Problemas de gênero em Riad
Inspiradas por séries de televisão locais e norte-americanas, estudantes sauditas, independentemente da orientação sexual, adotam um estilo de vestimenta andrógino. Elas se autodenominam buya (“rapazas”)Amélie Le Renard
É categoricamente proibido usar correntes grossas das quais pendam motivos contrários aos costumes, como caveiras, expressões indecentes, fotografias de personalidades, assim como colocar piercings em locais pouco habituais, como na região do queixo ou da boca, no alto das orelhas, perto das sobrancelhas etc.” Tal é a mensagem do “escritório da unidade de supervisão e orientação” fixada na parede do campusreservado às mulheres na Universidade do Rei Saud, em Riad, capital da Arábia Saudita. Essas proibições, transgredidas por muitas estudantes, visam os diferentes estilos minoritários que se desenvolveram ali, em particular os góticos, os emo (de emotional, estilo inicialmente ligado a uma corrente musical e que se caracteriza principalmente pelas roupas e maquiagem escuras) e as buya.
Esse último neologismo é formado pela palavra inglesa boy, à qual se acrescenta o sufixo árabe de feminino “a“. Em muitos países da península, designam-se assim aquelas que usam roupas tidas como masculinas, quer dizer, as vestimentas que escondem as formas femininas, mas não da maneira islâmica: mesmo que evitem as roupas justas, elas as substituem por camisas de homem, camisetas de times de futebol ou outras blusas folgadas, e usam, de vez em quando, uma faixa destinada a camuflar o peito. Isso difere da dissimulação da forma dita “islâmica”, destinada a esconder o que é considerado atributo corporal da feminilidade sem para isso causar dúvida nas classificações em termos de gênero.
As pessoas que se definem e/ou são designadas pelos outros como buya geralmente possuem os cabelos curtos e por vezes piercings na parte superior da orelha ou na sobrancelha; algumas usam perfumes masculinos e outras são chamadas por um nome masculino. Aquelas com quem conversei se faziam chamar pelo nome e sobrenome de estado civil (femininos). Ao longo da conversa, elas se definiam espontaneamente como buya, uma identidade entorno da qual foram criados fóruns on-line, assim como páginas abertas e grupos fechados no Facebook, que lhes permitiram se encontrar e trocar depoimentos, fotos, vídeos etc.
Se alguns artigos de imprensa e debates televisivos nas redes do Golfo designam, às vezes, o fenômeno pelo termo patologizante de “masculinização” (istirjal) e o associam frequentemente às “relações afetivas entre meninas”, as jovens sauditas o descrevem na maior parte como um “estilo”. Ele é, então, interpretado como uma moda ou uma subcultura.
Quando comecei a falar sobre o assunto com as estudantes, buya ou não, muitas evocaram a série televisiva norte-americana The L-Word, acessível na internet (inclusive com legendas em árabe), que começou em 2004 e conta as tribulações de mulheres lésbicas em Los Angeles. Muitas jovens sauditas assinalaram a fascinação de seus pares por uma das personagens da série: Shane, frequentemente descrita como a mais andrógina, com seu corte de cabelo repicado, que se tornou um modelo. Mas, apesar dessa referência recorrente, o estilo das buya não corresponde à simples importação das práticas vindas dos Estados Unidos. Figuras transgressoras das normas de gênero dominante também são inventadas e circulam na Península Arábica. Assim, na série kuwaitiana Adil ruh, transmitida pela primeira vez durante o Ramadã de 2005 (portanto, pouco tempo depois do começo da difusão de The L-Word), a atriz Shujun al-Hajiri encarnou uma personagem buya. Popular entre as jovens sauditas, essa série apresentava os altos e baixos de uma família rica kuwaitiana que tinha uma buya entre os filhos adultos que viviam na casa.
Diversas buya afirmam que essas produções culturais foram marcantes não apenas porque foram acompanhadas por elas, mas também porque foram o ponto de partida dos fóruns na internet que juntaram tais espectadoras. O tipo de estilo popularizado por essas produções culturais implica significações e práticas próprias ao contexto saudita. Durante nossas conversas, muitas justificaram seu estilo buya pelo fato de que gostariam de ser homem, principalmente para ter liberdade de movimento (“Eu quero dirigir, não ter mais de usar a abaya, respirar”), porque estão cansadas de sempre ter de dar satisfações aos pais a respeito de suas idas e vindas, de ter de pedir autorização para sair (“Os pais dizem o tempo todo: ‘Você é uma menina! Quando você vai sair? Quando volta?’ etc.”). Algumas se recusam a usar véu nos cabelos nos espaços mistos1 e reclamam por ter de usar a abaya, que as liga diretamente a uma categoria de gênero, ao passo que sem isso elas poderiam provocar dúvidas, até mesmo ser identificadas como menino.
