Presidencialismo monárquico com seu ar da graça
Parece que a recente concessão de graça ao deputado Daniel Silveira pelo presidente Jair Bolsonaro fez emergir um panorama talvez nunca visto na história recente do Brasil, considerando o “ineditismo” político-jurídico capaz de inaugurar mais um capítulo turbulento na convivência harmônica dos Poderes
Nos Estado Unidos da América, após a renúncia do presidente Richard Nixon, ocasionada pelos escândalos do Watergate, o seu sucessor, presidente Gerald Ford, o concedeu total, livre e absoluto perdão presidencial. Dentre as justificativas do perdão, Ford ressaltou que um processo contra o ex-presidente “iria causar um debate prolongado e polêmico sobre a necessidade de submeter a outro tipo de punição e degradação um homem que já havia pago uma penalidade sem precedentes ao renunciar o mais alto posto eletivo dos Estados Unidos”[1].
Há alguns dias o presidente Jair Bolsonaro concedeu medida similar ao deputado federal Daniel Silveira (PTB-RJ), que foi condenado pelo Supremo Tribunal Federal a oito anos e nove meses de reclusão, em regime inicial fechado, por crimes de ameaça ao Estado Democrático de Direito e coação no curso do processo.
Naturalmente existem algumas diferenças entre o sistema brasileiro e norte-americano quanto ao perdão, entretanto, o que há em comum ao instituto é sua indiscutível polêmica. O desconforto com esse tipo de medida foi tão elevado quando da celebração da Lei Fundamental Estadunidense, que alguns constituintes se opuseram em contemplar o instituto na Constituição em função do seu caráter aberto do poder presidencial.
Tribe, renomado constitucionalista norte-americano, ressalta que entre as razões dadas por George Mason com recusa à assinatura da Constituição, estava a idiossincrasia de o Presidente da República “conceder perdões até mesmo para aqueles que ele próprio, Presidente, secretamente tenha instigado a cometer crimes e, dessa forma (com o perdão), prevenir a descoberta da sua própria culpa”[2].
As peculiaridades da concessão do perdão são relevantes na dinâmica atual e, apesar de alguns estudos doutrinários, parece-nos que a recente concessão de graça ao deputado Daniel Silveira pelo presidente Jair Bolsonaro fez emergir um panorama talvez nunca visto na história recente do Brasil, considerando o “ineditismo” político-jurídico capaz de inaugurar mais um capítulo turbulento na convivência harmônica dos Poderes.
É preciso compreender o teor polêmico do uso do instituto, eis que ao Poder Judiciário, por exemplo, não é possível presidir um processo em que estejam presentes situações de suspeição – indicativos de favorecimento. No entanto, nada impede, aprioristicamente, sob a perspectiva do perdão/indulto/graça, que o Presidente conceda tal benefício ao seu mais íntimo amigo e colaborador.
Eventos de favorecimento já foram vistos em momentos históricos nos Estados Unidos, quando George Bush concedeu perdão ao seu Secretário de Defesa Casper Weinberger, que estava sendo processado sobre temáticas que inclusive poderiam incriminar o Presidente (caso “irã-contras”). O presidente Donald Trump também utilizou esse mecanismo constitucional, concedendo, horas antes de deixar o cargo, indulto presidencial ao ex-aliado Steve Bannon, segundo lista divulgada pela Casa Branca.
A discricionariedade como característica típica do indulto individual acarreta em eventos como os referenciados, bem como avaliza o teor do Decreto de 21 de abril de 2022, que exterioriza na motivação do ato expressões vagas e abstratas, como: “é medida fundamental à manutenção do Estado Democrático de Direito”; “destinada à manutenção do mecanismo tradicional de freios e contrapesos na tripartição de poderes”; “decorre de juízo íntegro baseado necessariamente nas hipóteses legais, políticas e moralmente cabíveis”; “foi confiada democraticamente a missão de zelar pelo interesse público”; “sociedade encontra-se em legítima comoção”.
