Privatizar ou estatizar?
Debate ganha novo impulso após a divulgação no dia 15 de agosto do primeiro pacote de privatização da infraestrutura contemplando a concessão para o setor privado de investimentos e operações para a construção de 7,5 mil quilômetros de rodovias e 10 mil quilômetros de ferrovias, num investimento de R$ 133 bilhõesAmir Khair
Está em pauta a discussão da privatização, que, em nosso país, ganha dimensões particulares pelas contradições que encerra, com movimentos constantes de interpenetração do espaço público pelo privado. É um debate que comporta um grande elenco de argumentos sócio-históricos, cuja dimensão, sem dúvida, não cabe no âmbito deste artigo.
As recentes medidas da presidenta Dilma Rousseff de privatização de empresas estatais reacende a crítica à agenda liberal, demolidora da intervenção do Estado no plano econômico e social, demarcada no país por sua ascensão à modernidade capitalista.
Especialmente em decorrência da crise mundial de 1929 a 1931, ocorreu no Brasil o combate à depressão mediante a elevação do gasto público, tendo como uma de suas consequências uma forte reorganização econômica, com a transformação do sistema produtivo nacional.
Foi um período marcado pela aceleração da industrialização e a substituição das importações, com significativa intervenção do Estado na vida econômica e social, vasta expansão dos serviços governamentais e estruturação de setores estratégicos.
Essa experiência não se afasta daquela de outros países, quando a industrialização e os conflitos gerados pela desigualdade de seus frutos provocaram também a presença do Estado no âmbito das legislações previdenciária e do trabalho.
Dessa forma, a economia foi resgatada da crise por uma ação deliberada do Estado, modelo que fortaleceu e expandiu o setor público e incorporou demandas sociais, concomitantemente às demandas do capital de se manter reciclado.1
É da era Vargas a criação da Companhia Siderúrgica Nacional (1940), da Vale do Rio Doce (1942) e da Companhia Hidro Elétrica do São Francisco (1945). Em seu segundo governo (1951-1954), foram fundados o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (1952) e a Petrobrás (1953).
Já existiam havia tempo o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal, atuando ao lado de outras poucas instituições financeiras, a maioria em mãos do capital estrangeiro.
O processo de criação de empresas estatais ocorreu também durante o regime militar (1964-1985), em setores estratégicos e em outros de menor importância, como hotelaria e supermercados.
O processo de privatização no Brasil representou uma mudança radical do papel até então reservado ao Estado na atividade econômica, em contexto histórico de ascenso do pensamento neoliberal, cujas postulações enfatizam o valor do mercado e de suas leis a reger a sociedade e suas condições de desenvolvimento, devendo o Estado ser reduzido ao mínimo necessário (Estado mínimo).
Contraditoriamente no Brasil, a Constituição Federal de 1988 introduziu e ampliou direitos e expandiu as responsabilidades públicas por sua objetivação.
O ressurgimento de valores liberais incitou reformas, e uma de suas expressões está no chamado “Consenso de Washington”,2 reação contra o Estado interventor.
Novas crises econômicas mundiais fizeram emergir com força a crítica ao funcionamento do Estado e à sua capacidade de prover políticas públicas, por seu gigantismo, ineficiência e burocratismo. Esse debate fertilizou o terreno para a introdução de medidas, entre elas as várias formas de privatizações e desregulamentações.
Fernando Collor (1990-1992)foi o primeiro presidente a adotar as privatizações, ao instituir o Programa Nacional de Desestatização (PND) pela Lei n. 8.031, de 12 de abril de 1990. Os principais objetivos foram transferir à iniciativa privada atividades indevidamente exploradas pelo Estado e usar os recursos da privatização para reduzir a dívida pública.
A privatização iniciou-se em 24 de outubro de 1991, com a venda da siderúrgica Usiminas, uma das estatais mais lucrativas, seguida por várias siderúrgicas e petroquímicas.
No governo de Itamar Franco (1992-1995), concluiu-se a privatização de empresas do setor siderúrgico e petroquímico e foi leiloada a Embraer (1994).
O governo FHC (1995-2002) adotou as recomendações do Consenso de Washington, que pregava um amplo programa de privatizações. Foi além, ao condicionar as transferências de recursos da União para os estados à submissão dos governadores às políticas recomendadas pelo FMI. Foram privatizados os principais bancos estaduais, Light, Vale do Rio Doce, Telebrás e Eletropaulo.
