Por um futuro que não repita o passado
Em todas as regiões brasileiras, famílias residentes em favelas e cortiços, onde, não coincidentemente, cerca de 70% delas é negra (TETO, 2017), têm o agravante de concentrarem muitas das 3 milhões de famílias em situação de coabitação (quando mais de uma família divide a mesma casa) e das quase 320 mil famílias que vivem com mais de 3 moradores dormindo no mesmo cômodo.
O mundo mudou. A pandemia do novo coronavírus (Covid-19) parece ser aquele momento de inflexão, de marco, no curso da história da humanidade. Havia um mundo pré coronavírus e, agora, abre-se uma janela de incertezas e oportunidades sobre como será este novo futuro. Tudo está instável e qualquer previsão a mais longo prazo será pontual, incompleta e requerirá atualizações e complementações constantes. Mas para tatearmos este novo futuro é preciso entender o passado que ainda se faz presente.
Até bem pouco tempo atrás, a grosso modo, havia dois mundos que se retroalimentam: um era globalizado, conectado por aeroportos, ferrovias, estradas, cabos de fibra ótica e de telefonia. Nele, mercadorias de toda sorte e pessoas com renda circulavam com uma liberdade nunca vista até então. Mas este mundo “livre” não era para todas as pessoas. Ele era reduzido e sustentado pela exploração e acumulação desigual da força de trabalho, sobretudo de pessoas que, muitas vezes, não só não tinham acesso à mesma renda e liberdade, como também à itens básicos como água encanada, banheiro no próprio domicílio e energia elétrica.
Para termos uma ideia do nível de desigualdade: o 1% mais rico do mundo concentrava mais do que o dobro de riqueza de 6,9 bilhões de pessoas juntas, o que equivale a cerca de 85% da população mundial (OXFAM, 2019); 1,2 bilhões de pessoas encontrava-se em situação de déficit habitacional (WRI, 2017); um terço (2,1 bilhão de pessoas) não tinha acesso a água e sessenta por cento (4,3 bilhões) a saneamento básico (UNESCO, 2019).
E é justamente na dependência deste tripé moradia (para isolamento social), água e saneamento (para higienização) que se estruturam as principais recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) para contenção do coronavírus no mundo. O resultado dessas recomendações tem colocado muitas cidades – e muitos países – em quarentena, fechando comércios, serviços, aeroportos e restringindo a circulação de pessoas nos parques e ruas.
Efeitos da pandemia
Nesse sentido, a sociedade já mudou, E diversos especialistas vêm apontando que a centralidade dos efeitos da pandemia não está só na agenda da saúde, mas também na economia e na organização social. Afinal, o que acontece quando, para evitar um colapso no sistema de saúde, parte significativa da força de trabalho é recomendada a ficar em casa? Em um cenário de austeridade dos gastos do Estado e corte de benefícios sociais, quem conseguirá manter as contas da moradia, da alimentação e dos serviços básicos sem a renda vinda do trabalho?
Em reportagem para o Jornal Independent, o economista Omar Hassan afirma que “tão importante quanto combater o vírus – senão até mais importante – é vacinar as nossas economias contra a vindoura pandemia de pânico. O sofrimento humano pode vir na forma de doença e morte. Mas também pode ser experimentado como o fato de não ser capaz de pagar as contas ou de perder a própria casa”. Mas, e quem já não tem casa, como fará?
Deste modo, combater os efeitos da pandemia pressupõe também enfrentar os desafios econômicos, sociais e territoriais, sobre os quais construímos nossas sociedades. Se o Brasil, um dos países mais desiguais do mundo (PNUD, 2019), quiser sair desta crise melhor que entrou, deverá combater efetivamente as desigualdades históricas promovidas pelo capitalismo que, aqui, operam fortemente a partir dos marcadores de raça, gênero e classe. E esta mudança passará, dentre outras frentes, por ações mais estratégicas do Estado para distribuir renda, infraestrutura e utensílios básicos, além de desonerar famílias de baixa renda das contas com moradia, água e luz.
No Brasil, mais austeridade
Mas não tem sido este o posicionamento dos nossos governantes. No início da pandemia, a principal resposta dos agentes federativos brasileiros teve duas chaves. A primeira foi a de continuar com a agenda de austeridade econômica – diminuindo a capacidade de ação do Estado. A segunda foi alinhar-se às recomendações de isolamento da OMS bem timidamente, desconfiando da gravidade da COVID 19. Tanto que, no dia 15 de março, a liderança do executivo federal compareceu a uma mobilização que ocorreu em Brasília apertando a mão, abraçando e tirando selfies com os manifestantes.
