Quais crianças sua branquitude escolhe proteger?
Pesquisas realizadas em creches apontaram que crianças negras recebiam menos carinho de cuidadoras e educadoras que crianças brancas. A branquitude retira das crianças pretas qualquer perspectiva de cuidado e proteção integral, sobretudo quando esta divide atenção com outras crianças brancas, e em alguns casos, com o cuidado com os animais de estimação.
Um sábio provérbio africano diz: “É preciso um vilarejo inteiro para cuidar de uma criança”. Significa que toda uma comunidade de pessoas e, não apenas os pais, deve garantir o ambiente saudável e seguro às crianças. O Estatuto da Criança e do Adolescente, no seu artigo 3º Parágrafo único diz o seguinte: “Os direitos enunciados nesta Lei aplicam-se a todas as crianças e adolescentes, sem discriminação de nascimento, situação familiar, idade, sexo, raça, etnia ou cor, religião ou crença, deficiência, condição pessoal de desenvolvimento e aprendizagem, condição econômica, ambiente social, região e local de moradia ou outra condição que diferencie as pessoas, as famílias ou a comunidade em que vivem”. O artigo 4º determina que todos nós como uma comunidade devemos assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos das crianças e dos adolescentes.
A criança que despencou do nono andar do edifício Pier Maurício de Nassau, na região central de Recife, Miguel Otávio Santana da Silva era uma criança preta. Assim como a sua mãe, assim como a sua avó. Mirtes, trabalhadora doméstica, trabalhava há aproximadamente quatro anos na residência de sua empregadora, cuidando com zelo da casa, dos filhos e da cachorra da família.
A empregadora não abriu mão dos serviços domésticos prestados por Mirtes durante a pandemia, momento em que toda a população foi orientada a ficar em casa, a não ser os profissionais que desenvolviam um trabalho essencial, estes detalhados no decreto estadual 49.055 de 31 de maio de 2020. As trabalhadoras domésticas não desenvolvem um trabalho essencial, salvo quando prestem serviços em residências de pessoas com necessidades especiais, o que não era o caso. Nem o trabalho de manicure, que também foi requisitado pela empregadora no fatídico dia da queda e morte do menino Miguel.
Mirtes levou Miguel para o trabalho e, enquanto cumpria as ordens, levando a cachorra da família para passear na área externa do edifício, confiou o seu filho aos cuidados da sua patroa, que, segundo apontam registros das câmeras do prédio, deixou o menino de 5 anos sozinho no elevador e apertou o botão do último andar do edifício. O final dessa história é a tragédia já conhecida: Miguel caiu de uma altura de 35 metros.
Ter uma criança sob supervisão, em nosso ordenamento jurídico, impõe ao adulto responsável a “posição de garante”, prevista no artigo 13 do Código Penal, que estabelecia o dever da patroa, que naquele momento se encarregou de tomar conta de Miguel apenas por alguns minutos.
Branquitude
A morte do menino Miguel deve nos provocar uma profunda reflexão sobre branquitude. Porque é essa estrutura opressora e enraizada entre nós, que selou o destino da criança. A branquitude cria empatia com crianças brancas, e descaso e repulsa por crianças pretas. Exemplo disso é como fica nítida a preocupação com crianças brancas desacompanhadas seja nas ruas ou nos elevadores. E como se normaliza essa situação com relação às crianças pretas. Como se atribui a estas crianças pretas uma espécie de virtude cruel de que são “safas”, “sabem cuidar de si”, são “desenroladas” e “naturalmente mais fortes perante situações adversas.”
Uma pesquisa realizada em uma creche no interior de São Paulo aponta que crianças negras recebiam menos carinho de cuidadoras e educadoras que crianças brancas. “As crianças negras estavam, na maior parte do tempo, fora dessa prática da paparicação, em um processo de exclusão que não está sendo entendido como ato de segregação, mas como o recebimento de um carinho diferenciado, com menor paparicação. Isso também ocorria com algumas crianças brancas que não estavam entre os “preferidos” (“Infância, raça e pararicação”, de Fabiana de Oliveira e Anete Abramowicz).
A branquitude retira das crianças pretas qualquer perspectiva de cuidado e proteção integral, sobretudo quando esta divide atenção com outras crianças brancas, e em alguns casos, com o cuidado com os animais de estimação.
Diariamente, veículos de imprensa e órgãos da segurança pública expõem sem nenhuma preocupação ou cuidado o nome, o sobrenome e o rosto adolescentes e jovens pretos, atribuindo-lhes comportamentos criminosos e rótulos de pessoas violentas. Não raro, percebemos a aplicação de adjetivos diferentes dependendo da cor da pele da pessoa. Quando um adolescente branco é detido suspeito de ter cometido algum ato infracional, as matérias comumente o chamam de “jovem”, “estudante” , “adolescente”. Quando um adolescente negro está na mesmíssima situação, chamam-lhe “criminoso”, “bandido”, “traficante” e “menor”.
A régua deve ser a mesma e nivelada sempre pelo respeito às leis e garantia de direitos. O que se destaca é como a aplicação da lei no sentido da proteção sempre está garantida apenas à uma parcela pequena e rica da população. É como se a presunção de inocência, o direito ao resguardo da privacidade, e à proteção integral de crianças e adolescentes não fossem institutos garantidos com equidade e, de fato, não o são. A aplicação da lei deve ser justa e equânime. Sem dois pesos e duas medidas. Sem obedecer uma escala de cores. Sem que a balança sempre penda de acordo com a cor mais escura da pele, para a criminalização, o descaso e a negligência.
Mesmo antes da pandemia, a conta de toda crise no país, seja ela no campo da segurança, da saúde, do emprego e da educação, sempre teve um preço mais alto pago pela população negra. A pandemia acentua e evidencia tudo isso. Sem a retaguarda dos serviços do Estado para o cuidado com as suas crianças, sem a retaguarda de sua rede de vizinhos e familiares, que isolados para evitar o contágio do coronavírus, as mulheres trabalhadoras encontram poucas alternativas seguras para garantia da renda.
Com a saudade da mãe que passava tanto tempo fora trabalhando para garantir o sustento, Miguel Otávio Santana da Silva pagou essa conta com a vida. Ela, Dona Mirtes Renata de Souza, pagou essa conta com o que tinha de mais precioso na sua vida.
Podemos concluir que o nosso vilarejo não foi capaz de proteger Miguel. Pior, nosso vilarejo, ao que parece, escolheu deixar a porta do elevador se fechar.
Edna Jatobá é cientista social, especialista em Políticas e Gestão em Segurança Pública e coordenadora Executiva do GAJOP. Colaboradora da Rede de Observatórios de Segurança e gestora local da Plataforma Fogo Cruzado/PE. Thiago Praun é advogado, pós-graduando em LegalTech: Direito, Inovação e Startups pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Digital.