A privatização da Sabesp e a singularidade do atraso
Ao mesmo tempo em que pede a rescisão do contrato de concessão da Enel, o prefeito Ricardo Nunes (MDB) sancionou o texto que permite a adesão de São Paulo ao programa de privatização da Sabesp 25 minutos após a sua aprovação
Os vereadores da cidade de São Paulo votaram favoravelmente, por um placar de 37 a 17, ao projeto de lei que permite a adesão da capital ao programa de privatização da Sabesp, uma das principais bandeiras do governador paulista Tarcísio de Freitas (Republicanos). Em dezembro de 2023, sob um processo questionado e tumultuado, já havia sido aprovado na Assembleia Legislativa o projeto que autoriza a desestatização da empresa.
Ao mesmo tempo em que pede a rescisão do contrato de concessão da Enel, após apagões sistemáticos e graves falhas na manutenção da rede de fornecimento de energia elétrica na cidade, o prefeito Ricardo Nunes (MDB), que concorre à reeleição neste ano com o apoio do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), exaltou o exemplo do parlamento paulistano e sancionou o texto 25 minutos após a sua aprovação.
As bancadas do PT e Psol já tinham ido à Justiça para contestar a primeira votação do projeto. Ficou determinado que se respeitasse o rito formal do qual dispõe a Constituição nesses casos, tendo em vista as implicações de um projeto dessa magnitude na vida das pessoas. Milton Leite (União Brasil), presidente da Câmara Municipal de São Paulo, ignorou a decisão judicial, bem como passou por cima dos mecanismos de participação popular, tocando o projeto.
Atropelou-se tudo. A Justiça de São Paulo anulou a segunda e definitiva votação: não se realizaram todas as audiências públicas e não se apresentou o impacto orçamentário para a cidade. Na decisão, está escrito que a Câmara Municipal está “desrespeitando os princípios constitucionais que permeiam o processo legislativo, bem como claramente afrontando determinação judicial”.
O principal questionamento diz respeito à realização de todas as audiências públicas para ouvir a sociedade civil, o que é fundamental. É necessário garantir a devida influência dos movimentos sociais nos processos de deliberação política no legislativo, cujo poder nasce da vontade popular. Não foi à toa que o tema passou despercebido na declaração de Leite, quando ele reagiu ao prosseguir com a votação, referindo-se apenas e tão somente à apresentação do impacto orçamentário com a privatização da Sabesp.
É ruim que o Judiciário seja provocado para se pronunciar sobre a política. Contudo, a crise entre o Legislativo da cidade de São Paulo e a Justiça vai além da tensão vinda de dificuldades referentes à própria dimensão da autoridade que se entende adequada a ser exercida por um tribunal dentro de um regime que se pretenda democrático.
As coisas mudaram desde aquele fatídico dia 7 de setembro de 2021, quando o então presidente Jair Bolsonaro, perante uma multidão na Avenida Paulista, abriu guerra ao Supremo Tribunal Federal, declarando que não mais cumpriria qualquer decisão judicial vinda da corte. Não se trata mais de discutir como seguir a regra, mas sim, se segui-la. É mais grave do que parece.
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A expansão da autoridade dos tribunais em geral não é um fenômeno estritamente brasileiro. Há algum tempo, a literatura sobre o assunto busca explicar o avanço do direito em detrimento da política e a ampliação da esfera de autoridade dos tribunais em prejuízo dos parlamentos. O fenômeno é, tampouco, recente. Para muitos constitucionalistas, o deslocamento da autoridade do sistema representativo para o judiciário é, antes de tudo, uma consequência do avanço das constituições rígidas, aquelas que dispõem de sistemas de controle de constitucionalidade, que tiveram origem nos Estados Unidos. Entretanto, o processo de expansão da autoridade judicial se torna mais complexo com as constituições dirigentes, como é o caso do Brasil.
Para alguns, o aumento da autoridade do judiciário está atrelada à expansão do sistema de mercado. Os investidores viriam os tribunais como o meio mais confiável para garantir segurança jurídica, estabilidade e previsibilidade do que os legisladores democráticos, resguardando-se de demandas “populistas” e pouco eficientes dentro de uma perspectiva voltada ao mercado de capitais.
Para outros, a crise está na contradição quanto à incapacidade do poder representativo de cumprir os valores de justiça e igualdade, inerentes ao ideal democrático e incorporados às constituições contemporâneas. Diante de tal situação, recorre-se ao Judiciário como guardião último dos ideais democráticos. É um paradoxo porque, ao buscar suprir as lacunas deixadas pelo sistema representativo, a Justiça apenas contribui para a ampliação da própria crise de autoridade da democracia.
As duas abordagens principais do constitucionalismo sobre o assunto interessam. No Brasil, com a convulsão da ordem institucional existente, embaralhou-se o debate sobre as competências superlativas conferidas ao Supremo na Constituição de 1988. Durante o período de Bolsonaro na presidência, a corte foi a fiadora da democracia, refreando o infralegalismo autoritário bolsonarista de vocação essencialmente violenta, tanto no gesto como na palavra. Não à toa, a tentativa de golpe de Estado em 8 de janeiro de 2023, descambando no ataque anticívico à Praça dos Três Poderes, em Brasília, culminou na destruição do STF.
