Por uma genealogia – RIO+16
Compreender a natureza dos megaeventos e o que se mobiliza e demanda em sua organização, sem perder de vista a construção coletiva de um futuro melhor para a cidade, é fundamental para a compreensão do processo atual carioca e sua críticaPhilippe Nothomb e Clarissa Moreira
Uma série de ações simultâneas está em curso na cidade do Rio de Janeiro a fim de prepará-la para receber eventos como a Copa do Mundo e as Olimpíadas. De fato, uma agenda “única” está prevista para os próximos cinco anos, e uma tal “coincidência” é sem precedentes na história da cidade. Acrescentam-se aí as candidaturas da cidade como Patrimônio Mundial da Humanidade, junto à UNESCO, e para sede da EXPO Mundial 2020.
Compreender a natureza de tais eventos e o que se mobiliza e demanda em sua organização, sem perder de vista a construção coletiva de um futuro melhor para a cidade, é fundamental para a compreensão do processo atual carioca e sua crítica, como apontam os recentes artigos de Giuseppe Cocco, Barbara Szaniecki, Alexandre Mendes e Fernanda Sanchez, no contexto do dossiê RIO+20¹ e a cidade publicado em maio de 2012 pelo Le Monde Diplomatique Brasil ( acesse: A “cidade olímpica” e sua [in]sustentabilidade e Devir mundo da favela e devir favela do mundo )
O atual cruzamento de “oportunidades” constituídas pelos mega-eventos vem alterar um quadro de crise econômica e urbana iniciado na década de 60 e sempre agravado desde a transferência da capital para Brasília. Durante cerca de 400 anos, o Rio de Janeiro foi a capital do país e de um império, mas, desde os anos 70, os cariocas se acostumaram a viver numa cidade sempre aquém do que fora um dia, decadência explorada abusivamente pela mídia nacional e, sobretudo, local.
O Rio de Janeiro nunca perdeu totalmente seus encantos, mas a cidade foi vista por várias décadas como uma espécie de metrópole “maldita”, violenta e perigosa, temida no Brasil e no mundo. É surpreendente a agilidade (2 anos?) com a qual essa imagem foi apagada, substituída pela promessa inquestionável da Cidade Olímpica. Levou muito tempo e custou anos de sofrimento para os cariocas – guerras entre favelas, roubos e assaltos liberados nas ruas – até que uma grande oportunidade de «negócios» fizesse as instâncias geralmente paralisadas se moverem.
O entusiasmo com a grande virada econômico-financeiro-simbólica pode explicar a relativamente pequena participação da sociedade carioca no processo de transformação urbana em curso, no sentido de questioná-lo e buscar melhorá-lo, com exceção daqueles tocados diretamente por remoções e perdas de direito em função dessas intervenções.
Diante disto, é de grande utilidade observar as estratégias urbanas atuais, sua “genealogia” ou filiação, utilizando o termo foucaultiano, a fim de compreender no tempo e no espaço a organização do que, atualmente, resulta nos projetos e propostas de estruturação da cidade para receber os grandes eventos. De fato, a cada um dos momentos e movimentos da história do Rio de Janeiro, de capital do império à lacuna da capital deposta, correspondeu um pensamento e uma forma da cidade, uma filiação a correntes e a experiências urbanísticas, como a da cidade européia do final do século XIX e a da cidade americana do século XX. A estes momentos corresponderam, ainda, estratégias de administração e gestão urbana que se podem caracterizar como «desigual» ou «excludente»: os modelos urbanos sedutores nas diversas épocas foram sempre aplicados parcialmente e, em sua aplicação, gerou-se invariavelmente desequilíbrios e injustiça social.
Recentemente, estes processos de construção da cidade, até hoje incapazes de dotá-la de padrões mínimos de equilíbrio urbano e justiça social, ganham uma nova gravidade: persiste, e é celebrado, o modelo excludente que imperou ao longo do último século. Em recente artigo² versando sobre temas ligados à arquitetura e ao urbanismo no contexto dos megaeventos , venera-se o estilo «carioca» de intervir na cidade: demolições, desmontes de morros e suas favelas (cujos habitantes foram realojados em bairros distantes de seu circuito de vida e até hoje mal servidos por transporte público), imensos aterros e outras intervenções de grande porte, mas de duvidosa eficácia ou necessidade: seriam demonstrações de um DNA da audácia do Rio de Janeiro.
Às vésperas da RIO+20, debatendo erradicação da pobreza e meio-ambiente, é bastante chocante tamanho descaso diante de verdadeiros crimes urbanos e, muitas vezes, crimes humanitários. Atualmente, seguindo estes mesmos princípios, centenas de famílias serão removidas da mais antiga favela carioca. Aqui vale lembrar que alguns historiadores afirmam que as primeiras ocupações precárias de colinas se deram no Morro do Castelo, objeto de desmonte, tanto quanto no Morro de Santo Antônio. Esses desmontes, mesmo de um ponto de vista estético ou urbanístico, nunca se resolveram, deixando até hoje hiatos informes na trama da cidade.
