Pressão pela força
Resultado de investimento permanente nas forças armadas, o Brasil possui hoje o maior contingente militar de toda a América do Sul. No final de 2008, o país demonstrou seu poderio em um treinamento realizado na fronteira com o Paraguai, que serviu para atemorizar o governo Lugo
Estamos pedindo justiça aos nossos vizinhos e a reparação dos danos sofridos para podermos atender aos pobres mais pobres de nosso país”1, afirmou, com ênfase, Fernando Lugo, poucos dias antes de assumir a presidência do Paraguai. A eleição deste ex-bispo católico é símbolo de um processo histórico que se reflete no remanejamento do Partido Colorado do governo depois de mais de 60 anos.
A queda da ditadura de Alfredo Stroessner, em 1989, trouxe a democracia para o Paraguai. Dois anos depois, a assinatura do Tratado de Assunção, que criou o Mercosul (Mercado Comum do Sul), abriu caminho para a integração regional. Ao longo dos últimos 20 anos, o Paraguai se envolveu na construção de uma gama de instituições regionais, como a recente Unasul (União das Nações Sul-Americanas)2, que buscam afiançar a independência política da região em relação aos Estados Unidos. Paradoxalmente, o jogo de forças se reproduz dentro do âmbito regional, com práticas abusivas por parte dos países mais poderosos, como é o caso do vizinho brasileiro.
A emergência do Brasil como potência regional faz-se evidente por seu poderio militar: o país possui mais de 54% do total de militares na América do Sul. Com efeito, enquanto na década de 1990 a democratização levava a maioria dos países a reduzir suas forças armadas, o Brasil foi um dos poucos Estados que incrementou seu contingente e ampliou e modernizou seus equipamentos.3 Com a aplicação da Lei 11.631, promulgada em dezembro de 2007, que cria o Sistema Nacional de Mobilização (Sinamob)4, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva consolidou uma ambiciosa estrutura de defesa, capaz de atuar diante de uma eventual agressão militar estrangeira e proteger os interesses brasileiros e de seus cidadãos no exterior, amenizando também a sensação de abandono dos militares após a ditadura.5
Nesse contexto, entre os dias 13 e 24 de outubro de 2008, o Brasil implantou, ao longo de sua fronteira com o Paraguai, a operação militar “Fronteira Sul II”, demonstrando que está em condições de responder a qualquer ofensiva que possa ameaçar seus interesses e os de seus cidadãos. Durante um exercício, os militares brasileiros realizaram manobras com munições reais e treinaram um eventual resgate de reféns, assim como a ocupação de usinas hidrelétricas. Essas manobras incitaram a reação imediata da administração Lugo, que as considerou “uma provocação”, principalmente devido às declarações do comandante da operação, general José Elito Carvalho Siqueira à revista Defensanet. O militar assinalou que, se Lula ordenasse, ocuparia a represa binacional Itaipu. Disse também que a Operação Fronteira Sul II era uma mensagem ao governo de Lugo, uma amostra de que “os brasileiros estão atentos à situação enfrentada pelos ‘brasiguaios’, que sofrem com as invasões de terra e com as ameaças de perder suas propriedades legalmente adquiridas”6.
Em resposta, Lugo advertiu que “nenhum milímetro do território [paraguaio], nem a cultura, nem a soberania, podem ser ameaçados”. E completou: “Caso isto venha a ocorrer, a reação paraguaia não se fará esperar”. De sua parte, o ministro da Defesa paraguaio, Luis Bareiro Spaini, instou o governo brasileiro para que, no futuro, decisões desse tipo fossem tomadas no “âmbito de diálogos multilaterais para uma efetiva integração regional, ampla e participativa”, ressaltando que essas operações constituem uma provocação hostil.
