Por uma democracia global - Le Monde Diplomatique

ALTERNATIVAS P

Por uma democracia global

por Jean Tardif
1 de abril de 2000
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A globalização não é um fenômeno pré-determinado, e não implica em nenhuma fatalidade. Ao invés de ser dirigida pelos mercados, ela poderia abrir caminho para formas de democracia planetária que resgatem, através de soluções inéditas, a arte da associaçãoJean Tardif

A menos que cedamos à utopia de um governo mundial ou de um diretório das potências num mundo multipolar, a questão mais importante colocada para a comunidade internacional (que não poderia ser reduzida às potências ocidentais ou industriais), é a de inventar formas de governo adaptadas a desafios atualmente planetários.

A globalização fez a esfera pública evoluir não para um mundo sem soberania, mas para um espaço onde as fronteiras claramente traçadas se tornaram irrelevantes com relação aos desafios supranacionais. Daí, surgirem situações de soberania compartilhada ou, mais precisamente, a necessidade de definir diversos tipos de soberania. Diferentemente das instituições dos sistema internacional westphaliano, [1] e como os Estados não são mais os únicos atores-sujeitos, uma parte das suas funções legislativa, judiciária e executiva deverá ser exercida em um nível supranacional encontrando novas bases de legitimidade.

A mutação da informação constitui o coração e o motor desta dinâmica. Da mesma forma que ela redefine as relações dos atores econômicos, ela amplia em escala planetária o campo de uma “batalha dos espíritos” para o controle dos códigos culturais das sociedades. A fusão da AOL com a Time Warner e a EMI ilustra bem a importância dos três desafios ligados ao que o presidente da AT&T chama de “imperativo da ubiqüidade” para estas empresas globais: acesso à clientela em todos os lugares do mundo, infra-estruturas apropriadas e conteúdos.

Luta pelas identidades

A que grau de concentração dos meios de produção e de difusão será preciso chegarmos para que se tome consciência da ameaça estratégica que pesa sobre um dos mais preciosos bens comuns da humanidade: o direito dos indivíduos a uma identidade cultural diferenciada? Para todos os que gostariam de reduzir os intercâmbios culturais à sua única dimensão comercial, a batalha pelas identidades adquire uma importância bem maior que na época em que o romancista americano Upton Sinclair podia afirmar que “graças ao cinema, o mundo se unifica, quer dizer, ele se americaniza”. [2] E ela precisa da invenção, fora da Organização Mundial do Comércio (OMC), de um regime específico de trocas adaptado aos imperativos da soberania cultural.

Após o fiasco do Acordo Multilateral de Investimentos (AMI), as manifestações de Seattle e sua preparação mostraram o potencial das técnicas de comunicação para a invenção de modalidades de debates democráticos em escala do planeta. É preciso tirar as lições. Sem ignorarmos o problema da legitimidade de atores particularmente dinâmicos que são os movimentos de cidadãos (sindicatos e sobretudo associações) diante das instâncias de decisão originadas na democracia representativa, não poderíamos encorajar a emergência de uma “sociedade civil mundial” instituindo para isso uma espécie de Forum permanente das interdependências? Longe de estarem reservadas apenas aos diplomatas e especialistas e de ocorrerem a portas fechadas, estas conferências diplomáticas informais utilizariam as possibilidades da Internet para suscitar e canalizar os debates, além de discutir sistematicamente os temas precedendo as reuniões internacionais. Os governos apresentariam previamente, nesse caso, suas posições e isso permitiria acompanhar o desenrolar das negociações formais ou das reuniões informais, como o Forum de Davos ou as reuniões do G7.

Nesta configuração, “o Estado-nação teria como funções centrais a de legitimar e a de vigiar — já que é perante ele que serão prestadas contas de seus atos — os mecanismos de governo supranacionais e subnacionais”. [3] Em última instância, ele retirará sua legitimidade da capacidade em garantir o lugar de seu país no mundo. Ou seja, participar, com os outros Estados e os outros atores, para construir e administrar as redes das interdependências.

Fórmulas inéditas de geometria variável

Esta responsabilidade inalienável será indubitavelmente imposta ainda mais aos pequenos países, que verão nela a verdadeira justificação para a sua soberania. Então, poderemos ter, ao lado da ordem internacional existente, e particularmente o sistema das Nações Unidas — que bem ou mal continuará a desempenhar um papel, certamente modificado —, outras fórmulas, inéditas, de geometria variável. Elas reagrupariam atores públicos e privados em redor de projetos de interesse comum, com objetivo de agir como sujeitos responsáveis num cenário ampliado de responsabilidade compartilhada, aberto e evolutivo.