Evidentemente, a realidade nos mostra que tais medidas não foram suficientemente adequadas à realidade brasileira. Primeiro porque a COVID 19 chegou ao Brasil no início de março e está em franco crescimento duplicando os casos registrados a cada 2 ou 3 dias. Segundo porque, até o momento, não houve propostas de prevenção suficientemente alinhadas às realidades do nosso país onde há um déficit habitacional de mais de 7 milhões de moradias, onde existem cerca de 4 milhões de famílias que moram em domicílios sem banheiro, 35 milhões vivendo sem acesso a água tratada e 100 milhões sem rede esgoto (SNIS,2018).
Este cenário é mais crítico no norte do país, onde cerca de 80% dos domicílios não estão conectados à rede geral de esgoto e no nordeste onde quase 30% dos domicílios não têm acesso diário à rede de água. São elas também que abrigam a maior porcentagem de pessoas negras no país (cerca de 79% da população da região norte e 64,5% da região nordeste é negra, o que inclui as categorias pretos e pardos do IBGE).
Pelas favelas e periferias do Brasil
Em todas as regiões brasileiras, famílias residentes em favelas e cortiços, onde, não coincidentemente, cerca de 70% delas é negra (TETO, 2017), também têm menos acesso a estas infraestruturas e têm o agravante de concentrarem muitas das 3 milhões de famílias em situação de coabitação (quando mais de uma família divide a mesma casa) e das quase 320 mil famílias que vivem com mais de 3 moradores dormindo no mesmo cômodo (FGV, 2015).
Em uma reportagem da BBC, Gilson Rodrigues, uma das lideranças da favela de Paraisópolis, em São Paulo, alerta: “Como é que você vai isolar uma pessoa que mora em uma casa com um cômodo ou dois e tem dez pessoas na família? (…). Vai ficar em isolamento onde? Em que condições?” Esta não é uma preocupação só de Paraisópolis, lideranças de favelas do Rio de Janeiro, como Raul Santiago, e de outras favelas e comunidades do país têm apontado também que, mesmo aqueles domicílios que estão conectados à rede de água, o serviço é intermitente e está acessível apenas algumas vezes na semana.
Para além da situação das favelas e comunidades, também é emergencial que o Poder Público apresente alternativas concretas para pessoas em situação de rua. Só na cidade de São Paulo, há 24 mil pessoas nesta situação das quais 3 mil mais suscetíveis à complicações, por terem mais de 60 anos e estarem no grupo de risco da Covid-19. Além disso, há também grande incidência de outros complicadores como pessoas soropositivas, com tuberculose e outras comorbidades. Se não for oferecido abrigo com distanciamento adequado entre as camas, com banheiro, bebedouro, torneira, papel higiênico, papel toalha e os demais itens recomendados pela OMS, como estas pessoas poderão se proteger e evitar a disseminação da pandemia e suas mortes?
Ações emergenciais
Atentas a estas preocupações, diversas lideranças, entidades, coletivos e instituições da sociedade civil têm se mobilizado para pressionar para que o poder público implemente não só medidas concretas e emergenciais, mas também aquelas mais estruturantes para a construção de uma sociedade mais justa e socioambientalmente responsável.
A carta redigida pelo Fórum Mundaréu da Luz, por exemplo, da qual o Instituto Pólis é uma das instituições signatárias, exige ações emergenciais como as supracitadas e ainda defendem outras medidas como a utilização de edifícios públicos vazios para abrigar idosos e pessoas em situação de rua, suspensão dos despejos forçados, disponibilização e distribuição de sabonetes e álcool gel às famílias vulneráveis etc.
Já a Defensoria Pública da União recomenda que equipamentos públicos educacionais e esportivos que estejam fechados e disponham de banheiros e vestiários, sejam utilizados para acomodar a população em situação de rua.
No entanto, algumas medidas mais concretas vem da própria comunidade. Nas favelas, famílias com maior frequência no abastecimento de água têm compartilhado suas torneiras com a vizinhança. Diversas entidades e lideranças locais têm feito postagens nas redes sociais com dados e recomendações mais alinhadas usando as hashtags #coronanasperiferias e #covid19nafavela. São ações pontuais que precisam do apoio e do capital do Estado para alcançar a escala necessária para enfrentar os desafios.
No entanto, até o momento, as instâncias de governo têm avançado pouco. Um destes avanços vem de alguns juízes de São Paulo que decidiram suspender ações de despejo e de reintegração de posse. Ao fazê-lo, o judiciário previne que mais pessoas fiquem em situação de rua e, possivelmente, ajudam a diminuir a cadeia de contágio não só das famílias que seriam despejadas, mas da população como um todo. Para que esta se torne uma medida geral, o Ministério Público Federal solicitou ao Conselho Nacional de Justiça que recomendasse a suspensão imediata de todos os mandados de reintegração de posse no país, mas até então nada foi feito nesta direção.