Uma entre elas deplora que as mulheres sauditas sejam convencidas de ser fracas fisicamente e de ter necessidade da ajuda dos homens da família. Algumas afirmam que elas não hesitam em se bater, e às vezes acontecem brigas entre as estudantes do campus. Algumas contam ter sido “molecas” desde criança, enquanto outras dizem ter se tornado buya há alguns anos, frequentemente durante o colegial ou a universidade. Os discursos evocados aqui traduzem não suas razões para adotar tal forma de se vestir, mas na maioria das vezes a maneira como elas justificam esse estilo a posteriori e se dão conta das dificuldades com as quais se confrontam no dia a dia. O “estilo” é acompanhado frequentemente por uma contestação do modelo dominante de feminilidade, o que não significa, no entanto, que se trate de uma estratégia por parte daquelas que o adotam.
Um “problema psicológico”?
Se uma personagem como Shane em The L-Word é ao mesmo tempo identificada como “andrógina” e “lésbica”, essa ligação entre maneira de se vestir e orientação sexual não é, evidentemente, inevitável. Ainda por cima, o fato de ter relações afetivas, amorosas ou sexuais com pessoas do mesmo sexo não é, no contexto saudita, necessariamente considerado um fundamento da identidade individual que deva ser assumido em público (para os homens isso pode ser reprimido de maneira muito dura). A maioria das buya com quem conversei confidenciou ter tido diferentes tipos de relações com outras meninas, mas que ninguém sabia, exceto suas amigas mais íntimas. É o que explicou Suzan, de 19 anos: “Meus pais sabem que sou uma buya e isso me causa problemas. Eu digo a eles que sou normal, que meu interior é como meu exterior. Minha mãe sabe a respeito da minha aparência, mas não [sabe que sou] lésbica. Ela diz que estou fingindo, brincando, e eu digo que estaria fingindo se fosse mulherzinha”.
As estudantes, buya ou não, empregam diferentes palavras para qualificar suas práticas e suas relações, como mostra uma conversa com uma turma de estudantes. Shaykha: “Acho que é a liberdade pessoal, eu ando com todo mundo. Não tenho relações nem com meninos nem com meninas”. Badriyya: “Tive relações com meninas e agora não tenho mais. Parei porque é proibido no islã”. Nura: “Saí com meninos, depois com meninas, depois com meninos”. Badriyya: “Isso que estamos lhe contando ninguém sabe, senão teríamos problemas”. Shaykha: “Mas na verdade poucas meninas não gostam nem de meninas nem de meninos, são straight, podem se sentir bem sem ter uma relação amorosa”. Nura: “Desculpe, Shaykha! Mas straightsão as que gostam de meninos [risos]”.
O desenrolar da conversa repousa sobre os deslizes permanentes entre as questões de masculinização e de orientação sexual. Vemos que diferentes significações podem ser dadas aos termos oriundos do inglês que se tornaram dialeto saudita. As entrevistadas citadas aqui viajaram pouco ou nem isso e falam muito mal o inglês. Shaykha, dirigindo-se a mim, se definiu como straight (“convencional”, termo utilizado em geral no sentido de “heterossexual”) porque ela diz não manter relações amorosas clandestinas, nem com meninos nem com meninas, e não sentir necessidade disso. Ela utiliza a palavra num sentido próprio ao contexto saudita, onde as relações fora do casamento são, a princípio, proscritas. Nura a utiliza segundo um quadro normativo diferente, para classificar as orientações sexuais.
Esse vocabulário dialetal proveniente em grande parte do inglês é próprio da jovem geração, assim como o fato de assistir a séries na internet. Dito isso, um pouco mais tarde durante a conversa, Nura e Badriyya me explicam que utilizam também uma antiga palavra de dialeto, hoje em desuso, que significa literalmente “a amiga” (khawiyya), para designar uma relação íntima. Segundo outra pesquisa, isso se inscreve na continuidade de formas antigas de relações entre mulheres, indo além da amizade – ela fala da geração de sua avó.
