Por trás da imagem das combatentes curdas no Iraque
Distante da imagem midiatizada – e positiva – das combatentes, a condição feminina no Curdistão iraquiano permanece controversa. Ainda que notáveis progressos tenham acontecido em termos de emancipação, inclusive no plano legislativo, a opressão misógina e males como os crimes de honra perduramNada Maucourant
Ela se tornou um dos símbolos da encarniçada luta curda contra a Organização do Estado Islâmico (OEI). Helly Luv, cujo verdadeiro nome é Helan Abdulla, usa inúmeras canções pop para exaltar o sentimento patriótico. Com sucesso internacional. Lançado em 2014, o clipe “Risk It All” tem quase 4 milhões de visualizações no YouTube. Ele combina toques de dança tradicional com um ritmo que poderia ser de Beyoncé ou Britney Spears, e a letra ordena, em inglês, a “arriscar tudo” pelo Curdistão. De vestido curto ou uniforme de combate, a jovem cantora aparece rodeada de guerreiras de olhos maquiados, keffiyeh vermelhos na cabeça e brandindo fuzis Kalashnikov nas mãos de unhas pintadas. Esse clipe, como outras canções de Helly Luv, ilustra o carisma das guerreiras do Curdistão. Sem dúvida, sua difusão ajuda a reforçar o interesse recorrente e entusiasmado pelas combatentes curdas.
Qualquer que seja sua localização geográfica, as autoridades curdas não esperaram a luta contra a OEI para nomear mulheres a postos-chave, sejam eles militares ou políticos. Já em 1909, Adila Khanim foi a sucessora de seu marido como governadora de Halabja e chefe da tribo Jaf, uma das maiores do Curdistão. Ela ficou famosa por conseguir restabelecer a ordem e a lei na região. Hoje, duas coronelas, Nahida Ahmed Rachid e Aila Hama Amin Ahmed, fazem dessa figura histórica uma das inspirações do Batalhão 106, uma força exclusivamente feminina criada em 1996 em Sulaymaniyah, cidade iraquiana sob controle do Governo Regional do Curdistão (KRG).1
Para explicar seu engajamento nessa unidade desde sua criação, Nahida e Aila não hesitam em invocar “a imperiosa necessidade de pegar em armas para defender a nação ameaçada” e a impossibilidade de continuar em casa enquanto seus compatriotas são mortos. As duas oficiais não escondem as dificuldades, sobretudo para vencer a relutância da sociedade curda do Iraque: “Tivemos de superar muitas dificuldades. Foi uma luta. Essa liberdade [de tornar-se militar] não é um favor que os homens se dignaram em nos conceder; nós lutamos para conquistá-la”, afirma Aila, que diz ter permanecido solteira para poder dedicar sua vida à luta. “Uma soldada não imita um pretenso modelo masculino; ela está no seu direito de pegar em armas”, insiste por sua vez Nahida.
A admiração por essas combatentes não deve nos levar a negligenciar a estratégia de comunicação cuidadosamente elaborada pelas autoridades curdas iraquianas para a mídia ocidental. Essa presença feminina ajuda a ganhar a simpatia e atrair ajuda externa para a luta contra a OEI. As combatentes, aliás, relutam em abordar a questão da opressão das mulheres na sociedade curda iraquiana. Nossas interlocutoras refutam a hipótese do Exército como meio de emancipação em uma sociedade patriarcal: de acordo com elas, suas concidadãs seriam absolutamente livres e não sentiriam essa necessidade de se engajar militarmente para igualar-se aos homens.
Na realidade, porém, essas amazonas livres e orgulhosas de seu país são pouco representativas. O fenômeno ainda é marginal: o batalhão feminino tem apenas de quinhentas a seiscentas integrantes, às quais se somam algumas dezenas de soldadas de outras unidades – em um Exército de 190 mil pessoas.
A publicidade em torno das combatentes mascara uma realidade muito mais contrastante da condição feminina no Curdistão iraquiano. Diretora da ONG Asuda – que, com sede em Sulaymaniyah, trabalha desde 2000 na defesa dos direitos das mulheres –, Khanim Latif fala dos muitos males que afligem a sociedade. Em primeiro lugar, os “crimes de honra”, que continuam muito comuns. Aso Kamal, militante pelos direitos humanos, estima que entre 1991 e 2007 mais de 12 mil mulheres foram mortas no território do KRG em nome da honra da família, a qual as sociedades patriarcais ligam estreitamente ao corpo feminino, sua decência e pureza.2 A persistência da autoimolação pelo fogo, frequentemente um sinal de extrema angústia diante da pressão familiar, também inquieta a ONG. Entre os verdadeiros acidentes domésticos e as tentativas de suicídio dissimuladas, é difícil chegar a números confiáveis. Mas os dados da Asuda mostram dezenove casos em Sulaymaniyah em 2014.
Outro flagelo que as jovens curdas enfrentam: o casamento precoce. Essa é uma prática muito difundida, e em crescimento, sobretudo nas aldeias mais pobres e entre as populações deslocadas, para as quais o casamento de uma criança representa uma vantagem econômica. A falta de acesso à educação é um fator determinante: “Em algumas aldeias, não há escola para o último ciclo do ensino fundamental. As meninas não têm nada a fazer além de ficar em casa esperando o casamento”, explica Khanim Latif. Ela também menciona a mutilação genital feminina: segundo um relatório da ONG Wadi, a prática atinge 57% das meninas com idade entre 14 e 18 anos.