Os leilões de privatização de FHC foram objeto de protestos em razão de irregularidades e duas grandes falhas: uso de moedas podres3 e permissão para que o BNDES financiasse parte do preço de compra, inclusive a investidores estrangeiros, o que levaria a privilegiar grupos privados específicos.4
A maior parte dos valores usados para as privatizações veio de empréstimos do BNDES e dos fundos de pensão das próprias empresas estatais (como no caso da Vale).
Nos oito anos de mandato de FHC, as privatizações atingiram US$ 78,6 bilhões, dos quais 28% no setor elétrico e 38% em telecomunicações. A dívida pública era de 28% do PIB e passou no final para 60%! E isso apesar dos recursos provenientes das privatizações. Isso ocorreu pelo uso da Selic elevada para não deixar ruir o Plano Real.
No governo Lula, 2,6 mil quilômetros de rodovias foram leiloadas em 9 de outubro de 2007. O grande vencedor do leilão para explorar pedágios por 25 anos foi o grupo espanhol OHL. Nessas concessões, foi adotado o critério da menor tarifa nas licitações. As empresas vitoriosas ofereceram-se para administrar as estradas por um pedágio médio de R$ 0,02 por quilômetro, seis vezes inferior ao cobrado nas rodovias Anhanguera e Imigrantes, privatizadas na década anterior.
Ocorreram também outras privatizações: Banco do Estado do Ceará, Banco do Estado do Maranhão, hidrelétricas Santo Antônio e Jirau.
Debate
Esse debate ganhou novo impulso após a divulgação no dia 15 de agosto do primeiro pacote de privatização da infraestrutura contemplando a concessão para o setor privado de investimentos e operações para a construção de 7,5 mil quilômetros de rodovias e 10 mil quilômetros de ferrovias, num investimento de R$ 133 bilhões, bancados na maior parte por recursos públicos (80% pelo BNDES).
Os contrários à privatização se dividiram em dois grupos: os que afirmaram não se tratar de privatização, pois não ocorreria venda de patrimônio público, e os que defenderam que essa passagem para o setor privado em nada poderia ser diferente de uma privatização.
O centro do debate não é se a concessão é privatização, mas se o que foi concedido ao setor privado deveria sê-lo ou não. Os fatos mostraram com clareza os problemas criados pela privatização açodada.
Uma vez privatizada, a empresa estatal foge do controle do Estado e fica livre para praticar a política que mais lhe interessar. Pode, por exemplo, contaminar toda a cadeia produtiva na qual se situa no topo. Foi o caso da Vale do Rio Doce, que, aproveitando o preço internacional elevado do minério de ferro, mais do que dobrou o preço interno, impondo elevação de custos a todas as empresas dessa cadeia, atingindo os consumidores e inquilinos nos aluguéis, influenciados que foram pela forte elevação causada no IGP-DM, usado como índice de correção das locações de imóveis.
A empresa privatizada tem o direito de vender seu controle acionário para uma transnacional, cuja política de produção e comercialização responde aos interesses da matriz, podendo prejudicar o país.
No caso das prestadoras de serviços públicos, a sociedade é sacrificada pelo uso abusivo de tarifas − a principal fonte de ganho dessas empresas −, que ocorre em sequência à privatização. Essas tarifas deveriam ser controladas pelas agências reguladoras, mas na prática não é o que se observa. Além disso, o serviço ofertado é campeão de reclamações nos órgãos de defesa do consumidor.
Novos tempos
Estamos em uma época bem diversa daquela do início das privatizações, em 1990. O mito do mercado desabou com a quebra do banco norte-americano Lehman Brothers em 15 de setembro de 2008, o estopim da maior crise vivida pelo sistema capitalista desde 1929. Se não fosse o Estado, o sistema capitalista ruiria após o colapso generalizado do sistema financeiro, o qual o neoliberalismo acreditava que se autorregularia diante das crises.
Agora mais do que nunca se impõe uma rediscussão do papel do Estado e da iniciativa privada na economia e na sociedade. Ao Estado, competem a defesa e a promoção do desenvolvimento econômico e social. Ao setor privado, o que interessa é maximizar o lucro das empresas. Objetivos diferentes e por vezes antagônicos.
Na crise citada, esses objetivos foram expostos. O que protegeu a economia e o emprego foram as ações desencadeadas pelo Estado, por meio de suas instituições oficiais de crédito, com estímulos à economia feitos pelo BNDES, Banco Central e governo federal. Em lado oposto situou-se o sistema financeiro privado, que, à semelhança do que fez internacionalmente, trancou o crédito e elevou os juros.
