Porque a cultura da autenticidade favorece o bolsonarismo
O recado das urnas é simples: esse fenômeno massificador que autoriza a prática do mal desde que ele venha do coração veio para ficar. Sua lógica sugere que o mal autêntico é o bem porque o bem é a sinceridade
Jair Bolsonaro é um case de sucesso do marketing ancorado na autenticidade. A consolidação do apoio obtido, independente do resultado das eleições, é reveladora e preocupante. Expõe tanto a devassidão do ambiente civilizacional brasileiro como o potencial encantador e destrutivo da cultura da autenticidade. Mesmo quando, paradoxalmente, mero discurso pré-fabricado para atrair interesse (como todo marketing), a busca pelo caráter autêntico está presente, como um antídoto contra a vigilância do politicamente correto ou simplesmente da razoabilidade.
Afinal, a cartilha romântica atualizada pelo capitalismo criativo pede que o alien seja liberado. Os empreendedores têm o seu método. Estão convencidos de trazê-lo à tona se conseguirem criar produtos e serviços que façam reluzir sua interioridade. Os cozinheiros transformando a comida em arte aspiram o mesmo; assim como os influenciadores e produtores de conteúdo digital explorando qualquer aspecto de suas vidas para atrair seguidores. Todos compartilham a crença de que a interioridade é uma commodity cuja função é adicionar sentido ao produto. Afinal, quanto mais sentido melhor. Essa atribuição de sentido através do uso despudorado do que se considera o eu-interior é muitas vezes entendida como um sacrifício e frequentemente gera ressentimento nos hospedeiros de si mesmo. “O empresário sofre neste país”, muitos dirão.

Bolsonaro é fruto dessa cultura, cuja mídia ajudou a florescer no cenário político por meio de programas como CQC e Pânico na TV. O resultado daquelas entrevistas autênticas que geravam gargalhadas pelo absurdo ajudou a moldar a subcultura do bolsonarismo. O recado das urnas é simples: esse fenômeno massificador que autoriza a prática do mal desde que ele venha do coração veio para ficar. Sua lógica sugere que o mal autêntico é o bem porque o bem é a sinceridade. Ele surge espontâneo, de mãos dadas com os sentimentos de desprezo pelos pobres, negros, homossexuais e mulheres que uma sociedade como a brasileira insiste em cultivar desde sua concepção. Deus, pátria e família. Nada mais autêntico do que deixar aquilo que somos emergir livremente, romper a barreira da pele, como no nascimento da criatura de aspecto fálico do filme Alien, o 8º Passageiro.
Uma sociedade com sua própria verdade, a pós-verdade, é aquela que deseja igualar os conceitos de autenticidade e sinceridade, embora isso não seja possível. Perceber essa distinção é importante para compreender a cultura da autenticidade no bolsonarismo. O crítico norte-americano Lionel Trilling já havia escrito sobre isso nos anos 1970. Em sinceridade e autenticidade ele argumenta que a ideia do self verdadeiro sustentada pelo ideal de sinceridade é muito diferente da noção contemporânea de autenticidade. A sinceridade é uma virtude essencialmente social e não pessoal. Seu objetivo é evitar a falsidade para com os outros em virtude da fidelidade a si mesmo. Ela refere-se ao self em sua manifestação social, e, portanto, pode ser testada através da correspondência entre as condutas de uma pessoa e suas declarações públicas.
Trilling defende que no passado o ideal moral de sinceridade e autenticidade compartilhavam características comuns, mas se separaram com o avanço da modernidade. Durante o século XVI, a taxa crescente de mobilidade social na Inglaterra e França propiciou às pessoas ascenderem socialmente e a astúcia passou a ser vista como uma ferramenta importante para chegar mais próximo das esferas de poder e tomar proveito disso. A sinceridade, por sua vez, passou a ser relacionada com a falta de aptidão para interagir com o afetado cortesão europeu. Nesse contexto, a pessoa sincera era identificada com a falta de sofisticação e ingenuidade. A dissimulação do “malandro europeu” ganhou terreno no avanço da modernidade com a consolidação da esfera pública e viu-se envolto na censura sobre sua duplicidade de caráter. Com o tempo, essa institucionalização da astúcia faz surgir uma crescente valorização em direção à honestidade. Acontece que sua velha forma representada pela sinceridade já não é mais possível tendo em vista seu caráter social contrastante com o individualismo moderno.
De fato, existe hoje um choque entre sinceridade e autenticidade. A pessoa sincera que procura corresponder às exigências de sua posição na vida social é hoje quase automaticamente considerada inautêntica. Bolsonaro é uma prova disso porque representa o extremo de reversão conceitual e moral. O uso deliberado de fake news e o despudor de mentir escancara um cenário onde ser fiel a si mesmo deixou de ser um simples meio para um fim moral mais elevado, sendo agora um fim em si mesmo. A cultura da autenticidade tem esse potencial de relativizar a verdade porque cada um tem a sua, e, se antes isso era visto como uma alegoria da singularidade, hoje abre espaço para todos tipos de fanáticos ressentidos, que contestam os aspectos mais sólidos da ciência e atacam a democracia.
Quando perseguido de maneira exacerbada, e em detrimento de outros ideais que servem para orientar a ação humana, o sujeito autêntico assume com frequência uma personalidade propensa ao relativismo moral. Ele está mais preocupado em criar uma estética reconhecida como autêntica do que com o impacto do conteúdo irradiado. A autenticidade sempre foi um ideal importante e todos nós de algum modo atendemos ao seu chamado. No entanto, torná-la o principal guia para a vida em comunidade é uma ameaça à integração de seus membros. Já que não estamos em posição de exigir muito, poderíamos pelo menos voltar à época em que a elite brasileira dissimulava seu caráter exploratório, racista e violento em prol de alguma dose de sossego ou ilusão.
Fábio Guimarães Liberal é jornalista e doutor em Sociologia pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB).