Precisamos falar sobre o Ministério das Comunicações
Pasta responsável pelas políticas de radiodifusão e telecomunicações deve ser acompanhada pela sociedade civil e pautada na agenda midiática
Alguns aniversários são menos para comemorar e mais para nos fazer recordar da existência do homenageado. Foi assim com o dia 25 de fevereiro, data que marca o 58º aniversário do Ministério das Comunicações. Mas a ausência de celebração, vale frisar, não tem a ver com uma possível falta de importância deste órgão. Ao contrário, é este Ministério que, conforme consta em seu site, tem como responsabilidade “as políticas nacionais de radiodifusão, de telecomunicações e os serviços postais”.
Outro indicador da sua relevância é o orçamento: o montante previsto para a pasta em 2025 – pouco mais de R$ 2 bilhões – é maior do que a soma de todo o recurso destinado para os Ministérios do Esporte, dos Direitos Humanos e Cidadania, das Mulheres, da Igualdade Racial e da Pesca e Aquicultura. Portanto, importância há.
E por que não se fala tanto do Ministério das Comunicações? Uma resposta possível está no próprio objeto de atuação do Ministério: as tais “políticas nacionais de radiodifusão e telecomunicações” foram construídas, ao longo da história, de modo apartado da sociedade. Enquanto isso, empresários de radiodifusão e telecomunicações, seus familiares e aliados políticos sempre estiveram por perto do Ministério. Aliás, alguns até viraram Ministro, como é o caso de José Juscelino dos Santos Rezende Filho, que tomou posse em 01 de janeiro de 2023 e segue no cargo.
Ainda que o seu currículo no site do Ministério das Comunicações o identifique como “médico, especializado em radiologia, e deputado federal reeleito pelo estado do Maranhão, em 2022, para seu 3º mandato”, Juscelino Filho é de uma família com expressiva influência nos meios de comunicação no Maranhão e tem também relações estreitas com proprietários de rádio e televisão. Além disso, o seu partido, União Brasil, foi o que mais abrigou candidaturas de proprietários de rádio e televisão nas eleições de 2022, de acordo com monitoramento realizado pelo Intervozes.
Por este motivo, Ana Mielke, coordenadora-executiva da entidade, avalia como “um disparate completo” a presença de Juscelino como Ministro das Comunicações. Mas ela também enfatiza que “infelizmente, não é novidade dentro dos governos do PT”. Para sustentar a afirmação, Mielke lembra que, durante o primeiro mandato presidencial de Lula, um dos ministros da pasta foi Hélio Costa, um conhecido radiodifusor.
“O motivo teria sido parecido com o atual: acomodar forças políticas da base aliada, sendo Costa, à época, do PMDB. No momento atual, no entanto, o caso parece mais grave porque aponta para uma total falta de compromisso do governo com a agenda da democratização da comunicação, aparentemente soterrada por alguns grupos da esquerda, mesmo depois da evidente e relevante participação de grupos de mídia no golpe de 2016”, frisa a integrante do Intervozes.

Sempre foi pela família… e pelos amigos
O entendimento de Ana Mielke é partilhada por Janaine Aires e Suzy dos Santos. Nas palavras de Aires, que é professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, a presença de Juscelino como Ministro “reforça o compromisso do Governo Federal com interesses privados que enfraquecem as políticas de comunicação brasileiras e com a manutenção de uma tradição patrimonialista que domina o campo há décadas”.
Suzy dos Santos, docente da Universidade Federal do Rio de Janeiro, também utiliza o termo “tradição” para explicar a “captura regulatória nas comunicações” no Brasil. Para ela, “ao entregar a gestão de um setor tão crucial para a estrutura democrática de um país aos donos de meios, os governos abrem mão da função estatal de garantia e promoção da soberania popular que legitima o Estado Democrático de Direito”.
