Por uma análise profunda dos conflitos
Podemos compreender a guerra no Mali se ignorarmos as precárias condições de vida dos povos que habitam o Saara? O fato de a bandeira dos rebeldes ser a do islamismo radical não muda em nada os acontecimentos seculares, econômicos, sociais e políticos, que constituem o verdadeiro terreno das crises e enfrentamentosGeorges Corm
Estamos em outra época. À época em que se condenava, no Ocidente, a subversão comunista encorajada por Moscou, enquanto no Oriente se celebrava a luta de classes e o anti-imperialismo, sucedeu-se o período da convocação de lutas de comunidades religiosas ou étnicas, até mesmo tribais. Essa nova grade de leitura adquiriu uma potência excepcional desde que o cientista político norte-americano Samuel Huntington popularizou, há mais de vinte anos, a noção de “choque de civilizações”, explicando que as diferenças de valores culturais, religiosos, morais e políticos estavam na origem de muitas crises. Huntington não fazia mais que ressuscitar a velha dicotomia racista, popularizada por Ernest Renan no século XIX, entre o mundo ariano, supostamente civilizado e refinado, e o mundo semita, considerado anárquico e violento.
Essa invocação de “valores” incentiva um retorno às identidades primárias que as grandes ondas sucessivas de modernização fizeram recuar e que, paradoxalmente, retornam com a globalização, a homogeneização dos estilos de vida e consumo, e as transformações sociais provocadas pelo neoliberalismo, vitimando amplos segmentos da população mundial. Ela permite a mobilização da opinião pública internacional em favor de uma ou outra parte de um conflito, mobilização essa fortemente ajudada pela permanência de certas tradições universitárias impregnadas de um essencialismo cultural herdado de visões coloniais.
Enquanto o liberalismo laico à moda europeia e a ideologia socialista, que se difundiram fora da Europa, parecem ter desaparecido, os conflitos reduzem-se à sua dimensão antropológica e cultural. Poucos jornalistas ou acadêmicos preocupam-se em manter um quadro de análise de ciência política clássico, levando em conta fatores demográficos, econômicos, geográficos, sociais, políticos, históricos e geopolíticos, além da ambição dos dirigentes, as estruturas neoimperiais do mundo e o desejo de reconhecimento da influência das potências regionais.
Em geral, a apresentação de um conflito abstrai a multiplicidade de fatores que levaram ao seu desencadeamento. Ela se contenta em distinguir os “bons” dos “maus”, fazendo uma caricatura das questões em jogo. Os protagonistas são designados por suas afiliações étnicas, religiosas e comunitárias, o que supõe uma homogeneidade de opiniões e comportamentos no interior dos grupos assim designados.
Os primeiros sinais desse tipo de análise surgiram no último período da Guerra Fria. Nessa lógica, durante o longo conflito libanês, entre 1975 e 1990, seus diversos atores foram classificados como “cristãos” e “muçulmanos”. Os primeiros seriam todos seguidores de um grupo denominado Frente Libanesa ou do Partido Falangista, formação de direita da comunidade cristã; os últimos estariam reunidos em uma coalizão denominada “palestino-progressista” e depois “islamo-progressista”. Essa apresentação caricatural não se abalava com o fato de que muitos cristãos pertenciam à coalizão anti-imperialista e anti-israelense, apoiando o direito dos palestinos a conduzir operações contra Israel a partir do Líbano, ao passo que muitos muçulmanos lhe eram hostis. Além disso, o problema colocado no Líbano pela presença de grupos armados palestinos e pelas represálias israelenses violentas e maciças sofridas pela população era de natureza secular, sem qualquer relação com as origens comunitárias dos libaneses.
Generalidades vazias e estereotipadas
Ao longo do mesmo período, seriam produzidas outras manipulações das identidades religiosas, que não foram em absoluto denunciadas pelos analistas especializados ou pela grande mídia. Desse modo, a guerra do Afeganistão, causada pela invasão soviética de dezembro de 1979, levaria a uma mobilização em massa do “islã” contra invasores qualificados de ateus, ocultando a dimensão nacional da resistência. Milhares de jovens muçulmanos de todas as nacionalidades, mas principalmente árabes, foram treinados e radicalizados sob a liderança norte-americana, saudita e paquistanesa, criando assim o contexto favorável ao desenvolvimento de uma internacional islamita jihadista que perdura até hoje.
Além disso, a revolução iraniana de janeiro-fevereiro de 1979 esteve na origem de um mal-entendido geopolítico fundamental, com as potências ocidentais pensando que o melhor, para suceder ao xá e evitar um governo de coloração burguesa nacionalista (no modelo da experiência de Mohammad Mossadegh, no início dos anos 1950) ou socializante e anti-imperialista, seria a chegada ao poder de líderes religiosos. O exemplo de dois Estados muito religiosos estreitamente aliados aos Estados Unidos – Arábia Saudita e Paquistão – fez supor que o Irã também se tornaria um parceiro fiel e decididamente anticomunista.
Na sequência, a grade de análise mudou. A política anti-imperialista e pró-Palestina de Teerã foi denunciada como “xiita”, antiocidental e subversiva, em oposição a uma política sunita classificada de moderada. Criar rivalidade entre sunitas e xiitas, e secundariamente entre árabes e persas – armadilha em que Saddam Hussein caiu de cabeça ao atacar o Irã em setembro de 1980 –, tornou-se uma preocupação essencial dos Estados Unidos, ainda mais depois do fracasso da invasão do Iraque em 2003, que acabou levando a um aumento da influência iraniana.1
Toda uma literatura política e midiática passou então a invocar o perigo representado por um crescente dito “xiita”, composto por Irã, Iraque, Síria e Hezbollah libanês, que tentaria desestabilizar o islã sunita, praticaria o terrorismo e seria impulsionado pelo desejo de eliminar o Estado de Israel. Ninguém pensou em lembrar que a conversão de uma parte dos iranianos para o islã xiita remonta apenas ao século XVI, tendo sido incentivada pela dinastia dos safávidas para melhor se oporem ao expansionismo otomano.2 Também se finge ignorar que o Irã sempre foi uma grande potência regional e que o regime só faz prosseguir, sob nova roupagem, a política de grandeza do xá, que queria ser o gendarme do Golfo – e que tinha, também ele, fortes ambições nucleares, incentivadas então pela França. Apesar de todos esses dados históricos seculares, tudo no Oriente Médio passou a ser analisado em termos de “sunitas e xiitas”.
Desde que começaram as revoltas no mundo árabe, no início de 2011, o jogo da simplificação continua. No Barein, os manifestantes são descritos como “xiitas” manipulados pelo Irã contra os governantes sunitas. Isso significa esquecer os cidadãos de confissão xiita simpatizantes do poder vigente, bem como os de confissão sunita que simpatizam com a causa dos opositores. No Iêmen, a revolta houthi3 dos simpatizantes da dinastia real que por muito tempo governou o país é vista apenas como um fenômeno “xiita”, em razão exclusivamente da influência do Irã.
No Líbano – a despeito das oposições que a organização possa suscitar no seio da comunidade xiita e, inversamente, de sua popularidade entre muitos cristãos e muçulmanos de diversas confissões, incluindo os sunitas –, o Hezbollah é considerado um mero instrumento nas mãos das ambições iranianas. Esquece-se que o partido nasceu da ocupação por Israel, entre 1978 e 2000, de uma grande parte do sul do país, habitada predominantemente por xiitas; ocupação que certamente teria continuado sem sua feroz resistência.
Aliás, o fato de o Hamas, em Gaza, ser um puro produto “sunita”, surgido da Irmandade Muçulmana palestina, é algo que não faz a menor diferença para os analistas que defendem o sunismo “moderado”: o movimento deve ser denunciado, uma vez que as armas fornecidas são de origem iraniana e destinadas a levantar o bloqueio do território por Israel.
