Por uma sociedade de tempo liberado
Diante da revolução tecnológica, e do desemprego crescente que ela provoca, é preciso ousadia para propor novas formas para repartir a renda. As alavancas de uma emancipação coletiva e individual já existem. Que projeto político, nacional e internacional, saberá usá-las?Bernard Cassen
Na França, a taxa de desemprego atingiu, no outono de 1996, o seu recorde histórico desde a segunda guerra mundial (12%), enquanto relatórios, declarações e proposições sobre a questão do emprego se multiplicavam num verdadeiro movimento browniano. [1] No entanto, as idéias que saem dos caminhos batidos e rebatidos não são mais discutidas — serão lidas? — por aqueles que estão encarregados dos negócios públicos e que nem consideram útil — ou temem? — o diálogo com aqueles que proporiam novos modelos de análise e, portanto, de soluções em ruptura com o status quo. Porque se trata exatamente de ruptura: a falência de políticas de emprego adotadas, há mais de vinte anos, em todos os países industrializados e o crescimento simultâneo da riqueza nacional, das desigualdades, do desemprego e da exclusão mostram bem que os próprios axiomas destas políticas estão em causa. Desta maneira compreendemos melhor os bloqueios da direita e de uma boa parte da esquerda: não é apenas o trabalho que é preciso redistribuir, mas também a renda…
Uma das características dos debates atuais sobre o emprego é que eles repousam sobre estatísticas de parâmetros jamais explicitados e, principalmente, sobre dogmas e análises difundidas por todas as instituições internacionais do “pensamento único” neoliberal — Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Econômicos (OCDE), Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional (FMI), Organização Mundial do Comércio (OMC), Comissão Européia — e reproduzidas sem crítica pela mídia. É outro o diagnóstico a que vamos proceder, apoiados em múltiplos trabalhos (de André Gorz, René Passet, Ricardo Petrella e Jacques Robin).
Primeira constatação: o avanço tecnológico
As últimas vagas tecnológicas expulsam massivamente o homem do emprego. Numerosos estudos formalizaram o que, nestes últimos anos, os anúncios de demissões massivos nas grandes empresas dos países industrializados já colocavam diante dos olhos dos leitores. A atividade da produção de bens e serviços comerciais está agora desconectada do volume dos efetivos empregados. Pode-se produzir cada vez mais com cada vez menos assalariados.
Já a primeira onda tecnológica, de meados dos anos 70 ao fim dos anos 80 — com a informática, a robótica, as telecomunicações, as biotecnologias —, tinha transformado a sociedade industrial e levado a um crescimento quantitativo sem criação de empregos. A segunda vaga, que se espraia atualmente, é mais poderosa, e age de outra maneira. Telecomandos de concepção, imagens interativas, sistemas inteligentes, faxes, mensagens eletrônicas, programas cada vez mais sofisticados incorporam, no alto da cadeia produtiva em pesquisa-desenvolvimento, uma enorme quantidade de “massa cinzenta”, que torna redundante, na base desta cadeia, uma parte da mão de obra — mesmo a altamente qualificada, que realizava tarefas agora automatizadas.
Um exemplo significativo, o dos programas de jogos de xadrez. Tendo integrado a experiência e o saber acumulados dos grandes mestres, eles se tornam mais fortes que aqueles. Se o jogo de xadrez fosse uma profissão, esta já teria praticamente desaparecido, pois Gary Kasparov em pessoa teve que aceitar sua derrota para o programa Chess Genius II!
Não há nenhuma razão para que os avanços técnicos se detenham. E a continuação sem amarras da competitividade acelera o seu ritmo.
Segunda constatação: sua apropriação pelo capital
Numa tecnologia em avanço constante, a racionalização dos processos de produção elimina ainda mais o trabalho humano. Depois do começo dos anos 90, um novo conceito, o da reengenharia , apareceu nos Estados Unidos. A idéia básica é identificar, na empresa, as atividades que constituem o “coração do seu negócio” (core business), eliminando ou tercerizando todos os demais, e de recomeçar de zero, como uma folha em branco, para construir os meios necessários para este objetivo. E isso sem ter em nenhuma conta as estruturas existentes.
