Por que o Hamas (ainda) não reconhece Israel
Dois novos estudos revelam algo que os meios de comunicação omitem: todas documentos mais recentes o grupo majoritário no Parlamento palestino sugerem que ele está disposto a aceitar o Estado israelense. A pergunta é: esta oportunidade para a paz será aproveitada?Paul Delmotte
O fracasso, até agora, da criação de um governo palestino de coalizão coloca a seguinte questão: por que o Hamas, apesar de pressões de todas as partes, recusa-se a reconhecer — oficial e explicitamente — o Estado de Israel? A primeira resposta é simples: o movimento considera que tal reconhecimento seria uma concessão inútil. O Hamas não se esqueceu que isso foi, durante décadas, exigido da OLP e do Fatah “laicos”. Lembra também que quando estas organizações aceitaram tal reconhecimento, não obtiveram nada em troca: nem o Estado Palestino, nem a capital em Jerusalém Oriental. E tampouco Israel aceitou a sua responsabilidade sobre o êxodo dos palestinos entre 1947 e 1949, nem o princípio do “direito ao retorno” (ou a compensações) de quase 5 milhões de refugiados.
Em março de 2006, o primeiro-ministro israelense, Ehud Olmert, anunciou um programa de retirada, estipulando que Israel pretendia conservar 36,5% da Cisjordânia, além de Jerusalém Oriental e do vale do rio Jordão. Ou seja: entre 40 a 50% dos 22% da Palestina “histórica” onde Yasser Arafat esperava criar o Estado Palestino… Nestas condições, o Hamas parece, portanto retornar à posição em que se colocava a OLP nos anos 1970 e 1980: conservar em seu poder a “carta” do reconhecimento explícito de Israel, multiplicando ao mesmo tempo “pequenas declarações” que exprimem um reconhecimento de fato do Estado.
Entretanto muitos persistem em ver no radicalismo do discurso do Hamas o único efeito de uma Weltanschauung (visão de mundo) islâmica. Fazem constantes esforços, como lamentam os pesquisadores Bruno Guigue [1] ou Khaled Hroub [2], para definir a política do Hamas unicamente a partir do seu documento de agosto de 1988.
Os sinais de mudança que a mídia não vê
Hroub analisou meticulosamente três textos fundamentais do movimento islamita posteriores à carta de 1988: a plataforma eleitoral do Hamas, intitulada “Mudança e Reforma”, do outono de 2005; seu projeto de “programa de governo da união nacional” (março de 2006) e a plataforma governamental apresentada pelo primeiro-ministro Ismail Haniyeh ao novo parlamento, em 27 de março de 2006. O pesquisador assinala que o Hamas se tornou uma “uma organização profundamente diferente” daquela nascida no início da primeira Intifada, em dezembro de 1987.
Segundo ele, a organização se diz preocupada com as liberdades políticas, “incluindo a liberdade de expressão, de imprensa, de associação, de pluralismo, de separação dos poderes, de alternância pacifica no poder”. E também da “construção de uma sociedade civil desenvolvida” e do respeito aos direitos das minorias… Além disso, do primeiro ao terceiro texto analisado, as referências religiosas estão cada vez mais raras e o tema da “luta armada” está sendo substituído [3] por preocupações quanto à “governabilidade” e reformas civis. Enfim, a evolução clara no que se refere à solução como “dois povos, dois Estados” e a atitude em relação aos acordos internacionais sobre a Palestina.
Nenhum desses documentos é difundido na mídia e nos círculos oficiais ocidentais. Entre os treze pontos do texto “Mudanças e Reformas” que tratam da política legislativa e judiciária, constata Khaled Hroub, apenas o primeiro, segundo o qual “a lei islâmica deverá ser a principal fonte da legislação”, chama a atenção e provoca medo quanto a um projeto de islamização da sociedade. Mas os outros 12 pontos, que não fazem nenhuma menção ao Islã, não despertam interesse.
Por outro lado, Bruno Guigue observa: “Sobre um ponto tão essencial como o estatuto islâmico da Palestina, é surpreendente que o documento eleitoral faça alusão à tradição do Corão sem insistir nele”. Aliás, ele julga significativa a referência, no mesmo documento às resoluções da ONU sobre a ilegalidade da ocupação. Isto significa sem dúvida, escreve Guigue, que o Hamas está prestes a reconhecer oficialmente o Estado de Israel, “outra parte das resoluções da ONU”. Invocar explicitamente a legalidade internacional “leva a aceitar todas as conseqüências, mais cedo ou mais tarde”.
Nas entrelinhas, a admissão de dois Estados
Já o preâmbulo do “Programa de Governo da Unidade Nacional” reitera a necessidade de “preservar os imperativos nacionais não negociáveis”: fim da ocupação, direito ao retorno, direito à resistência “sob todas as formas”, “edificação de um Estado palestino independente e totalmente soberano, com Jerusalém como capital”, “rejeição de soluções parciais”. Porém, essas prioridades são defendidas pelo conjunto das organizações palestinas, entre as quais as que a “comunidade internacional” julga “freqüentáveis”. Além disso, numerosos artigos do programa refletem os esforços do Hamas para considerar as exigências da dita comunidade, mesmo se eles não respondem a todos seus desejos.
Na verdade, é este programa “no seu conjunto”, analisa Hroub, que “gira em torno da solução dos dois Estados” e “faz referência aos territórios ocupados em 1967 (…) sem nenhuma alusão à ’liberação do conjunto da Palestina’ ou à ’destruição de Israel’ que se encontra na carta”.