O KRG, no entanto, tem empreendido grandes esforços legislativos, que o distinguem do resto do Iraque. Em 2011, o Parlamento curdo aprovou a “Lei 8”, sobre violência doméstica, que reconhece como crime de violência física e psicológica familiar o casamento forçado ou precoce, a mutilação genital feminina, o estupro conjugal e a discriminação na educação. O texto prevê a criação de um tribunal especial para casos de violência doméstica, bem como a melhoria no acompanhamento das vítimas.3 Mas Khanim Latif acusa-a de ser apenas simbólica: “Aprovar uma lei sem criar meios concretos para aplicá-la é um absurdo. É preciso mudar todo o sistema”. Alguns dispositivos demoram a ser colocados em prática, e as ONGs queixam-se da falta de fundos. Modificar de maneira durável as mentalidades é algo que requer uma luta de longo fôlego, com muitas campanhas de sensibilização voltadas para líderes religiosos e tribais, médicos, policiais, famílias.
Além disso, nem as próprias autoridades garantem a transparência e a independência da justiça. Vários relatórios e depoimentos mostram que muitos autores de violência recebem sanções muito leves, ou sanção nenhuma, caso o ato seja “legitimado” pelo comportamento da vítima. Há juízes que propõem aos estupradores casar com suas vítimas, para que elas recuperem sua honra.4 Por fim, as tribos continuam muito influentes. Elas frequentemente interferem para proteger seus membros, por exemplo, oferecendo uma compensação financeira às vítimas e suas famílias em troca de silêncio.
No entanto, as zonas urbanas registram progressos. Em 2008, houve 2,5 vezes mais mulheres queimadas em nome da honra na periferia de Sulaymaniyah do que entre seus muros.5 Além disso, a violência diminuiu um pouco: a mutilação genital feminina é cada vez menos praticada.6
A organização Zhiyan tem muitas iniciativas para mudar as mentalidades. Com o apoio de uma rede de três dezenas de ONGs de mulheres e militantes, ela faz pressão constante sobre o governo. A coordenação mobilizou-se particularmente em torno do caso Duniya, uma menina de 14 anos casada duas vezes, torturada e morta por seu marido polígamo.7 O assassino, protegido por sua tribo, defendeu seu ato em um vídeo postado no YouTube, no qual fala de sua honra ferida: a menina estaria apaixonada por um menino de sua idade. Zhiyan e outras organizações feministas organizaram manifestações e um protesto diante do Parlamento. Elas exigiram a estrita aplicação da lei, sem intervenção tribal, e o julgamento de todas as partes envolvidas no casamento da criança, incluindo sua família e o dignitário religioso. Esse caso – cujos procedimentos judiciais ainda estão em curso – ilustra o fracasso do dispositivo legal estabelecido no território do KRG. Mas também revela uma sociedade forte e determinada a lutar por seus direitos.
Essa perseverança às vezes compensa. Em 2000, a Asuda inaugurou a primeira casa de proteção para mulheres ameaçadas de crime de honra; hoje ela existe nas três províncias do Curdistão iraquiano. Em 2007, o KRG criou uma divisão no Ministério do Interior para coletar dados e gerar estatísticas, garantindo a visibilidade dos casos de violência. O Alto Conselho das Mulheres foi criado dois anos depois. Composto por militantes dos direitos das mulheres e presidido pelo primeiro-ministro, ele trabalha em estreita colaboração com as ONGs e instituições governamentais. Hoje, há uma cota de 30% dos assentos no Parlamento curdo reservada para mulheres. “A situação no Curdistão iraquiano é muito melhor do que no resto do país; mas não é o que queremos. Não é suficiente”, conclui Khanim Latif.
Rezhin,8 de 22 anos, formada na Universidade de Sulaymaniyah, encarna esse desejo de independência e autonomia: “Não quero ter uma casa, filhos e um marido para quem cozinhar. É como se houvesse duas vidas: uma antes e outra depois do casamento, com todos os deveres que vêm com ele. É isso o amor, submeter-se a todos os desejos de alguém que não faz nada por você em troca?”. Rezhin revolta-se contra a sociedade patriarcal, principalmente contra as mulheres que aceitam participar de sua manutenção. Embora nunca tenha tido problemas com a família, ela sabe que nem todo mundo compartilha de seu ponto de vista e prefere permanecer discreta. “Alguns amigos próximos já me informaram sua desaprovação, mas eu os desafio. Quero viajar, ser bem educada, ser ainda mais forte e livre. Mas quero voltar para o Curdistão, para mostrar que posso viver no meu país com minha mentalidade.” Sobre Helly Luv, Rezhin é cética: “Ela foi criada no Ocidente; as coisas foram mais fáceis para ela. Ela não precisou lutar”. Por princípio, ela recusa-se a sentar na área reservada para mulheres e famílias nos restaurantes. E ofende-se com o fato de que, em língua curda, uma expressão de agradecimento dirige-se apenas aos membros masculinos da família. Sob muitos pontos de vista, o Curdistão abriga outras combatentes insuspeitas.
*Nada Maucourant é doutoranda na Escola de Estudos Orientais e Africanos em Londres.