Para o analista político paraguaio Víctor Barone, “o interesse brasileiro é geopolítico, levando em conta que muitos de seus cidadãos e investimentos estão no Paraguai”. Com efeito, a presença do capital brasileiro no Paraguai é cada dia mais importante e envolve desde o agronegócio, a distribuição de combustíveis (a Petrobras possui quase 45% do volume total do mercado), o setor financeiro (o Interbanco, filial do Unibanco, é o maior banco varejista), a carne (60% dos frigoríficos têm participação do capital brasileiro) até outras esferas menores no ramo da prestação de serviços, como por exemplo, o transporte aéreo.7 Mas o Brasil justifica suas operações e declarações diplomáticas e militares assinalando que compartilha com o Paraguai uma fronteira de muita capilaridade – 1.300 quilômetros – na qual deve combater tráficos de todo tipo, “desde o contrabando até a captura de animais selvagens e madeiras raras. Essas atividades levantam um grave problema de segurança, criado pela própria região fronteiriça, em especial na Tríplice Fronteira. A insuficiência de controle aéreo do território e a quase ausência do Estado em certas áreas – particularmente nos departamentos de Amambay, Salto del Guairá, San Pedro e Alto Paraná – permitem o desenvolvimento de comércio ilegal relacionado com o mercado internacional da droga”8 e armas.
As ilegalidades motivam constantes incursões de militares e policiais brasileiros no território paraguaio, com o pretexto de perseguir delinquentes além de sua fronteira. Isso ocorre, sobretudo, na extensão de 400 quilômetros de divisa direta, sem rios, que ambos os países compartilham. No entanto, é impossível não notar que a operação Fronteira Sul II se desenvolveu no mês da realização da VIII Conferência de Ministros de Defesa das Américas, em Banff, Canadá, a qual, em sua declaração9, manifesta a importância de fortalecer medidas destinadas a fomentar a confiança e a segurança entre os Estados membros.
Protestos
As demonstrações de força brasileiras ocorrem num momento de recrudescimento dos questionamentos sobre a distribuição da energia produzida por Itaipu, e de protestos dos camponeses paraguaios contra os produtores agrícolas brasileiros que vivem naquele país, chamados de “brasiguaios”. Desde a posse de Lugo, o debate sobre a postergada reforma agrária e a renegociação do Tratado de Itaipu – principais promessas eleitorais do novo presidente – se intensificou. Num misto de pressão e apoio ao programa de Lugo, os movimentos camponeses paraguaios iniciaram ocupações e acampamentos em frente aos grandes latifúndios, muitos deles de colonos brasileiros. Em maio de 2008, durante um ato pelo festejo do Dia da Independência Nacional, um desses grupos de camponeses queimou uma bandeira brasileira em San Pedro, para demonstrar seu repúdio à expansão da monocultura de soja capitaneada pelos produtores do país vizinho. Os manifestantes consideram que esse expansionismo provoca a expulsão de camponeses paraguaios para os cintur&oti
lde;es de pobreza das cidades. Diante desses acontecimentos, o chanceler brasileiro Celso Amorim pediu ao governo do Paraguai que controlasse os “excessos” contra os “brasiguaios”.10
Uma semana antes da mobilização das tropas brasileiras na fronteira, Lugo proibiu a venda de terras cultiváveis a estrangeiros – segundo estudo da organização não governamental BaseIS, 70% das terras agrícolas paraguaias estão atualmente em mãos de proprietários estrangeiros. O presidente paraguaio anunciou ainda que o Instituto de Desenvolvimento Rural e da Terra (Indert) do país detectara que milhares de hectares de terras, atualmente nas mãos de produtores brasileiros11,eram na verdade estatais, e haviam sido vendidos ilegalmente por funcionários da própria instituição e por militares na época de Strossner.
Calcula-se que haja atualmente no Paraguai em torno de meio milhão de “brasiguaios”, quase 10% da população do país. Na prática, isso se reflete em cidades com maioria brasileira que desenvolve sua própria vida cultural, organiza suas plantações, sua comercialização e realiza programas educativos específicos12 – situação que gera conflitos culturais e choque direto de interesses com os camponeses nativos.
Mas a relação entre os dois países começou um pouco antes, nos anos 1950, com a reorientação geoestratégica de Stroessner, que buscava então uma menor dependência do Rio da Prata. Essa mudança, apoiada pelo Itamaraty, viabilizou-se com a “marcha para o leste”, empreendida pelo Paraguai. Com a construção da Ponte da Amizade, em 1962, a união física fez-se possível. Logo, a relação se estreitou ainda mais com a construção da hidrelétrica binacional Itaipu, criada no contexto de um litígio de limites fronteiriços em Salto del Guairá13 e frente à crise do petróleo dos anos 197014.