Em suma, qualquer nuance está ausente. As situações de opressão ou marginalidade socioeconômica passam em silêncio. As ambições hegemônicas das partes em conflito não existem: há potências do bem e potências do mal. Comunidades com opiniões e comportamentos diversificados são caracterizadas por meio de generalidades antropológicas vazias e essencialismos culturais estereotipados, apesar de terem vivido durante séculos em uma forte interpenetração socioeconômica e cultural.
Novos conceitos invadiram os discursos: no Ocidente, os “valores judaico-cristãos” sucederam à invocação de natureza laica de raízes “greco-romanas”. Da mesma forma, a promoção de “valores, especificidades e costumes muçulmanos”, ou “árabo-muçulmanos”, seguiu-se às reivindicações anti-imperialistas, socialistas e “industrializantes” do nacionalismo árabe de inspiração laica, que por muito tempo dominou a cena política regional.
Agora, os valores individualistas e democráticos que o Ocidente pretende encarnar opõem-se aos supostos valores exclusivamente holistas, “patriarcais e tribais” do Oriente. Grandes sociólogos europeus já afirmaram outrora que as sociedades budistas jamais atingiriam o capitalismo industrial, baseado nos valores supostamente muito específicos do capitalismo “protestante”…
Da mesma maneira, a questão palestina não é mais percebida como uma guerra de libertação nacional, que poderia ser resolvida com a criação de um único país onde viveriam em pé de igualdade judeus, cristãos e muçulmanos, como há muito reivindica a Organização para a Libertação da Palestina (OLP).4 Ela é considerada uma recusa árabo-muçulmana à presença judaica na Palestina, portanto, para muitas boas mentes, o sinal de uma permanência de antissemitismo contra a qual seria necessário intervir duramente. Basta um pouco de bom senso para compreender que, se a Palestina fosse invadida por budistas, ou se a Turquia pós-otomana quisesse reconquistá-la, a resistência seria igualmente constante e violenta.
No Tibete, em Sinqiang, nas Filipinas, no Cáucaso sob domínio russo e agora na Birmânia, onde se acaba de descobrir a existência de uma população muçulmana em conflito com seus vizinhos budistas, ou ainda na ex-Iugoslávia desmembrada em linhas comunitárias (croatas católicos, sérvios ortodoxos, bósnios muçulmanos), ou na Irlanda (dividida entre católicos e protestantes)… Em todas essas regiões, os conflitos podem realmente ser vistos como um choque de valores religiosos? Ou eles são, ao contrário, seculares, isto é, enraizados em uma realidade social cuja dinâmica ninguém se preocupa em analisar, enquanto muitos líderes comunitários autoproclamados encontram aí a oportunidade para realizar suas ambições?
Contornar o direito
A instrumentalização das identidades no jogo das grandes e pequenas potências é velha como o mundo. Acreditou-se que a modernidade política e os princípios republicanos difundidos pelo planeta após a Revolução Francesa haviam instalado de maneira durável o laicismo na vida internacional e nas relações entre os Estados; mas não é nada disso. Assiste-se à ascensão das pretensões de alguns Estados em se fazerem porta-vozes de religiões transnacionais, em particular no que diz respeito às três religiões monoteístas (judaísmo, cristianismo e islamismo).
Esses Estados valem-se do religioso para colocá-lo a serviço de sua política de poder, influência e expansão. Assim, justificam a não aplicação dos grandes princípios dos direitos humanos definidos pelas Nações Unidas, o endosso do Ocidente à ocupação contínua dos territórios palestinos desde 1967 e a permissão, por alguns poderes muçulmanos, de flagelações, apedrejamentos, mutilação das mãos dos ladrões. As sanções aplicadas aos infratores do direito internacional também variam: severas punições impostas pela “comunidade internacional” em alguns casos (Iraque, Irã, Líbia, Sérvia etc.), total ausência de uma simples reprimenda em outros (ocupação israelense, regime de detenção norte-americano em Guantánamo).
Interromper essa instrumentalização e as análises simplistas que visam dissimular a realidade secular dos conflitos, sobretudo no Oriente Médio, constitui um imperativo urgente, caso queiramos alcançar o apaziguamento dessa região turbulenta.