De fato, pode-se obter ganhos de produtividade espetaculares afastando a metade, três quartos, ou ainda mais dos efetivos. Nos Estados Unidos, a reengenharia poderia, segundo o Wall Street Journal, permitir a supressão de 25 milhões de empregos num setor onde trabalham cerca de 90 milhões; na Alemanha, 9 milhões sobre 33 milhões [2]; no Japão também, segundo numa fonte governamental, “as demissões sob a denominação de reengenharia, progridem inexoravelmente [3]”.
Dizer, nestas condições, que o crescimento, mesmo ultrapassando os 3%, pode limitar e mesmo reduzir de modo duradouro o desemprego, abusar do eleitorado. E nesse ponto, os políticos não têm nenhuma desculpa, porque uma fração do próprio patronato os está prevenindo. Num documento recente o Centro do Jovens Dirigentes (CJD) não ameniza suas palavras: “os discursos feitos atualmente sobre a retomada do crescimento e a reabsorção do desemprego são mentirosos ou ignorantes. O crescimento não sanará o desemprego, porque as empresas têm ainda reservas de produtividade, não serão jamais suficientemente fortes e não são os únicos atores sociais em questão quando se discute o problema do desemprego [4]”.
Chegamos aqui a um problema de identidade abordado por André Gorz: para se valorizar e se reproduzir, o capital tem somente necessidade de uma fração, cada vez mais reduzida, da população ativa disponível. E seu “exército de reserva não é mais nacional nem está situado nos países desenvolvidos, mas é mundial”.
Daí a tendência, que se acentuará, a transferir para os países de salários baixos (principalmente na Europa e na Ásia) não apenas as atividades não qualificadas, com forte intensidade de mão de obra, mas também as mais qualificadas, como a contabilidade ou a digitação de textos e de dados, efetuadas em tempo real, graças aos satélites.
Terceira constatação: a queda dos salários
Os números do desemprego são muito maiores do que se anuncia, e os empregos são majoritariamente empregos precários. Os números oficiais, constantemente citados sem exame crítico, não traduzem a realidade. Numerosos estudos feitos pelo American Bureau of Labor Statistics e retomados pela The Amex Bank Review colocam as coisas em pratos limpos. Tomando em conta as diferentes componentes do desemprego — trabalhadores que procuram empregos de tempo parcial ou completo, precários, assalariados que desistiram de um emprego formal — e aplicando estes critérios de maneira idêntica a todos os países, a verdadeira taxa para o ano de 1989, que serviu de base a estes estudos, — não seria 2,7% no Japão, mas 9,6%; nem 6,4% nos EUA, e sim os mesmos 9,6%. Na Europa, as diferenças seriam menors elevadas: 13,7% em lugar de 12% na França; 12,3% ao invés de 9,8% na Inglaterra. Há certamente algumas diferenças de grau de desemprego entre a Europa de um lado, e os Estados Unidos e o Japão, do outro, mas nenhuma de natureza.
Uma diferença tão grande entre os números e a realidade derruba pedaços inteiros do discurso sobre a “máquina americana de produzir empregos”, o “modelo japonês”, etc. Ainda mais que nos Estados Unidos, em particular, assistimos a uma transferência maciça de empregos estáveis e bem remunerados para empregos precários, sem proteção social e mal remunerados.
Dois exemplos citados pela revista Time: A Pepsi está em expansão, mas a maioria dos dos novos empregos são para quem se ocupa dos fornos de cozimento nas filiais de restauração rápida como Pizza Hut, Taco Bell e KFC. Resultado: muitas das pessoas que sobrevivem às demissões e reencontram um emprego experimentam fortes perdas salariais. Um estudo mostrou que, entre 2000 trabalhadores despedidos pela RJR Nabisco, 72% encontraram novos empregos com salários médios equivalentes à 47% daqueles que recebiam antes. A mesma edição do semanário estimava que a massa salarial paga pelas empresas privadas americanas tinha diminuído do 30% de 1992 a 1993. Daí o surgimento de uma “nova pobreza”, aquela dos trabalhadores de salários muito baixos. Daí também uma redistribuição social às avessas, pela transferência espetacular da riqueza nacional e da renda do trabalho para o capital.