No campus, algumas estudantes passeiam como casal, de mãos ou braços dados, sendo uma, segundo os termos empregados pelas entrevistadas, buya (cabelos curtos, moletom amplo, modelo de tênis masculino) e a outra “feminina” ou cute (“bonita”): cabelo comprido, escova, roupas acinturadas e justas. Sua atitude corresponde a uma visibilidade das relações afetivas amorosas e/ou sexuais entre meninas, mais frequentemente estigmatizadas e dissimuladas; algumas, mas não necessariamente todas, se definem em certas situações como lesbian.
A interpretação dominante da maneira de se apresentar como buya como sendo um “estilo” – pelo menos entre as jovens sauditas – tem efeitos ambivalentes. Em muitas sociedades, os anos 2000 foram marcados ao mesmo tempo por uma divulgação crescente das reivindicações lésbicas, gays, bissexuais e trans (LGBT) e por uma radicalização das declarações e dos atos anti-homossexuais, frequentemente em nome da defesa de uma suposta “autenticidade”, cultural ou religiosa, contra a “ingerência ocidental”. O caso do “Queen Boat”, quando cerca de cinquenta homens foram presos numa boate gay do Cairo, depois julgados em 2001, continua emblemático. Esse registro discursivo da autenticidade ameaçada, justaposto ao da denúncia, apoiado sobre o referendo islâmico do “desvio (sexual)” (shudhudh) e da “confusão (de gênero)” (tashabbuh), foi, por exemplo, utilizado a respeito das buya no programa do pregador Nabil al-Awdi, Uma hora de franqueza, no canal kuwaitiano Al-Rai. Esse é, no entanto, apenas um dos registros de discursos possíveis nos muitos programas consagrados à “masculinização” nos canais dos Emirados Árabes e do Kuwait.
Na Arábia Saudita, onde não há reivindicação pública em favor dos direitos das pessoas LGBT, os discursos na imprensa a respeito das “masculinizadas” ou das “relações afetivas entre meninas”, raras, empregam na maioria das vezes outro registro que circula para fora das fronteiras: aquele, psicológico, da patologia. É também esse registro que é adotado por certas pregadoras que organizam conferências sobre a “masculinização” no campus. “Tenha orgulho de sua feminilidade: perdão, mas a masculinização não é para você; somos contra o que apaga a natureza feminina”, podia-se ler em um cartaz que anunciava esse tipo de evento em 2008. Algumas pregadoras trabalham, inclusive, diretamente com mulheres psicólogas e outras especialistas na “educação das moças”.
As entrevistadas não buya retomavam em algumas ocasiões o registro psicológico, evocando, para explicar o fenômeno, um “problema psicológico”, a “carência afetiva” ou “a separação da família”. Mas elas insistiam, na maioria das vezes, no fato de que grande parte daquelas que adotavam o estilo buya o faziam por causa da “moda”. Se algumas estudantes tinham um discurso bem duro com relação às buya (“sujas”, “vulgares”, “desviadas”), o fato de essa maneira de se apresentar ser em parte considerada uma moda e incorporada por tantas jovens sauditas contribui provavelmente para que não seja totalmente estigmatizada, apesar de seu caráter subversivo.
Essa condição favorece, por outro lado, sua ampla difusão em um campus onde as transgressões em público do regulamento (estrito no que diz respeito às questões de vestimenta, principalmente) são muito valorizadas, mesmo que com certos limites. Esse modelo subversivo pode ser em parte adotado por estudantes que não necessariamente reivindicam o status de buya ou para quem isso não implica outras práticas transgressoras das normas dominantes de gênero e sexualidade. Essa dimensão induz a uma ambivalência entre resistência às normas de gênero dominantes e práticas consumistas; uma ambivalência até mesmo cultivada por muitas jovens sauditas para além das buya.
Amélie Le Renard é socióloga e autora de Femmes et espaces publics en Arabie Saoudite [Mulheres e espaços públicos na Arábia Saudita], Dalloz, Paris, 2011. Contribuiu com a obra Jeunesses arabes. Les loisirs d’une génération, du Maroc au Yémen [Juventudes árabes. Os lazeres de uma geração, do Marrocos ao Iêmen], organizada por Laurent Bonnefoy e Myriam Catusse (La Découverte, Paris), publicada em setembro de 2013 e da qual este artigo foi extraído.