Por que o caso de Isa Penna é pedagógico para a política brasileira
A violência política de gênero atua de muitas maneiras – pode ser psicológica, sexual ou física, abrangendo de sutis comentários sobre aparência a estupros e assassinatos. E esse é hoje, no mundo todo, o maior desafio para as mulheres na política.
Nem só de tragédia e retrocesso vive o Brasil. No início deste mês algo inédito aconteceu na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp): a suspensão, por seis meses, do deputado Fernando Cury, que, em pleno plenário, assediou sexualmente a colega Isa Penna. Graças à mobilização primorosa da sociedade civil, pela primeira vez um caso do tipo foi punido numa casa legislativa brasileira. Mas por pouco a tradição da impunidade não se manteve. A primeira sentença foi praticamente um aviso de férias, já que Cury teria 119 dias de licença remunerada. Agora, com a nova decisão, o deputado e todo o seu gabinete serão efetivamente afastados – sem salários ou benefícios.
O que ele cometeu tem nome: violência política de gênero. É recente a discussão em torno dessa questão e o entendimento de que ela é sistêmica, e faz parte do dia a dia daquelas que exercem seu direito político de votar ou ser votada. Das mais de cem eleitas em seis países latino-americanos que entrevistei para o estudo Eleitas, publicado pelo Instituto Update, 99% relataram ter sofrido algum tipo de violência política de gênero. O 1% restante era composto por mulheres que, imersas em nossa cultura patriarcal, não enxergavam o machismo institucional. Pois a violência política de gênero atua de muitas maneiras – pode ser psicológica, sexual ou física, abrangendo de sutis comentários sobre aparência a estupros e assassinatos. E esse é hoje, no mundo todo, o maior desafio para as mulheres na política.
O deputado teve, portanto, uma punição exemplar. A partir de agora há uma risca no chão, um marco para a proteção às mulheres. Com esse precedente, muito bem-vindo, a Alesp dá um primeiro passo para que a violência política de gênero seja criminalizada no Brasil. Poucos países o fizeram – e, nesse aspecto, a América Latina está na vanguarda. A Bolívia é o único país a ter uma lei específica, enquanto no México, na Argentina, no Equador e em El Salvador, existem legislações de proteção, prevenção e erradicação de violências contra as mulheres, que incluem uma tipificação em relação ao ato.
No entanto, é importante que todos saibam que Cury estaria, agora, aproveitando suas férias caso a sociedade civil não se mobilizasse para articular apoio às deputadas (como Marina Helou e Erica Malunguinho) que lutavam contra a misoginia dentro da Alesp. Organizações como Vote Nelas, Vamos Juntas, Elas no Poder, 342 Artes e Instituto Update se uniram a pessoas físicas como a escritora Beatriz Bracher, a cineasta Daniela Thomas e a gestora cultural Mari Stocker para lançar a campanha “Por uma Punição Exemplar”. O grupo angariou mais de 42 mil assinaturas e, por fim, conseguiu a unanimidade que suspendeu Cury. Pode parecer pouco para quem, como eu e muitas outras, gostaria de vê-lo cassado, mas o peso histórico da sentença é incontestável. Além de abrir o já mencionado precedente a favor de outras mulheres vítimas de assédio, o resultado comprova que a união sem interesses políticos entre a sociedade civil e o poder público é o que pode fazer com que pautas fundamentais para a nossa democracia, emperradas há anos, enfim avancem.
A vitória de Isa é uma vitória nossa, das mulheres, da sociedade civil, das políticas e dos políticos que perceberam que uma atuação conjunta é o primeiro passo para abrirmos caminhos institucionais, que levam a um futuro igualitário – onde as notícias boas não serão exceções. Precisamos seguir juntos numa caravana rumo a Brasília, trabalhando para que um critério de punição para a violência política de gênero possa ser aplicado em nível federal. Esse crime deve ser previsto na lei brasileira. Se nos mantivermos unidos – organizações, cidadãos e classe política –, a vista grossa a assediadores e estupradores estará com os dias contados.
Beatriz Della Costa é cientista social, cofundadora e diretora do Instituto Update, organização da sociedade civil sem fins lucrativos que lançou em 2020 o projeto Eleitas: Mulheres na Política (www.eleitas.org.br), e que mapeou mais de 600 mulheres e entrevistou mais de 100 para mostrar como elas vêm transformando a política, a sociedade e a democracia na América Latina.