Hoje, a energia da hidrelétrica constitui uma reserva fundamental e alimenta o “polo mais industrializado do Brasil, São Paulo”, assinala Ricardo Canese, coordenador paraguaio da comissão encarregada da renegociação do Tratado de Itaipu. “E por meio do Itamaraty, uma das chancelarias mais respeitadas em todo o mundo, o Brasil impõe sua vontade na região”, afirma.
A renegociação do Tratado de Itaipu converteu-se, para o Paraguai, numa causa nacional, e se espera para fevereiro a resposta brasileira, embora o governo Lugo tenha estabelecido 15 de agosto de 2009 como prazo para recorrer a instâncias internacionais que possam mediar a querela. De qualquer forma, a intenção do Paraguai parece ser solucionar as controvérsias mediante negociação. “Isto não significa que, se este procedimento fracassar, nenhuma das partes possa apelar aos diferentes meios ou procedimentos de solução pacífica dos conflitos ou controvérsias internacionais”15, coloca Fernando B. Costantini, assessor de recursos hídricos do Ministério das Relações Exteriores paraguaio. Nas atuais condições, Itaipu é unicamente produtora de energia hidrelétrica, por ainda não ser possível a navegabilidade do rio Paraná mediante eclusas em nível, já que estas não foram construídas, apesar de sua previsão constar do acordo – o que transformou um trecho do rio, que deveria ser internacional, em área eminentemente brasileira.
A cada país cabe o volume de 50% da energia, mas o Paraguai consome somente o correspondente a 5% e cede o restante ao Brasil a preço de custo. O governo de Lugo pretende dispor do excedente para poder vendê-lo a outros países comercializando-o a preço de mercado.
“O tratado de Itaipu pode ser considerado nulo por ter sido assinado sob as ditaduras militares do Brasil e do Paraguai, em 1973. Caso chegássemos à Corte Internacional de Haia, teríamos muitas vantagens”, destaca o advogado Martín Almada16. Almada acrescenta que, caso fosse permitido revisar os arquivos da guerra da Tríplice Aliança, localizados no Rio de Janeiro, poder-se-ia lançar uma luz sobre os 623 quilômetros que o Brasil arrebatou do Paraguai, o que comprovaria que Itaipu está inteiramente dentro do território paraguaio.
Tríplice fronteira
Outro dos conflitos permanentes entre o Brasil e o Paraguai tem como foco a região da Tríplice Fronteira. Lá, a paraguaia Ciudad del Este se une, através da Ponte da Amizade, com a cidade brasileira Foz do Iguaçu. Por volta de 1980, Stroessner sustentou o desenvolvimento dessa região do país através da denominada “triangulação econômica”, na realidade um contrabando acobertado pelo Estado. Essa construção financeira fez–se com o intenso apoio do Brasil, cuja política aduaneira de então taxava fortemente os produtos manufaturados estrangeiros. Assim, os importadores paraguaios negociaram com os exportadores brasileiros um acordo para poder introduzir mercadorias para e vindas do Brasil.
Durante toda a década de 1990, esse processo se fortaleceu com a triangulação de produtos importados da China e do Paraguai para o Brasil. Esse modelo começou a mudar quando o Brasil abriu seu mercado e criou as zonas francas. A evidência mais clara desse novo momento foi a intenção demonstrada pelo governo brasileiro de construir um muro com 1,5 km de extensão e três metros de altura, em Foz do Iguaçu, para frear o contrabando. Essas notícias geraram muitas polêmicas entre ambos os países, já que, se as lojas de Ciudad del Este fechassem, a economia paraguaia estaria arruinada e milhares de trabalhadores ilegais – em sua maioria brasileiros – perderiam sua fonte de renda. Com a aprovação brasileira do Regime de Tributação Unificada (ou Lei do Sacoleiro), em janeiro de 2009, é possível que os focos de conflito sobre essa barreira comercial sejam apaziguados.
Desde a guerra da Tríplice Aliança (1864-1870)17, conflito que acabou com qualquer ambição hegemônica do Paraguai, o Brasil age de forma expansionista sobre o país vizinho. A relação de dependência geopolítica e econômica constituída então é hoje um dos maiores desafios de Lugo, que busca revertê-la com maior autonomia para poder negociar no Mercosul e projetar, no futuro, uma existência soberana dentro do bloco regional.
*Gustavo Torres González é jornalista.