Essa tradição a que se referem as professoras foi analisada por elas no livro Sempre foi pela família, publicado em 2017. Na obra, as autoras demonstram, por exemplo, como a distribuição das concessões de emissoras de rádio e TV foi, em diferentes momentos históricos, permeada pelas relações de clientelismo, mandonismo e compadrio.
Não seria um cristalino exemplo disto o fato de, segundo reportagem do jornal Estado de São Paulo, Juscelino Filho ter favorecido com 31 retransmissoras da TV Difusora, no Maranhão, um empresário do seu núcleo político? E o fato de, também de acordo com a reportagem, o responsável dentro do Ministério pela análise e concessão dos pedidos ser ex-sócio do dono da TV?
Para a professora Janaine Aires, que é também Líder do EPA! – Grupo de Pesquisa em Economia Política do Audiovisual, uma das consequências desta história – que permanece atual – é “o aprofundamento de desigualdades no acesso à informação e na diversidade de vozes no debate público, comprometendo o direito à comunicação e a democracia”.
Vozes silenciadas, imagens apagadas
Uma das potenciais “vozes” citadas por Aires é o segmento das rádios comunitárias. Pesquisador do tema, o professor Adilson Cabral, da Universidade Federal Fluminense (UFF), diz que “os avanços esperados e possíveis não foram conquistados nem mesmo implementados, e as saídas ensaiadas dentro das possibilidades ao alcance são significativamente restritas”.
Ao autorizar o funcionamento de três rádios comunitárias, no último 18 de fevereiro, Juscelino Filho declarou que “uma das prioridades” da sua gestão “é fortalecer o serviço de radiodifusão comunitária, para promover a participação social e levar cultura e entretenimento para todos os brasileiros”.
Esta priorização apontada pelo Ministro pode ser contestada pela seguinte afirmação de Adilson Cabral: “sim, há expansão das rádios comunitárias no país, mas num contexto que segue restritivo em relação a alcance e potência, bem como descomprometido em termos de sustentabilidade. A Portaria da Secom que incentiva ações ministeriais para patrocínio governamental foi apenas implementada pelo Ministério da Cultura e se traduz em menos de 1% da verba orçamentária destinada à publicidade governamental, quando poderíamos ter um norte de construção política de um terço da verba governamental, como trabalham países latino-americanos vizinhos”.
O professor e pesquisador lembra ainda que “a política do Canal da Cidadania, com suas potenciais faixas de programação destinadas às organizações comunitárias locais, simplesmente se estagnou no Ministério das Comunicações e nem temos mais acesso às demandas das Prefeituras pela implementação de futuros Canais da Cidadania em seus municípios”.
Outra política que parece esquecida pelo Ministério é o Programa Computadores pela Inclusão, é o que acredita Ana Mielke, do Intervozes. “O programa doa computadores recondicionados para promover a inclusão digital. Talvez o smartphone das crianças e adolescentes atendidas tenha mais capacidade de processamento do que isso”, adverte, Mielke.
Ela lembra ainda outro fato, no mínimo, curioso: a montagem feita pelo Ministério das Comunicações, em que a imagem de Rebeca Andrade no pódio olímpico foi apagada e substituída pela de um notebook do referido programa.
Uma outra camada do silenciamento de vozes na projeção de uma comunicação democrática é a definição de políticas sem a participação social. Como exemplo, Ana Mielke cita o Programa TV 3.0, “que pretende criar um novo padrão de conectividade com as TVs nos lares brasileiros, mas que vem sendo desenvolvido ao largo do debate público junto a organizações da sociedade civil, e conta apenas com o diálogo permanente com os grupos hegemônicos de mídia, representados pela Abert (Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão), em especial”.
O cenário de dificuldades para as iniciativas com potencial democratizador não é sentido pelas empresas de radiodifusão. Ao contrário, uma das principais medidas da gestão atual do Ministério – a Lei 14.812/2024 – foi justamente para beneficiar os já historicamente beneficiados. Em resumo, a lei amplia o número máximo de estações de rádio e televisão que cada entidade pode operar. Ou seja, aumenta os limites de concessões de rádio e TV por grupo econômico ou empresa. No caso das rádios, de 6 para 20 (independente da modalidade de frequência). Já as emissoras de televisão, de 10 para 20.
