Por que o plebiscito deu no que deu?
Chávez e seus partidários serão obrigados a analisar as causas profundas da derrota. Talvez reflitam sobre o açodamento da reforma constitucional, a exagerada personalização do processo ou a falta de eficácia dos programas governamentais. Enfrentar tais questões trará um novo vigor ao “socialismo do século 21”
Desde sua reeleição, em dezembro de 2006, o presidente venezuelano Hugo Chávez declarava que uma reformulação da Constituição era necessária para a transição rumo ao socialismo do século 21 – seu grande projeto. Finalmente anunciada em 15 de agosto de 2007, após longas deliberações a portas fechadas e múltiplos adiamentos, essa proposta de reforma, que incidia originalmente sobre 33 artigos, mergulhou o conjunto da sociedade venezuelana, à exceção dos meios ferozmente chavistas, na dúvida e na confusão. O ceticismo se acentuou ainda mais quando a Assembléia Nacional, convocada a modificar e aprovar as propostas do presidente, exagerou na dose ao acrescentar 36 modificações suplementares.
No final, as emendas contempladas incidiam sobre 69 dos 350 artigos da Constituição e cobriam quatro temas principais: a consolidação da democracia participativa; a integração social; o apoio às formas “não-neoliberais” de desenvolvimento econômico; o fortalecimento dos poderes do governo central.
Os dispositivos que tratavam da democracia participativa e da eqüidade social não encontraram verdadeira resistência na opinião pública. Entre essas medidas, estavam: a extensão dos poderes dos Conselhos Comunais recém-formados [1]; a diminuição da idade para o exercício do direito de voto dos dezoito para os dezesseis anos; a proibição de qualquer discriminação baseada na orientação sexual ou nas condições de saúde; a instituição da paridade nas remunerações das funções públicas; a criação de um fundo de seguridade social para os trabalhadores independentes e o setor informal da economia; a gratuidade do ensino superior; e o “reconhecimento” dos venezuelanos de origem africana.
Foram as reformas da economia e dos poderes presidenciais que levantaram controvérsia, tanto por seu conteúdo real quanto por aquele que a oposição lhe atribuiu. Estavam previstas, principalmente, a supressão da autonomia do Banco Central, a proibição de privatizar a indústria petrolífera e a intensificação da reforma agrária. Além disso, alguns dispositivos fixavam novos direitos sociais, reduziam o tempo de trabalho de 44 para 36 horas semanais e favoreciam o acesso à propriedade coletiva.
No que diz respeito ao fortalecimento do poder central, a reforma propunha o prolongamento do mandato presidencial de seis para sete anos e retrocedia na possibilidade de uma única reeleição. A nova Constituição também teria tornado mais difícil a realização de referendos de iniciativa cidadã, ao aumentar o número de assinaturas exigidas, e teria dado ao presidente o poder de criar zonas especiais de desenvolvimento econômico ou ainda de proceder a uma nova divisão do mapa eleitoral no nível dos municípios. Também teria autorizado este último a promover, ele mesmo, os oficiais e a endurecer o estado de emergência, suspendendo o direito à informação.
Após onze consultas nacionais vitoriosas desde a primeira eleição de Chávez em 1998 [2], a derrota inesperada do referendo de 2 de dezembro de 2007 sobre esse projeto de reforma constitucional (por uma escassa diferença de 1,3% dos votos) constituiu, para o presidente, um sério revés.
A partir de 3 de dezembro, o chefe de Estado e seus aliados começaram a tirar lições da derrota. Parece claro que os eleitores que tinham se pronunciado pró-Chávez em 2006 não se desviaram dele em 2007, ainda que se tenha constatado uma taxa de abstenção maior nas fileiras de seus partidários do que no campo adversário [3]. Mas votar “a favor de Chávez, contra a direita” é uma coisa, mobilizar-se para uma mudança da Constituição, sentida como supérflua, é outra.
A maneira como a reforma foi elaborada, as insuficiências da campanha, em particular do novíssimo Partido Socialista Unificado da Venezuela (PSUV) e o clima geral estão entre as razões invocadas para explicar o resultado desse escrutínio. Num primeiro momento, o projeto de fato foi concebido em círculo fechado pelo presidente e seus conselheiros mais próximos. Foi somente mais tarde, quando o texto era debatido na Assembléia Nacional, que os deputados mantiveram reuniões públicas a fim de recolher opiniões externas. Essas consultas, feitas de modo precipitado num período de dois meses e meio, só permitiram uma abordagem superficial de alguns dos temas.
A campanha pelo “sim” só começou oficialmente em 2 de novembro, ou seja, um mês antes do referendo e, aí novamente, parece que faltou tempo para informar o público dos muitos aspectos de uma reforma tão ampla quanto complexa. É o caso da introdução de cinco tipos de propriedade diferentes: pública (Estado), social (povo), coletiva (grupos sociais), privada (indivíduos) e mista (pertencente aos setores público, social, coletivo e privado). Ou da geometria pouco clara do poder, redistribuído entre “poder popular”, “poder municipal”, “poder dos Estados” e “poder nacional”, de novas unidade políticas territoriais que substituem as antigas, mas sem eliminá-las. Um verdadeiro labirinto.
Enquanto isso, a oposição conduzia uma campanha virulenta, não hesitando em deturpar vários aspectos do projeto. Ela anunciou, por exemplo, que a reforma poria em xeque o direito à propriedade privada e fez acreditar numa ameaça geral de expropriação. Na realidade, a propriedade privada ordinária em nada era afetada: as emendas só visavam consolidar os poderes do Estado em matéria de expropriação de produtores de mercadorias comestíveis durante as penúrias alimentares e permitir a redistribuição das terras dos latifúndios no contexto da reforma agrária.