Neste artigo, evoca-se o princípio de uma «arquitetura nômade», ou seja, a remoção de equipamentos olímpicos que se tornarão desnecessários no local onde terão sido realizados os jogos e seu «transplante» para bairros que, estes sim, demandam há muitas décadas investimentos urbanos consequentes. A idéia surgiu em Londres, segundo a reportagem , onde se fala em vender ao Brasil edifício tornado inútil após Londres 2012.
Mas a arquitetura e o urbanismo são o oposto do nomadismo, que é sempre provisório, sobrevivente, alinhado às forças da terra e da vida. E por serem ferramentas do homem sedentário, elementos da própria permanência, é que estas disciplinas demandam cuidadosa reflexão, coerência, objetivos claros, participação, decisões fundadas. Mas, se pensarmos ainda melhor, mesmo os movimentos nômades demandam princípios claros e estratégias eficientes. Mover equipamentos de onde nunca deveriam ter estado para não se sabe bem que lugares não é e nunca será nomadismo, senão apenas um grande equívoco ou um arremedo. Vivemos em um tempo onde discursivamente é possível transformar tudo em «sustentável», «inteligente» etc. No entanto, muito raramente, se é capaz de prová-lo por argumentos e cálculos coerentes e, de fato, responsáveis.
Hoje, no início da segunda década do século XXI, observa-se um alinhamento sem precedentes e um tanto assustador de forças e procedimentos urbanos no sentido de criar no Rio de Janeiro uma condição fortemente especulativa. O que há de durável, sustentável ou responsável na adoção deste tipo de modelo sem quaisquer bases econômicas e financeiras que possam sustentá-lo a longo prazo? A falta de transparência e a ausência de consultas, diálogos, negociações justas e, sobretudo, de participação das comunidades atingidas pelos processos de remoções (já realizadas ou planejadas no âmbito da preparação para a Copa do Mundo e para os Jogos Olímpicos) foram verificadas e amplamente denunciadas pela relatora da ONU, Raquel Rolnik. A reabilitação de todas as favelas da cidade, contrapartida prometida extra-oficialmente ao presidente do COI e anunciada pela Prefeitura do Rio de Janeiro através do Programa Morar Carioca, mas não exigida oficialmente, não é levada adiante. Objetivos pontuais e de fundo econômico-financeiro e estetizante, como o da «disneylandização» do Morro da Providência (teleféricos + planos inclinados + expulsões), são os únicos que parecem «vingar» atualmente. Inseridas no processo de criação de valor imobiliário em determinadas áreas da cidade, como o Porto e a própria Barra da Tijuca, esta e outras favelas são objeto de «ataque».
A questão do bem comum, em um contexto de privatização crescente dos serviços públicos, se apresenta. Este tema nos parece vital no quadro das operações urbanas em curso no Rio de Janeiro e no Brasil, reféns de um processo mundial de privatização gradativa da propriedade comum.
« (…) toda privatização decidida pela autoridade pública – representada, neste momento, pelo governo – priva cada cidadão de sua quota-parte de um bem comum, como ocorre com o bem privado expropriado. (…) nenhum dispositivo jurídico, e ainda menos constitucional, protege a coletividade do Estado neoliberal quando este transfere ao privado bens pertencentes a esta. Dada a evolução atual da relação de forças entre Estado e grandes empresas trans-nacionais, esta assimetria representa um anacronismo jurídico e político. Tamanha irresponsabilidade constitucional autoriza aos governos a vender livremente o bem de todos para financiar sua política econômica. Ela nos faz esquecer que os poderes políticos deveriam se colocar ao serviço do povo soberano e não o inverso.»³
Como proteger o bem comum – a cidade sendo o maior deles – em tempos de reapropriação total e alinhamento absoluto dos governos e das grandes corporações financeiras mundiais? Existem instrumentos como referendos, orçamento participativo e outros que podem ser redesenhados a fim de proteger as cidades e seus habitantes de grandes «predadores» no futuro próximo, ajudando a pensá-las de forma verdadeiramente responsável, inteligente e participativa.
Philippe Nothomb e Clarissa Moreira são, respectivamente, jornalista, editor e consultor em projetos sócio-culturais, membro da ONG Inscrire, atua na área dos Direitos Humanos, colaborou ainda na organização de suplementos especiais para o Le Monde Diplomatique France entre 2003-2011, e Arquiteta e urbanista, doutora em filosofia e professora da EAU/UFF, atuou em pesquisa apoiada pela FAPERJ e pelo PROURB- FAU/UFRJ sobe o tema do Rio de Janeiro em face dos mega-eventos.