Tais regimes contratuais teriam o mérito de ser melhor adaptados à diversidade e à especificidade dos desafios. Dessa forma, ao lado do sistema constituído nos últimos quarenta anos para o comércio de bens e serviços, sob os auspícios de uma OMC cujas regras de funcionamento evidentemente seria preciso mudar, seria criado um regime distinto, adaptado à especificidade das trocas culturais. Ele levaria em conta tanto os princípios de multifuncionalidade (como para a agricultura), como o de precaução, o da diversidade e o de reciprocidade. Os direitos humanos, a bioética, o meio-ambiente etc., teriam igualmente suas próprias instituições.

Retomando e prolongando a idéia proposta por Jacques Delors [4] de criar um Conselho de Segurança Econômica Mundial, seria conveniente por em prática um Conselho de Segurança Cultural Mundial, ou Conselho Cultural Mundial. Estas duas instâncias não seriam calcadas no Conselho de Segurança da ONU: seriam foruns públicos de debates e de propostas abertos aos diversos atores públicos e privados e funcionando de maneira principalmente virtual, eventualmente apoiando-se nos conselhos regionais. É nestas condições que poderia ser elaborado um regime contratual da diversidade e das trocas culturais, desde que certos organismos mais formais possam encarregar-se dos aspectos regulamentares.

Como o Forum Permanente das Interdependências, ao qual eles poderiam estar ligados no começo, estes Conselhos seriam colocados sob a égide de um grupo de personalidades reconhecidas, sendo que os debates poderiam ser conduzidos e animados por especialistas de horizontes diversos. Sem ter a pretensão de criar “cidadãos da globalização” ou de se substituir aos debates nacionais, estas instâncias informais poderiam estimular a discussão dos desafios supranacionais no seio dos parlamentos nacionais. Ao abrir a possibilidade de exprimir-se àqueles que não têm os meios de ser convidados a Davos ou de ser acionistas do Fundo Monetário Internacional, eles poderiam contribuir para controlar um pouco a globalização ao introduzir outras considerações diferentes das mercantis, ao mesmo tempo em que introduziriam um início de controle democrático e sócio-cultural.

A arte da associação

Poderíamos acreditar que a situação geopolítica e geoeconômica atual encoraja a corrida ao gigantismo e dá um prêmio aos poderosos. Um prêmio muito bem admitido por aqueles que, temendo a “proliferação de Estados”, parecem pensar que os problemas do mundo são fruto de uma falta de liderança e que sem o peso dos Estados Unidos, o mundo seria menos estável. Entretanto, mesmo os defensores de um mundo unipolar ou de relações inter-estatais rígidas são forçados a admitir a existência e o papel de novos atores na cena internacional. Os primeiros estudos dos resultados das mega-fusões poderia levantar questões análogas àquelas que colocaram um ponto final à moda da diversificação dos anos 80, e ressaltar o papel indispensável dos pequenos atores, [5] como o dos pequenos países na dinâmica mundial.

Da mesma forma, os espaços lingüísticos, particularmente aqueles que reagrupam Estados do Norte e do Sul, poderiam constituir uma das geometrias variáveis evocadas anteriormente. Existe lugar para alianças promissoras, por exemplo, entre países de língua francesa e espanhola, a fim de lançar uma iniciativa original, aberta, talvez exemplar, suscetível de expressar concretamente o valor e o dinamismo da diversidade cultural.

Para testar e por em prática estes projetos, por que não criar uma associação com vocação mundial formada por um grupo de personalidades de diversas origens e desejosas de assumir o desafio central da era planetária: construir as redes das interdependências para favorecer o exercício da responsabilidade ?

A nova democracia não se reduz a eleições

Os fracassos do AMI e de Seattle mostram que a nova democracia a ser construída não pode ser reduzida às consultas eleitorais ocasionais. Ela deve também ser afirmada nos mecanismos permanentes que permitam a um número cada vez maior de cidadãos participar efetivamente das decisões que lhes dizem respeito — em escalas local, nacional, regional ou mundial — e das quais, durante muito tempo, estiveram excluídos por governos que pretendiam representá-los. A cidadania, que por muito tempo existiu como uma conquista, deve agora imaginar os meios de ser exercida como um compromisso em diversos níveis.

A globalização não é um fenômeno predeterminado e não implica em nenhuma fatalidade. Após ter governado unicamente para o mercado, ela poderia abrir o caminho a certas formas de democracia planetárias que conduzam, através de fórmulas inéditas e múltiplas, a reinventar a arte da associação (para Tocqueville, a ciência-mãe) a serviço da arte da representação. Num mundo que será ainda instável e imprevisível, será ilusório pensar que a geopolítica e a geoeconomia se definirão somente pela interação entre os grandes blocos ou pela ação de uma oligarquia.

Exatamente porque não devemos esperar que tal



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