Quarta constatação: a cumplicidade dos governos
O culto da concorrência, da competitividade e do livre comércio agravam a cada dia a situação. A procura da competitividade e o acirramento da concorrência têm efeitos benéficos para as contas de uma empresa, mas não necessariamente para os assalariados, que freqüentemente pagam as contas. Elas se tornam entretanto absurdas numa economia européia onde mais de dois terços das trocas comerciais são intra-comunitárias e onde a conquista de mercados por parte de alguns se faz em prejuízo do emprego de outros.
No entanto, é nesta competitividade que a Comissão Européia aposta ao defender a abertura ao exterior, ela também destruidora de postos de trabalho e, mais freqüentemente, fator de diminuição de salários. Para as indústrias de mão de obra intensa, como a têxtil e a de vestuário, a concorrência com os países de salários baixos é fatal para o emprego na Europa (434 mil postos de trabalho eliminados em quatro anos).
Para isto, a resposta tradicional dos partidários do livre comércio é dizer que a União Européia deve se concentrar nas atividades industriais com forte densidade de capital e sobre os serviços com alto valor agregado. Mas, como vimos, estas atividades irão reunir um número cada vez mais reduzido de trabalhadores.
As pistas de ação que seguem se inscrevem evidentemente na contramão de uma ideologia globalista e de livre comércio que se tornou um prêt à penser totalitário.
Primeira pista: criar empregos eco-sociais
Existem ao mesmo tempo desemprego e imensas necessidades não satisfeitas, potencialmente criadoras de empregos. Se o sistema produtivo pode muito bem “girar” com poucos trabalhadores, a sociedade não pode manter sua coesão sem que um número crescente de necessidades de ordem mais qualitativa que quantitativa sejam satisfeitas. E há um extraordinário paradoxo em constatar que o inchaço das fileiras de desempregados está acompanhado por uma penúria crescente no fornecimento de serviços.
De que serviços estamos falando? Em primeiro lugar, os serviços públicos clássicos: ensino, saúde, justiça, transporte público etc., onde um contingente mais numeroso melhoraria, para todos os cidadãos, a qualidade de vida e a segurança. Em nome de que princípio, por exemplo, a séde social de uma grande empresa deveria ter mais porteiros do que um colégio de conselheiros de educação encarregados de controlar centenas de alunos nos cursos e corredores?
Mas existe uma nova categoria de serviços que poderíamos qualificar de utilidade social, ou do setor terciário eco-social, no qual a fronteira entre trabalho e atividade não é rígida: ela vai da ajuda aos idosos ou apoio aos jovens em dificuldades à melhoria do habitat e à proteção do meio ambiente. Os vereadores, porque estão próximos dos cidadãos e são alvos diretos das suas queixas, são particularmente sensíveis a estas necessidades que poderiam ser satisfeitas, em boa parte, por associações trabalhando em ligação com os serviços públicos municipais ou estaduais.
Milhares de empregos poderiam ser criados dessa forma, evitando os terríveis desgastes sociais da marginalização: pequena delinqüência, droga, desintegração das famílias, patologias psicológicas e físicas da exclusão, consumo médico, etc. Estes empregos intermediários não são “bicos”, mas grandes ofícios onde o indivíduo experimenta a sua utilidade social, que pratica com orgulho. Se valorizarmos e reconhecermos uma função a partir da sua utilidade e da sua dificuldade, o coordenador de reabilitação social de um manicômio e a sua equipe, com seus agentes de execução recrutados no local, poderá ser tão bem remunerado quanto um diretor de fábrica. Estes empregos de utilidade social devem então requerer uma formação profissional com as mesmas normas que as atividades comerciais, beneficiar-se de um estatuto estável e ser remunerados na medida da sua utilidade social.
Segunda pista: reduzir drasticamente a jornada
É preciso reduzir consideravelmente o tempo de duração do trabalho. A explosão das tecnologias da informação e o aprimoramento das formas de organização da empresa levam a diminuir regularmente os efetivos dos setores consagrados à produção de bens e serviços comerciais. Para que os empregos se estabilizem e, mais ainda, para criar novos, a única solução é a redução do tempo de trabalho. A duração semanal legal na França (atualmente de 39 horas) poderia ser reduzida a 30 ou 32 horas, divididas em quatro dias em vez de 5, de maneira a criar uma “vazio” gerador de contratação.