As falhas cometidas nas privatizações de empresas estratégicas, feitas especialmente no governo FHC, e a nova conjuntura internacional impõem novas reflexões e ações para fortalecer o Estado.
É necessário discutir o argumento central pró-privatização de que o Estado torna tudo mais caro para a sociedade em relação ao que pode ser feito pela iniciativa privada e que, além disso, carece de recursos necessários para investimentos em infraestrutura.
Se o Estado não está preparado, o caminho não é sua demolição, mas fazer que tenha condição para assumir o papel que a sociedade lhe delegou. As fragilidades do poder público precisam ser enfrentadas. É necessário que seja construído um plano estratégico de desenvolvimento econômico, social e ambiental e, nele, os instrumentos de sua efetivação.
Trata-se de fortalecer e reorientar a ação do Estado, com maior benefício para a sociedade; transformar o custo elevado de suas ações, o uso indevido de cargos públicos para o suporte político e o populismo de tarifas e preços, que acabam inviabilizando a autossustentação das atividades.
Vale analisar os principais argumentos usados pelos privatistas: 1) falta de recursos no Estado; 2) custos mais elevados do Estado; 3) cabide de emprego e uso político de cargos; e 4) uso populista na fixação de preços e tarifas.
1. Falta de recursos – A falta de recursos atinge todas as áreas de atuação do Estado, especialmente a social, na qual o déficit elevado sacrifica a maioria da população. Mas sua reversão é possível, pois: a redução da Selic vai permitir economizar mais de R$ 100 bilhões por ano; com o crescimento acima de 4% ao ano, a arrecadação tende a crescer de 3 a 4 pontos acima do PIB pela redução da inadimplência; se usar corretamente suas estatais, sem os nefastos populismos na fixação de preços, como no caso da Petrobras, os dividendos crescerão.
2. Custos– Podem ser para compras de bens, prestação de serviços e obras. Para compras, os custos dependem da modalidade de aquisição. Se adotado o pregão eletrônico ou presencial, e como em geral as quantidades adquiridas são grandes, eles podem ficar até melhores que na iniciativa privada.
A maior parte dos serviços é padronizada e passível de ser licitada pelo sistema de pregão. Para os demais casos, o que determina é o custo da mão de obra, em geral cerca de 80% do total. Caso sejam adotados salários em nível de mercado e adequada gestão de pessoal, os custos podem se equiparar aos da iniciativa privada. Caso o Estado não fiscalize o que é feito pela iniciativa privada – fato comum –, os serviços podem ficar mais caros do que os feitos diretamente pelo Estado.
Nas obras, o Estado pode ter custos competitivos, pois pode comprar a preços melhores, dado seu porte. Em grandes obras, há que se tomar cuidado, já que o setor privado opera com poucas empresas, nas quais a ocorrência de superfaturamento é bem conhecida.
3. Cabide e uso político– O inchaço e a prática de usar cargos públicos para garantir apoio nas matérias de aprovação legislativa são grandes atrasos na independência que se espera do Estado para escolher bons quadros técnicos. O sucesso na política de desenvolvimento pavimenta a maior independência ao Poder Executivo para realizar seus objetivos. Reestruturações são necessárias para adequar o orgânico de pessoal às reais necessidades da organização. Contratos de gestão podem ser o instrumento adequado para o cumprimento dos objetivos definidos para cada órgão ou empresa.
4. Preços e tarifas – Devem ser fixados de forma a garantir os recursos para atingir os objetivos do plano estratégico acordado com o governo. O desvirtuamento dessa diretriz dá o combustível político aos privatistas, que argumentam que tudo que fica com o Estado fracassa e na mão da iniciativa privada prospera. As comparações não têm fim.
Em sentido inverso às proposições de privatizações, o poder público deveria ainda capitalizar adequadamente suas estatais; fixar os preços que viabilizam os planos estratégicos; adquirir ações em Bolsa de Valores para reforçar sua posição de comando; e criar estatal em cada setor estratégico que não a possua.
Só com estatais fortes operacional e financeiramente é possível garantir de forma eficaz os objetivos estratégicos do país. A desestatização foi em sua maior parte um atraso. É fundamental um choque na economia e na política para acelerar e engrandecer o processo do desenvolvimento econômico e social de que o país necessita.
Amir Khair é mestre em Finanças Públicas pela FGV. Foi secretário de Finanças da Prefeitura de São Paulo, consultor do BID e presidente da Abrasf. É consultor na área fiscal, orçamentária e tributária.