Houve também o anúncio de mais 400 vagas em abrigos para população em situação de rua na cidade de São Paulo e a decisão de utilizar dois grandes equipamentos públicos de domínio da prefeitura – o Anhembi e o Pacaembu – como hospitais de campanha. Entretanto, é fundamental lembrar que outros 11 distritos da mesma cidade não dispõe de nenhum leito hospitalar (Mapa da Desigualdade, 2019) e que, até o momento, não há previsão concreta de distribuir mais igualitariamente os leitos na cidade.
A ausência de equipamentos de saúde próximos é uma realidade de muitas pessoas no Brasil. Sessenta por cento dos municípios não têm aparelhos respiradores (item fundamental no tratamento do coronavírus) em seus equipamentos de saúde; cerca de 30 milhões de pessoas distam 100km de um leito hospitalar e 14 milhões estão a mais de 120 km de leitos em Unidade de Terapia Intensiva (UTI). A população negra e indígena são as mais afetadas por esta má distribuição. Assim, não basta apenas criar novos leitos e equipamentos, é preciso também distribuí-los de forma mais igualitária pelo território encurtando as distâncias.
Agenda de austeridade em pauta
Do ponto de vista econômico, a agenda de austeridade do governo brasileiro parece continuar em pauta, mas está sofrendo maior pressão para que haja mudanças no seu escopo.
Haja visto que metade da população brasileira vive mensalmente com R$ 413 por pessoa (PNAD, 2018); que o rendimento médio mensal das pessoas brancas foi 73,9% superior ao das pessoas negras; que a taxa de informalidade das pessoas ocupadas é da ordem de 40%; que a flexibilização das leis trabalhistas reduziram direitos, e que houve cortes nos benefícios sociais, muitas pessoas se veem obrigadas a contrariar as recomendações e ir para as ruas trabalhar para conseguir alguma renda. Como muitas delas moram distantes dos locais de trabalho, deslocam-se fazendo baldeações e gastando mais de 2 horas no transporte público, justamente um dos locais de maior possibilidade de contágio, expondo a si mesma e a seus familiares em risco.
Embora a COVID 19 tenha chegado ao Brasil por meio daquelas pessoas que estavam viajando no exterior, e portanto com mais recursos, tudo indica que é a população mais vulnerável que, como sempre, sofrerá as principais consequências. Como nos alerta Djamila Ribeiro, na excelente coluna sobre uma das primeiras vítimas fatais do coronavírus no Brasil – uma idosa de 63 anos que que trabalhava como empregada doméstica e que foi infectada pela patroa contaminada em viagem à Itália – não serão apenas os efeitos do vírus no corpo, mas também as consequências econômicas e institucionais que afetarão sobretudo as pessoas mais vulneráveis.
A situação imposta ao mundo pela Covid-19 é tão grave que mesmo governos com agendas mais à direita ou de centro direita, como o da França, já tem emitido declarações como “há bens e serviços que têm que estar colocados fora dos interesses do mercado”. Segundo Rafael Araújo, professor da PUC de São Paulo: “Uma crise como essa reivindica ações que apenas o Estado pode empreender, porque implica assumir prejuízos e implica ter recursos para atitudes em nível macro. Veja a iniciativa do governo de fechar o comércio, os shoppings centers (…) Qual empreendedor tomaria (…), uma medida como essa?”
A sociedade civil tem cobrado do Estado ações mais energéticas nesse sentido e apresentado propostas contundentes e emergências que precisam ser tomadas o quanto antes. São medidas como as que garantem de renda mínima emergencial, alimentação de qualidade, e a suspensão da cobrança das contas de água e energia elétrica para as famílias em situação de vulnerabilidade social, a taxação das grandes fortunas, por exemplo.
Cabe destacar que a renda mínima tem sido inclusive uma recomendação do especialista independente da ONU sobre os efeitos da dívida externa nos direitos humanos, Juan Pablo Bohoslavsky, para vários países do mundo e também de diversas entidades e lideranças que iniciaram uma campanha pela renda básica universal no Brasil Este conjunto de ações colocam o Estado como um dos principais agentes e põe em xeque a ideia de Estado mínimo.
Não há dúvidas de que a pandemia da COVID-19 produzirá mudanças estruturais em diversas áreas da nossa sociedade. Tudo indica que teremos a curto prazo um futuro desolador. No entanto, caberá à nossa geração e ao nosso tempo decidir se consolidaremos um “futuro que repete o passado” ou se iremos, coletivamente, enfrentar os desafios de acabar com esta pandemia e com a extrema desigualdade. O que será que vamos construir?
Danielle Klintowitz é urbanista e Coordenadora Geral do Instituto Pólis. Felipe Moreira é urbanista e pesquisador do Instituto Pólis.