Finalmente, a plataforma governamental de 27 de março não demonstra, assinala este mesmo pesquisador, nenhum recuo em relação aos artigos esboçados no Programa de Unidade Nacional. Ressalte-se que esse programa, depois de rejeitado pelas outras organizações do projeto de coalizão, só comprometia o Hamas e as concessões não eram, portanto, obrigatórias…
O silêncio — pode-se até dizer a ocultação — à qual esses textos do Hamas foram submetidos deveria provocar algumas questões sobre o comportamento da “comunidade internacional” e da União Européia. A decisão de asfixiar economicamente os palestinos em troca da renuncia unilateral à violência e do reconhecimento oficial de Israel (sem que nenhum gesto fosse exigido desse Estado) não se explica apenas por uma “fixação” sobre o islamismo do Hamas, mas esta fixação sem dúvida facilitou e ajudou a “vendê-la” à opinião pública.
As “pequenas frases”, inaceitáveis, destiladas, no final de outubro de 2005, pelo presidente iraniano Mahmoud Ahmadinejad a propósito de Israel e do Holocausto, foram absolutamente rejeitadas [4] nos Estados Unidos e na Europa. Esta rejeição impediu que se pergunte sobre o sucesso relativo que tais propósitos encontraram na região e em outros locais. Para uma parte da opinião árabe e muçulmana, o que Ahmadinejad deixou claro com essas frases escandalosas é que o reconhecimento da realidade do Holocausto — ou sua negação — é menos importante para eles do que a legitimação, pelo Ocidente, em nome do genocídio, do destino que o ” projeto sionista” obriga os árabes da Palestina aceitarem, sessenta anos depois do Shoah,
Legitimar Israel sem reconhecer a Palestina?
Há alguns anos, o historiador israelense Dan Diner distinguia três níveis de legitimidade do Estado de Israel, aos quais ele atribuía graus desiguais de “universalidade” [5]. Julgava “unilateral” — porque só era válida para os judeus — a legitimidade que ele qualificava, curiosamente [6], de sionista, posto que “nascida da promessa divina feita aos hebreus”. Admitia também que a “legitimidade judia”, “extraída dos horrores do Holocausto”, era só “parcialmente universal”. E finalmente, considerava como inteiramente “universal” a “legitimidade israelense” que, segundo ele, decorre do “direito irrevogável de Israel existir pela simples razão de que existe”.
Pode-se efetivamente admitir esta “legitimidade israelense” e considerar, com Maxime Rodinson, que “os direitos tirados da valorização de um território, do trabalho realizado, dos sacrifícios pessoais são os únicos que podem ser evocados de maneira válida” [7]. Mas podemos então nos perguntar: por que este tipo de direito não valeria também para os palestinos?
A legitimidade de Israel só pode ser um dia reconhecida, principalmente no mundo árabe e muçulmano, em ligação indissociável com uma “legitimidade universal” palestina. São duas legitimidades que a Assembléia Geral das Nações Unidas consagrou na sua resolução 181 de 29 de novembro de 1947 sobre a divisão da Palestina, então sob mandato britânico.
Não seria oportuno recordar esta legitimidade “típica da ONU” atribuída ao “Estado judeu”? Ao ordenar ao Hamas que reconheça Israel sem condições, “a comunidade internacional” não parece amnésica? Porque não se trata mais, nas Nações Unidas, dos 44% do território da Palestina “ofertado” [8] ao Estado árabe da Palestina em virtude da resolução 181. Nem da resolução 194, sobre o direito de retorno, ou a uma compensação, dos refugiados palestinos.
A “comunidade internacional” aproveitará a brecha?
Fechando-se neste “esquecimento”, fazendo do reconhecimento de Israel um imperativo absoluto, a União Européia não estará renunciando a um discurso e proposições políticas capazes de sugerir aos palestinos, árabes e muçulmanos que o “Ocidente” abandona, enfim, uma atitude de “dois pesos e duas medidas”?
A piada da jornalista israelense Amira Hass é conhecida: no Hamas, os extremistas pensam que Alá entregará toda a Palestina ao mundo árabe e ao islã daqui a 50 anos, enquanto os moderados têm a tendência a falar em 5 séculos… Desde 1995, Ahmed Yassin [9] propôs a Israel “uma trégua de longa duração” em troca de um Estado palestino na Cisjordânia e em Gaza. Precisou, em 2004, deixaria “o resto das terras ocupadas à História”. Mais tarde, a oferta foi reiterada pelos principais dirigentes do movimento. Tais declarações devem ser levadas em conta. Elas parecem confirmar a análise de Bruno Guigue, para quem o Hamas chegou a uma “aceitação tácita de uma divisão da Palestina histórica baseada nas fronteiras anteriores à guerra de 1967”. ara que o Fatah de Yasser Arafat oficializasse esta “aceitação tácita” foram necessários 20 anos.
A União Européia tem responsabilidade no naufrágio das negociações que ocorreram depois dessa grande concessão. A intransigência mantida por Israel e as tensões regionais exarcebadas colocam a “comunidade internacional” diante de um desafio cada vez maior. Mas ela parece não permitir a si mesma encontrar uma saída que leve em conta o reconhecimento de fato de Israel pelo Hamas. A “comunidade interna