Felizmente, a democracia resistiu bravamente. Entretanto, a sua crise de autoridade aponta a fenômenos constitutivos presentes em uma determinada cultura política.
Os desatinos entre o capitalismo e a democracia
Em “A Revolução Burguesa no Brasil”, de 1974, o sociólogo Florestan Fernandes se preocupou em entender o processo de transformação capitalista, as formas de dominação de classe que ele cria e, sobretudo, os fatores sociais, econômicos e históricos que levaram às estruturas do capitalismo no Brasil.
O diagnóstico dessa conformação é o de um capitalismo difícil, que se sustenta sobre bases sociais muito frágeis, dado o tímido grau de integração vertical da burguesia que nunca rompeu o laço com as antigas oligarquias. Na posição de classe dominante, ela necessita recorrer ao Estado como instrumento de manutenção no poder, de modo a se unificar como classe, lançando mão da transformação capitalista.
Estamos em uma democracia que não se democratizou? À primeira vista, pode-se confundir sobre a importância de conflitos que parecem meramente formais. Uma reflexão um pouco mais cuidadosa, entretanto, permite verificar o processo de privatização da Sabesp como um dos sintomas da subversão da democracia por um sistema de competição de interesses específicos. É perigoso, porque a competição de interesses específicos contribui para a despolitização da esfera pública.
O cientista político André Singer propõe pensar o sistema partidário-eleitoral brasileiro como aquele que expressa e orienta as classes em disputa, de modo que o acirramento dos conflitos dos partidos realmente existentes se conecta com os conflitos de classe realmente existentes, levando a um curto-circuito em que o sistema partidário corre de tempos em tempos o risco de se autodestruir, levando junto a democracia.
É pelo perigo de “levar junto a democracia” que se verifica uma contradição complexa e muito atual, a reprodução do atraso brasileiro e as dificuldades do campo progressista em pautar o debate qualitativo sobre o papel do Estado e da política como agentes facilitadores na vida das pessoas.
Agora, quando devolver a gestão do tratamento e fornecimento de água às mãos públicas é uma tendência global crescente, tal qual se vê em cidades como Atlanta, Berlim, Paris e Budapeste, São Paulo exige um debate franco e aberto sobre o assunto. Deve-se discutir a gestão da nossa água em tempos de caos climático. Deve-se contestar o porquê de privatizar uma empresa superavitária, cujo valor de mercado chegou a R$ 39,1 bilhões em 2022. Deve-se analisar se os investimentos chegam às periferias, considerando os problemas reincidentes de serviços privatizados como é o caso da Enel: a tarifa inflacionada, investimentos ineficientes e insuficientes, além da forma dos lucros e dividendos distribuídos entre acionistas. Para tal, participar e decidir, a soberania popular é um imperativo. A nossa Constituição dispõe de mecanismos para isso, cabe à política desempenhar seu papel fundamental.
O prefeito Ricardo Nunes vem sendo pressionado pelo governador Tarcísio de Freitas, que tem pressa em vender a empresa. Se não avançar na capital, os planos do governo estadual tendem a minguar, uma vez que o município é responsável por 44,5% do faturamento da Sabesp. Quando a vereadora Luna Zarattini (PT) denuncia um processo de privatização levado no tapetão pela troca de apoio político entre o prefeito Nunes e o governador Tarcísio, às vésperas da eleição, evidenciam-se as contradições do nosso sistema político.
Ao afirmar que falta “bala de borracha” para os manifestantes contrários à iniciativa, o vereador relator do projeto descortina um traço do nosso modelo de gerenciamento político. É reflexo de uma posição de bloqueador de mudanças em um sistema político muito refratário a promover avanços direcionados à inclusão, de modo a privilegiar interesses de grupos específicos. Eis a singularidade do atraso.
O atraso também diz respeito aos limites às iniciativas de reforma, da inclusão e restrição à democratização da democracia. Na medida em que interagem um “conservadorismo popular” e um “reformismo fraco”, nas definições de Singer, os mecanismos tradicionais de mando dependem, em algum modo, do grau de desigualdade da sociedade que acompanha todo o conjunto de determinadas relações sociais, recaindo à forma do capitalismo brasileiro e a redistribuição da riqueza que ele produz. A judicialização da política e a tensão entre os poderes Legislativo e o Judiciário são, enfim, só a ponta do iceberg.
Rafael Pepe Romano é bacharel em Direito e graduando em Ciências Sociais pela FFLCH-USP.
Referências
FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil. Cap. 7 “O modelo autocrático-burguês de transformação capitalista”. Rio de Janeiro : Editora Guanabara, 1975.
NOBRE, Marcos. Limites da democracia: de junho de 2013 ao governo Bolsonaro. São Paulo : Todavia, 2022.
SINGER, André. Três partidos brasileiros: Lulismo em crise: um quebra-cabeça do período Dilma. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
VILHENA O. .Supremocracia e infralegalismo autoritário: o comportamento do Supremo Tribunal Federal durante o governo Bolsonaro”. São Paulo : Fundação Getúlio Vargas, 2022.
O autor ignora (propositalmente?) que o presidente do TJ validou a decisão da Câmara, derrubou a liminar provocada da por PT e PSOL, e manteve a votação da Câmara. Que feio, pois essa informação ignorada (escondida?) altera toda a lógica da argumentação do artigo. Que papelão para o veículo de comunicação, também, sempre muito respeitado.