chegou ao seu ápice e um novo, que ainda não conhecemos (porque estamos na brecha), que vai exigir estruturas mais coletivas e não menos democráticas nas formas de organização das sociedades.
“E se usássemos essa quarentena para desenhar um modelo para ampliar a democracia e garantir que a ocupação dos locais públicos seja um direito universal? E se o isolamento fosse usado como incubadora de uma nova geração de líderes? E se o isolamento fosse aproveitado para ajudar nossos filhos sem escolas por semanas a desenhar a letra A? A de ágora”, questiona, por exemplo, o jornalista e escritor Jamil Chade em um artigo publicado no jornal espanhol “El País”.

Politicamente inevitável
Para a antropóloga brasileira Rosana Pinheiro-Machado, “no meio da catástrofe, existe a possibilidade de se repensar radicalmente o que queremos como humanidade e projeto político” e, para a escritora canadense Naomi Klein, a crise oferece à sociedade capitalista chance de elaborar alternativas às políticas vigentes, de forma que “o politicamente impossível se torne politicamente inevitável”.
É também uma sociedade que, em meio ao caos imunológico, tem uma lista de comportamentos coletivos para aprender, segundo o sociólogo italiano Domenico De Masi, em um artigo que foi traduzido para o português na edição do último domingo da “Folha de S. Paulo”. Para ele, a crise atual mostra, antes de tudo, que, por termos nos tornado uma “aldeia global” (nos termos do filósofo Marshall McLuhan), apenas esforços conjuntos, a nível global, podem conter a pandemia – um argumento muito semelhante ao do historiador israelense Yuval Noah Harari, autor do best-seller mundial “Sapiens – Uma Breve História da Humanidade” (Harper, 2011)
De Masi vislumbra que o pós-coronavírus fará com que as pessoas percebam a importância da ciência, da comunicação e do bem-estar social, em detrimento ao senso comum, às fake news e ao neoliberalismo – exemplificado por ele pela ausência de um sistema público de saúde nos Estados Unidos, que deve ser o próximo epicentro da pandemia.
Harari, que também oferece alguma esperança, a coloca entre alternativas dentro em um rol de escolhas que nos são possíveis: entre confiar na ciência ou negá-la ou entre o “isolamento nacionalista” ou a “solidariedade global” – pelo qual ele advoga.
Compartilhar soluções
Os países terão de entender que, diante de uma crise global, soluções só podem ser eficazes quando compartilhadas da mesma forma, porque essa é a grande vantagem dos seres humanos diante do vírus: a possibilidade de se comunicar. Logo, se o vírus é uma ameaça passageira, Harari diz que saberemos tirar alguma coisa positiva dela e, então, poderemos habitar um “mundo diferente” depois.
As redes sociais – talvez na vanguarda das previsões – também tentam oferecer um horizonte desse solidário mundo pós-coronavírus. Nele, os moradores mais jovens dos condomínios das capitais colam cartazes nos elevadores sociais se comprometendo a fazer compras de supermercado para os mais velhos, vizinhos em suas varandas rompem momentaneamente com o cotidiano da quarentena para aplaudirem, juntos, os profissionais da saúde e celebridades endossam – coagidas pela necessidade de se posicionarem – a mensagem para que todos fiquem em casa em seus perfis abarrotados de seguidores. Tudo devidamente padronizado pelas regras informais das postagens e registrado para a posteridade – aquela em que o mundo “será melhor”.
Mas há, do outro lado, um circuito menor de respostas cuja solução final não pode ser otimista. Nessas interpretações, o vírus pode ser desde um castigo divino, passando por uma demonstração da pequenez humana, uma prova da nossa inevitável maldade – aquela que, mesmo tão perto da morte, nos leva a fazer política, debater economia, rediscutir contratos – ou então uma mesma oportunidade do acaso para que as sociedades notem seus erros de funcionamento, sem que isso represente mudanças significativas.
Mundo de amanhã
Aqui, a previsão não é tão melhor que o diagnóstico: a pandemia vai passar em algum momento, deixando para trás um mar de pessoas separadas para sempre pela doença, mas aquelas que ficarem já não estarão tão interessadas em transformar todas as estruturas que foram construídas até aqui – do extrativismo às relações desiguais de trabalho, da desregulação dos mercados à desigualdade social. E tudo isso por um motivo simples: se essas coisas são quase imutáveis é porque é isso mesmo que nós somos.