Apesar da vagueza dos “considerandos’” do Decreto, é bem verdade que o Supremo Tribunal Federal tem prestado deferência à densidade política do ato de concessão de indultos, afirmando-se que cabe ao “Poder Judiciário analisar somente a constitucionalidade da concessão da clementia principis, e não o mérito, que deve ser entendido como juízo de conveniência e oportunidade do Presidente da República, que poderá, entre as hipóteses legais e moralmente admissíveis, escolher aquela que entender como a melhor para o interesse público no âmbito da Justiça Criminal.” (ADI 5.874, rel. p/ o ac. min. Alexandre de Moraes, j. 9-5-2019, P, DJE de 5-11-2020.)
Entende-se, assim, que “o decreto presidencial que concede o indulto configura ato de governo, caracterizado pela ampla discricionariedade”[3].
Ao se promover uma interpretação histórica (originalista), a partir dos debates da Constituinte de 1988, o presidente Ulysses Guimarães ressaltou que a graça “é a atribuição que se dá, realmente, ao Executivo, de suprimir, eliminar penas ou castigos. Aqui está certo, se faz referência só à graça, que é a atribuição antiga, que os reis tinham”[4].
O ato de clemência – sobretudo quando direcionado a indivíduo próximo ao governante – é assunto jurídico afeito aos regimes monárquicos. Souto expõe que “a semelhança entre o ato presidencial que concede o perdão e os atos da monarquia não parlamentarista reside em que ambos não se sujeitam ao controle judicial ou à fiscalização do Poder Legislativo. Esgota-se aí a semelhança”[5].
Essa perspectiva se aproxima da denominada teoria do Executivo Unitário, que a partir do artigo 2 da Constituição dos Estados Unidos, confere ao Presidente a última palavra no que concerne às atribuições do poder Executivo – que evidentemente não é majoritária. Nesse campo, então, suas ações seriam todas legais por definição.
Indiscutivelmente a concessão do perdão está envolta às atribuições privativas do Chefe do Executivo (Art. 84, XII CF/88), que apesar de ser uma Constituição de certa forma moderna, não se atentou à manutenção do mosaico imperial típico de privilégios de um sultão (aos amigos os privilégios das leis, aos inimigos seus rigores).
Apesar dos clamores contrários a utilização do indulto individual ao caso Daniel Silveira, considerando o evidente favorecimento ao agraciado e possíveis violações aos princípios constitucionais republicanos, as medidas jurídicas que podem ser efetivamente implementadas contra o ato presidencial são limitadas.
Não obstante, diferentemente da monarquia, o Presidente da República pode ser punido por crime de responsabilidade – com a mesma densidade política -, ou nas urnas acaso tenha cometido abuso na concessão do perdão. Este último, notadamente, só poderá ser viável nos casos de reeleição, “como ocorreu com o próprio Gerald Ford, que não conseguiu se reeleger, diante da enorme reação negativa da sociedade ianque ao perdão concedido a Richard Nixon”[6].
Vê-se, portanto, que o indulto individual deu seu ar da graça, levando a comunidade jurídica a visualizar o instituto executado concretamente, com todas as suas nuances de presidencialismo monárquico, que pela densidade política e ampla discricionariedade conferida à espécie de um Executivo Unitário, merece tratamento legislativo constitucional extintivo, ou, pelos menos de adequação à responsividade, sob pena de erodir a consciência constitucional edificada pelos vetores axiológicos tão caros à democracia ocidental.
Herick Feijó Mendes é advogado, mestrando em Segurança Pública, Cidadania e Direitos Humanos.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição (1988). Constituição [da] República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal.
BRASIL. Anais do Plenário da Assembleia Constituinte 1988.
SOUTO, João Carlos. Suprema Corte dos Estados Unidos: principais decisões – 3. ed. – São Paulo: Atlas, 2019.
[1] SOUTO, 2019. p. 259
[2] TRIBE citado por SOUTO, 2019, p. 257
[3] HC 90.364, rel. min. Ricardo Lewandowski, j. 31-10-2007, P, DJ de 30-11-2007.
[4] Atas de Plenário, 1988 – 01/08 a 22/08, p. 163
[5] 2019, p. 258
[6] 2019, p. 258