Seria conveniente que a decisão fosse tomada sem demora, e que os dois ou três anos futuros fossem utilizados para negociações aprofundadas entre empregados, sindicatos e poder público, do nível nacional ao da empresa. Seria preciso, efetivamente, proceder a uma “reengenharia” de um tipo diferente: estudar o tempo de utilização dos equipamentos, os métodos de trabalho, os horários e a evolução dos efetivos, as qualificações e os salários. Deveríamos distinguir as empresas (grandes e médias, públicas ou privadas), onde a semana de quatro dias é facilmente aplicável, daquelas (artesanato e agricultura) onde a redução da jornada deveria ser contabilizada no mês ou no ano. Outras fórmulas (trabalho intermitente, licenças maternidade de longa duração para os pais, semestres ou ano sabático) são possíveis.
Terceira pista: tributar mais o capital
Na França, para tomar um único caso, a riqueza nacional aumentou 35% nos últimos dez anos. Esta informação geralmente não é levada ao conhecimento dos pobres e excluídos… O problema não é, portanto, o volume das riquezas disponíveis, mas a sua repartição. É preciso derrubar o tabu de silêncio sobre o verdadeiro desvio de verbas que se operou ou, mais exatamente, se acelerou, ao longo dos últimos 15 anos, em favor das rendas do capital e em prejuízo do trabalho. É preciso tomar o caminho exatamente inverso e dar a prioridade à coesão social sobre o “dinheiro ganho durante a noite” como disse — sem tirar nenhuma conseqüência — François Mitterrand.
Uma reforma do imposto direto, do imposto sobre a fortuna, a tributação dos movimentos especulativos, asssim como a renda do capital, podem liberar enormes recursos financeiros. Certas formas de tributação indireta, tendo também a virtude de pedagogia ecológica sobre as energias e riquezas não renováveis, as embalagens perdidas, os carros particulares, etc., não deveriam ser descartadas.
Terceira fonte de financiamento: as somas colossais destinadas à indenização do desemprego (cerca de 24 milhões de dólares). Somente esta verba poderia financiar a criação de 50 mil empregos pagos com salário mínimo (na França, cerca de mil dólares), sem falar dos outros 120 milhões destinados à aposentadoria antecipada, formação profissional, etc. Acompanhando uma nova repartição do trabalho, esta gigantesca reciclagem da riqueza nacional daria origem a uma sociedade mais igualitária e mais solidária.
Quarta pista: as medidas internacionais
É preciso questionar as lógicas da construção européia e da regulamentação mundial das trocas comerciais. As medidas evocadas anteriormente são parcialmente realizáveis na escala de um país. É o caso, particularmente, da utilização de verbas da indenização do desemprego. Mas a tributação dos movimentos e das rendas do capital, condição indispensável para a redistribuição da renda, só pode se efetuar a nível europeu, para começar. De 1990 à 1992, com efeito, instaurou-se uma total liberdade de circulação de capitais entre os doze membros da União Européia, e entre estes e o resto do mundo. Toda medida fiscal isolada levaria, no ato, a uma fuga de capitais. Os próprios fundamentos do Ato Único Europeu, portanto, são contraditórios com uma nova visão da questão do trabalho.
O Tratado de Maastricht, na medida em que determina “o respeito de uma economia de mercado aberta onde a concorrência é livre” e a assinatura do acordo do GATT, seguida da criação da Organização Mundial do Comércio, em 1995, agravam o problema: como poderíamos colocar em concorrência países praticando a semana de 32 horas com outros onde se trabalha duas vezes mais, para ganhar dez ou vinte vezes menos?
É conveniente voltar à carga para a introdução de cláusulas sociais e ecológicas para a regulamentação do comércio internacional. Isso quer dizer que voltaremos ao protecionismo clássico? Certamente não, mas é preciso aceitar o livre comércio “puro” somente dentro dos blocos regionais, com participantes sociais e econômicos comparáveis; praticar uma solidariedade diferenciada de bloco a bloco.
Bernard Cassen é jornalista, ex-diretor geral de Le Monde Diplomatique e presidente de honra da Atacc França.