Alguns panfletos e discursos do campo do “não” chegaram mesmo a sacudir os espantalhos mais surrados: o Estado raptaria as crianças, separando-as de seus pais, o socialismo logo se tornaria a única orientação política permitida. O método se revelou de uma temível eficácia.
Assim que as teses da oposição começaram a se difundir pela população, os números das pesquisas, que anunciavam previamente 60% de opiniões favoráveis, começaram a cair rapidamente. Chávez então concentrou sua campanha, tentando transformar o referendo em plebiscito sobre sua presidência. Como a reforma se revelava demasiado complexa para ser explicada em detalhe, pareceu-lhe lógico usar sua própria popularidade, e seu slogan foi a partir daí “votar sim é votar em mim”.
Chávez parece ter subestimado fundamentalmente o ceticismo da opinião pública. A dúvida se reforçou quando, por razões diversas – sendo de longe a mais importante delas a reticência com a expressão “socialismo” -, aliados da primeira hora, como o ex-ministro da defesa Raúl Baduel ou Marisabel Rodríguez, ex-mulher do presidente, assim como o partido social-democrata “Podemos”, se pronunciaram contra a reforma.
Parece, sobretudo, que a administração Chávez já é avaliada como ineficaz por um setor de seus partidários e que estes viram nesse escrutínio a chance de mandar um recado ao presidente. Como sublinha o relatório publicado pelo grupo de defesa dos direitos humanos Provea, o balanço social do governo – o que se chamou de “missões” – se deteriorou muito em 2006, e isso em todos os domínios analisados: saúde pública, alfabetização, ensino secundário, habitação, ajuda alimentar, redistribuição de terras, emprego, criação de cooperativas etc.
Se as classes mais pobres tinham aplaudido em outros tempos o espetacular aumento dos créditos alocados aos programas sociais durante os últimos quatro anos [4], elas estão hoje decepcionadas e frustradas. Seu desapontamento se deve principalmente à maneira ineficiente como esses programas são geridos pela burocracia e pela corrupção dos círculos de poder, em todos os níveis. Organizada (pela oposição) ou não, a recente escassez de leite não ajudou. Na maior parte dos meses de outubro e novembro, foi de fato praticamente impossível encontrar leite fresco, dificílimo achar leite em pó e muitos outros produtos.
Refletir sobre todas as supostas razões da abstenção no campo chavista poderia ser uma maneira de subentender que em outras circunstâncias os eleitores teriam se mobilizado. Mas a reforma da Constituição era necessária? A seguridade social para os trabalhadores independentes, a redução da jornada de trabalho, o aumento dos orçamentos dos Conselhos Comunais, a paridade na política, a gratuidade do ensino superior: todas essas medidas podiam ser adotadas pela via legislativa normal. Os pontos que realmente exigiam uma reforma constitucional tinham a ver com o fortalecimento dos poderes presidenciais, o fim da limitação dos mandatos, a reestruturação dos municípios, as restrições aplicadas aos referendos cidadãos, as promoções no âmbito do exército e o estado de emergência.
Em outros termos, se é fácil pensar, à primeira vista, que alguns partidários de Chávez acreditaram nos argumentos falaciosos da oposição, numerosos são aqueles que simplesmente não compartilhavam o ponto de vista do presidente. Para eles, não é necessário aumentar os poderes do chefe de Estado para fortalecer o processo revolucionário e melhor assegurar a transição rumo ao socialismo.
Para os partidários do líder bolivariano, o fracasso do projeto constitucional marca uma freada na transição rumo ao socialismo do século 21. Entretanto, alguns acham que isso foi uma sorte. Se a reforma tivesse sido aprovada por fraca maioria, é quase certo que a oposição não teria aceitado o veredicto e teria mais uma vez tentado desestabilizar o país recorrendo a manifestações violentas ou denunciando pseudofraudes. Já hoje, sem nenhuma prova, o campo do “não” afirma que sua vitória teria sido bem mais ampla do que a anunciada pelos resultados oficiais. Não é descabido imaginar que uma séria campanha de desestabilização no dia seguinte a uma tímida vitória do “sim” teria sido provavelmente mais prejudicial para o governo de Chávez do que sua breve derrota.
Além disso, o fracasso da reforma constitucional fez surgir o mais profundo processo de autocrítica e de análise que o movimento bolivariano já conheceu desde 1998. Durante longos anos, as críticas não chegaram aos ouvidos do presidente. A razão dessa carência reside no vínculo muito estreito que existe entre o movimento bolivariano e seu líder. O movimento depende de Chávez tanto quanto Chávez depende de seu movimento. Essa dependência tornou quase impossível o questionamento das decisões presidenciais sob a alegação de que isso poria em risco a unidade do movimento; ora, essa unidade era absolutamente necessária para enfrentar uma oposição (sustentada financeiramente pelos Estados Unidos) que vem tentando incessantemente derrubar o regime.
Pela primeira vez, desde 1998, Chávez e os seus são obrigados a analisar as causas profundas de sua derrota. Talvez reflitam sobre a rapidez e a amplitude do processo de reforma constitucional, sobre os obstáculos de uma exagerada personalização ou ainda sobre a falta de eficácia dos programas governamentais existentes. Enfrentar tais questões decerto traria um novo vigor ao “socialismo do século 21”.
*Gregory Wilpert é sociólogo, chefe de redação do site venezuelanalysis.com. Autor de Changing Venezuela by taking power: the policies of the Chávez government.