Prioridades
Na perspectiva de uma atuação que possa avançar na afirmação da Comunicação como um direito humano, integrantes de organizações da sociedade civil, professoras(es) e pesquisadoras(es) elencam um conjunto de prioridades para a agenda do Ministério das Comunicações.
Para Ramênia Vieira, da coordenação-executiva do Intervozes, duas questões são fundamentais: uma política sólida de universalização do direito à internet e o incentivo à criação e fortalecimento das rádios comunitárias.
Sobre a internet, ela destaca que “é muito importante ter uma estrutura que garanta internet pública em todo o território nacional. É uma questão de soberania. Não é ter várias empresas ofertando internet, mas uma estrutura pública que dê conta de viabilizar conexão à internet em locais onde hoje ou o acesso é muito caro ou nem existe efetivamente”.
Em relação às rádios comunitárias, Vieira defende “uma maior transparência em relação às autorizações, uma maior abertura para que essas autorizações atendam comunidades que realmente precisam, que estão situadas em desertos de notícias, e também uma política pública que fomente a criação de rádios comunitárias, o que passa por um processo de formação, de orientações sobre como criar, de como fazer e de como estruturar as rádios”.
Numa direção semelhante, Janaine Aires, professora da UFRN, entende que a prioridade do Ministério das Comunicações deve estar assentada em medidas de consolidação do acesso à informação e do papel das comunicações para a soberania. “É importante fortalecer a radiodifusão pública e comunitária no que se refere ao alcance e ao financiamento, mesmo reconhecendo que seus efeitos são de longo prazo. É fundamental promover uma maior articulação entre as políticas de regulação das plataformas digitais e a radiodifusão brasileira. Há significativa disparidade entre plataformas digitais e empresas nacionais de comunicação que já comprometem nossos negócios de mídia e podem se acentuar ainda mais. No entanto, estas políticas devem ser pensadas para além de uma mera proteção às empresas de comunicação já dominantes”, assinala.
Já Suzy dos Santos, da UFRJ, propõe três prioridades que têm a ver diretamente com o cumprimento da Constituição Federal brasileira e com as atribuições legais do Ministério: “uma política nacional de comunicações que observe a totalidade do setor, em particular telecomunicações e comunicação de massa, e as distintas camadas dos serviços – estrutura, acesso, conteúdo e responsabilidades sociais; promoção e garantia da universalização do acesso às comunicações – internet, serviço postal e radiodifusão – qualificada em todo o território nacional; e promoção e garantia da pluralidade de conteúdos no território nacional”.
De modo complementar, Adilson Cabral, que coordena o Centro de Pesquisa e Produção em Comunicação e Emergência (EMERGE), acredita ser essencial a definição de novas políticas democratizadoras combinadas com a retomada de experiências promovidas em outros mandatos. Neste sentido ele indica: “articular políticas de Comunicação Comunitária e Pública dentro de uma perspectiva de Educação Midiática, política compreendida como estratégica pelo governo, ao menos na Secretaria de Comunicação; fomentar incentivos a programações de qualidade e diversidade cultural e regional em torno de iniciativas como as futuras TV 3.0 e Tela Brasil, envolvendo a Rede Nacional de Comunicação Pública, incluindo universidades e produtores independentes; promover políticas de incentivos a provedores comunitários e locais de acesso à internet banda larga, vinculados a iniciativas de rádios e TV’s comunitárias, numa espécie de revitalização dos Pontos de Mídia Livre, editados pelo Ministério da Cultura no governo Lula 2”.
Paulo Victor Melo é jornalista, professor e pesquisador de Políticas de Comunicação. Integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.