Um dos expoentes desse percurso de respostas é o filósofo germano-coreano Byung Chul-Han, famoso por seu “Sociedade do Cansaço” (Vozes, 2015). Ele escreveu no mesmo “El País” que o “mundo de amanhã”, depois da pandemia, pode ser até pior do que o daquele que era há dois meses: nele, a vigilância social distópica do governo chinês – que, por um incrível dilema sociológico, é o que ajudou o país a conter a contaminação local do vírus – chegará ao Ocidente, vendido como um pacote de sucesso em um momento de comoção. Sem contar que, para ele, quando tudo acabar, “o capitalismo continuará com ainda mais pujança. E os turistas continuarão pisoteando o planeta”.
As coisas não vão mudar, segundo o filósofo, porque quem faz revoluções são pessoas, não novas cepas de vírus. Assim, se a pandemia é produto de um processo natural, nós somos quem não sabemos reagir a ela, e é por isso que o mundo permanecerá o mesmo no futuro próximo.
Fronteiras de si mesmo
É um circuito parecido ao da filósofa estadunidense Judith Butler que, reagindo à tentativa do presidente dos EUA, Donald Trump, de comprar a patente de uma vacina em fase de pesquisa por um laboratório alemão, escreveu um texto recentemente traduzido pelo blog da editora Boitempo. Talvez seja esse o motivo para seu horizonte tão pessimista: em um país em que muitas pessoas acreditam, de fato, que suas vidas valem mais do que outras, o alastramento de um vírus desconhecido não faz mais do que reforçar as fronteiras de si mesmo.
“O vírus por si só não discrimina, mas nós humanos certamente o fazemos, moldados e movidos como somos pelos poderes casados do nacionalismo, do racismo, da xenofobia e do capitalismo. Parece provável que passaremos a ver no próximo ano um cenário doloroso no qual algumas criaturas humanas afirmam seu direito de viver ao custo de outras, reinscrevendo a distinção espúria entre vidas passíveis e não passíveis de luto, isto é, entre aqueles que devem ser protegidos contra a morte a qualquer custo e aqueles cujas vidas são consideradas não valerem o bastante para serem salvaguardadas contra a doença e a morte”, escreveu ela.
No entanto, se há algo que a pandemia atual tem, inevitavelmente, de impactante (nem positivo nem negativo), é a proposição repentina da segunda pergunta (quem nós somos?) outra vez. E, de fato, é ela que está em disputa neste momento em que as curvas de crescimento de doentes crescem diariamente em vários países (da Espanha ao Brasil) e que o epicentro da contaminação está migrando de continente (da Europa para os EUA). A resposta para ela depende de como se entende subjetivamente o vírus, sem contar todo o nosso conjunto de inclinações sobre a existência anterior ao coronavírus. A importância de seguir tentando respondê-la está na dependência do que serão as sociedades de daqui alguns meses.
Em um mundo cada vez mais digitalizado, como argumenta Chul-Han, a realidade bruta parecia mesmo um pouco esquecida. Ou talvez não, e ela fosse justamente isso, uma existência ainda inequivocamente real, mas agora instrumentalizada pelos novos meios sociais de expansão de si mesmo – redes sociais, uma inédita soberania da própria cognição, a possibilidade de congregação de grupos em torno de qualquer ideia. Talvez essa seja a minha resposta momentânea: um incrível dilema sociológico em que a individualidade se afirma cada vez mais por meio da coletividade, e que pode ser uma ameaça ou uma esperança para o mundo pós-pandêmico.
É possível (talvez provável), no entanto, que nunca saibamos o que é o vírus para além das conclusões científicas – suas curvas de contaminação nas populações, suas origens nos animais selvagens, suas fraquezas biológicas, suas potencialidades naturais. Assim, seguiremos sem saber quem somos e, portanto, o que será do futuro breve.
Vinícius Mendes é jornalista, cientista social, mestrando do departamento de Sociologia da USP e professor do curso de Jornalismo da Universidade Paulista (UNIP).