Proposta para desarmarrar a inovação brasileira
Contamos com um contingente expressivo e altamente qualificado de cientistas e pesquisadores e abrigamos aproximadamente 12% da biodiversidade planetária. Por que será que somos tomados pela sensação de que esse potencial todo ainda não se traduz, plenamente, em utilidades de valor econômico, ambiental e social?Rubens Naves
Entre os dias 26 e 28 de maio de 2010, realizou-se a 4ª Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação, em Brasília. À primeira vista, o tema parece distante de nossos problemas e preocupações cotidianas, tão enigmático quanto a imagem caricaturada do cientista, de cabelos ao alto, às voltas com equações e raciocínios inacessíveis a nós, meros mortais. A realidade, felizmente, não é bem assim.
A sucessão acelerada de ondas de inovação tecnológica, deflagrada com a Revolução Industrial, vem transformando a realidade social de forma tão profunda e abrangente que, hoje, quase todas as atividades cotidianas de grande parte da população planetária dependem da utilização de instrumentos e produtos recém-inventados. Da vacina contra a gripe H1N1 aos automóveis flex, da internet aos satélites que nos dizem se no fim de semana haverá sol ou chuva, do celular que toca ao lado à maior oferta de alimentos nas gôndolas do supermercado: para qualquer lado que se olhe, encontram-se novidades cuja importância vai deixando de ser notada na medida em que se incorporam à nossa rotina.
A vulgarização crescente das aplicações do conhecimento científico tende a reduzir nossa surpresa diante das inovações, mas, se passamos a ver o desenvolvimento tecnológico como fruto de geração espontânea, estaremos sendo tão ingênuos quanto quem ainda duvida que o homem chegou à Lua. Como também seria ingênuo pensar que poderemos enfrentar, sem ciência, os grandes desafios que se colocam agora para a humanidade. Um deles, as mudanças climáticas, aponta um cenário de aquecimento do planeta, aumento do nível do mar e alterações na frequência e intensidade de eventos meteorológicos extremos, castigando especialmente a agricultura e os países mais pobres. É na ciência que residem nossas melhores chances de criar mecanismos para reverter ou diminuir esses efeitos e adaptar a sociedade às novas condições de vida.
DIFICULDADES BUROCRÁTICAS
O Brasil pode e deve exercer um papel importante nesse cenário. Contamos com um contingente expressivo e altamente qualificado de cientistas e pesquisadores, responsáveis por colocar o país no 13º lugar no mundo em número de artigos publicados. Abrigamos aproximadamente 12% da biodiversidade planetária e a maior biodiversidade biológica terrestre. Por que será, então, que somos tomados pela permanente sensação de que esse potencial todo ainda não se traduz, plenamente, em utilidades de valor econômico, ambiental e social?
Não tenho dúvidas ao afirmar que uma das razões para esse estado de coisas está na legislação. A explicação é simples. A ciência brasileira ainda é produzida, majoritariamente, no ambiente estatal, principalmente pelas universidades, instituições de ciência e tecnologia e agências de fomento públicas. Todas essas entidades são obrigadas a seguir a Lei n. 8.666/93 (Lei Geral de Licitações e Contratos Administrativos). E isso gera um duplo entrave.
Em primeiro lugar, a licitação exige a prática de inúmeros atos, cuja ordem, formas e prazos são pré-estabelecidos, abrindo a possibilidade de impugnações e recursos que podem prolongá-la indefinidamente. Mesmo nos casos em que a lei autoriza expressamente a dispensa desse verdadeiro rito, a interpretação restritiva adotada pelos tribunais de contas e demais órgãos de controle acaba, na prática, por desestimular ou impedir que o agente público faça uso da exceção legal. Por consequência, as compras de insumos e equipamentos ou a contratação de obras e serviços destinados à pesquisa científica e tecnológica ficam sujeitas a um procedimento burocrático e moroso, totalmente incompatível com a flexibilidade e agilidade inerentes ao setor.
Até aí, alguém poderia argumentar que se trata de um problema comum a toda administração pública, ainda que seus efeitos se façam sentir de forma mais desastrosa na área científica.
Ocorre que a lei cria um segundo entrave. Para que a ciência se traduza em benefícios concretos para os cidadãos e para o país, é fundamental a aproximação entre os centros produtores de ciência e as empresas. É essa interação dinâmica, de aplicação prática do conhecimento para a geração de novos e melhores processos, produtos e serviços, que dá sentido a inovações tecnológicas.
Projetos dessa natureza, porém, têm sempre um caráter exploratório, marcado por níveis diferenciados de incerteza e risco, sendo inviável o estabelecimento prévio, por exemplo, de prazos ou valores – exatamente o contrário do que exige a lei. Some-se a isso o fato de que as instituições públicas não podem oferecer às empresas parceiras garantias de contratação caso o projeto seja bem-sucedido e se concluirá, facilmente, que a legislação mais dificulta do que estimula esse tipo de parceria e o aporte de investimentos privados em favor da ciência. Perdem as instituições públicas, perdem as empresas, perde o país.
PAPEL ESTRATÉGICO
Não foi mera coincidência, portanto, que o marco regulatório foi recorrentemente apontado, nos debates ocorridos na 4ª Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação, como um dos principais entraves a um maior avanço do país no setor.
Como transformar essa situação? Um grupo liderado pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e pela Academia Brasileira de Ciências, do qual tive a honra de participar, elaborou uma proposta simples, mas de enorme impacto. Trata-se de autorizar que as instituições de ciência e tecnologia e as agências de fomento possam realizar suas compras, contratações e parcerias com base em um regulamento próprio, adaptado às peculiaridades de cada uma, e não mais na Lei n° 8.666/93. A proposta preserva a atuação dos órgãos de controle, concedendo maior autonomia em troca de níveis mais elevados de transparência e prestação de contas.
Na abertura da 4ª Conferência Nacional, a proposta foi oficialmente entregue ao presidente Lula, que tem sido um grande entusiasta do papel estratégico que cabe à ciência para o desenvolvimento sustentável do país no século XXI. Esperamos que ele abrace mais essa causa. Com um único passo, teremos percorrido uma enorme distância em direção ao futuro.
Rubens Naves é professor licenciado do Departamento de Teoria Geral do Direito da PUC-SP, sócio titular de Rubens Naves, Santos Jr, Hesketh Escritórios Associados de Advocacia.