Precisamos parar de ouvir Henry Kissinger
A ideia de que precisamos entender identidades como processos históricos em vez de constantes essenciais de cada grupo social já não é considerada radical na disciplina de Relações Internacionais há algum tempo
Henry Kissinger é um dos responsáveis por moldar o que entendemos hoje como geopolítica. Sua influência sobre a política externa estadunidense certamente não se limita aos períodos em que serviu como secretário de Estado, ou Conselheiro de Segurança Nacional. Seu legado inclui formas de se pensar a política internacional que continuam influenciando a geopolítica contemporânea. Por tal motivo, o Financial Times fez uma entrevista recente com ele, indagando sobre os recentes escândalos da diplomacia norte-americana, como a fala de Donald Trump no encontro com Vladimir Putin em Helsinque. Kissinger compartilha ali a visão de que “estamos em um período muito, muito grave”. Mas ao considerar as razões que ele dá para tanto, nos resta a impressão de que sua realpolitik está mais próxima do problema do que da solução.
O “problema central de nosso tempo” diz respeito às “ideias sobre a ordem mundial”. Kissinger usa essa frase ao descrever sua relação com Zbigniew Brzezinski, outra das grandes mentes da diplomacia estadunidense. O ex-secretário de Estado se refere ao tempo em que ocupava posição de destaque na Casa Branca, e lamenta que o debate sobre o tema pareça esvaziado hoje. Na entrevista, a questão relativa à ordem mundial aparece através de algumas preocupações que ele demonstra. Duas delas são particularmente relevantes: Rússia e China.
Quando perguntado diretamente sobre o recente encontro de Helsinque, Kissinger disserta sobre a identidade russa, que serve de elemento central para sua explicação do comportamento geopolítico daquele país. Ele apela a traços como uma “resistência ao sofrimento”, para estabelecer uma conexão entre Putin e Dostoyevsky, para explicar a anexação da Criméia, para entender o comportamento agressivo demonstrado no Oriente Médio, e para justificar o envolvimento russo nas eleições nos Estados Unidos. O elo que une o argumento essencialista à agressividade geopolítica é o fato de que as estruturas políticas que surgem nessa sociedade se tornam “algo muito diferente de uma entidade vestfaliana”. Em outras palavras, o raciocínio é: a Rússia é uma ameaça à ordem mundial porque ela não adere às normas da sociedade ocidental (como as estabelecidas no Tratado de Vestfália, em 1648), e não o faz por ser o que é, por causa de condições e características peculiares ao “espírito russo”. O perigo de uma contestação de normas tão caras à sociedade ocidental por parte de uma Rússia forte é a redução da Europa a um mero “apêndice da Eurásia”, possibilitando um vácuo de poder global que pode ser ocupado pela China e sua eterna ambição de “Reino do Meio”.
No mundo de Kissinger, o contraponto necessário a tal ameaça é uma aliança do ocidente, liderada pelos Estados Unidos. Esse seria o papel da Otan, que, na sua avaliação, cometeu o grave erro de acreditar que a Rússia poderia se afiliar ao clube ocidental de nações civilizadas. No entanto, o erro de seus dirigentes – de acordo com Kissinger – foi justamente o de se esquecer que a identidade autoritária sempre desviaria a Rússia de normas vestfalianas.
Tal narrativa se baseia em um entendimento estreito de geopolítica. Trata-se da ideia de grandes potências disputando territórios e recursos estratégicos para assegurar sua parcela de controle sobre o mundo. Seu motor central são as identidades fixas dos principais personagens na arena da política internacional – como os russos autoritários, que se tornam inimigos do ocidente democrático e ordeiro.
Contudo, a ideia de que precisamos entender identidades como processos históricos ao invés de constantes essenciais de cada grupo social já não é considerada radical na disciplina de Relações Internacionais há algum tempo. O que a análise de Kissinger faz é tratar a evolução histórica para a modernidade (através da adoção de formas democráticas, constitucionais e do desenvolvimento de cooperação diplomática) como um privilégio do ocidente, relegando sociedades como Rússia e China ao status de constantes, uma espécie de ceteris paribus da sociologia histórica. Ao estendermos a tais sociedades o privilégio analítico ocidental, as analisando como parte de trajetórias de desenvolvimento histórico que lhes são peculiares, nos deparamos com a necessidade de vincular personagens como Vladimir Putin a partes específicas de tais trajetórias. Ironicamente, no caso de Putin, é justamente a Guerra Fria – para a qual o próprio Kissinger contribuiu de maneira importante – que se faz necessária para entender os arranjos políticos que permitem sua presidência e estabelece sua visão da política internacional. Portanto, em vez de recorrer à mitologia do autoritarismo russo, é importante recorrer à história para entender o comportamento geopolítico da Rússia de Putin.
Na verdade, esse é justamente o problema com a maior parte da narrativa de Kissinger: a história é convenientemente substituída por mitologia em pontos cruciais. De maneira similar, a China é tratada como enigmática e misteriosa, sempre aguardando pelo momento certo para permitir que seu plano imperial milenar possa avançar. Ao mesmo tempo, ao ocidente é conferida uma suposta superioridade, pautada pelo desenvolvimento histórico da ordem vestfaliana e de valores democráticos. O perigo para o qual Kissinger alerta é justamente o de colocarmos muitas esperanças em tais valores, esquecendo que outras culturas são incapazes de se adaptarem plenamente a eles.
Nada disso significa que eleições democráticas não são dignas de proteção, ou que o expansionismo militar pode ser tolerado. Neste caso, o problema com o raciocínio de Kissinger não está exatamente em suas conclusões, mas em suas justificativas. Devemos estar atentos a qualquer intervenção em procedimentos eleitorais por potências estrangeiras porque a democracia é em si um valor a ser protegido, mas isso não diz nada a respeito de supostas atribuições geopolíticas da Rússia ou dos Estados Unidos. As Ciências Sociais, especialmente a disciplina de Relações Internacionais, evoluiu de maneira significativa desde os tempos de Kissinger. E agora que podemos entender os padrões que regem seu pensamento sobre política externa, podemos parar de repeti-los.
*Pedro Salgado é pesquisador-assistente de Relações Internacionais na Escola de Estudos Globais da Universidade de Sussex.