Qual é a hora de gritar abaixo a ditadura?
A maior parte do Movimento Estudantil acreditava que dizer “Abaixo a Ditadura” atrairia ainda mais repressão e recrudescimento, numa repetição da onda de violência e morte de 1968
Entre o fim de março e o início de abril (época em que o golpe de 1964 é lembrado ou, no caso do delinquente que ocupa a Presidência, celebrado), estrearia em São Paulo e no Rio de Janeiro o documentário “Libelu – Abaixo a Ditadura”.
Selecionado para a mostra competitiva do festival É Tudo Verdade 2020, a primeira sessão do longa estava programada para 29 de março, antevéspera do aniversário do golpe, o que deixou a equipe do filme inquieta e entusiasmada.
Assim que começou a quarentena e ficou evidente não existir possibilidade de lançá-lo no cinema (e que esse era o menos relevante dos nossos problemas), fomos nos afastando emocionalmente do projeto. Paramos de pensar nele.
A reabertura das cidades brasileiras no que parece ser um pico constante da pandemia (um platô de mortos) e as abundantes evidências de que se Bolsonaro não recorreu a uma quartelada não foi por falta de vontade trouxeram alguns pensamentos de volta à tona.
Não são sobre o lançamento do longa em si, mas sobre a história que ele tentava resgatar, seus ecos com o que podemos estar vivendo.
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Liberdade e Luta foi uma tendência estudantil universitária surgida em 1976, após a derrota da luta armada. Impulsionada por um grupo clandestino, a Organização Socialista Internacionalista (OSI), a Libelu ganhou notoriedade entre as décadas de 1970 e 1980.
Era sinônimo de radicalidade e, para os adversários, inconsequência. No horizonte da militância, eram os mais despachados comportamental e culturalmente (liam Wilhelm Reich e ouviam Rolling Stones, por exemplo). Numa entrevista ao “Conversa com Bial”, no fim de 2018, Caetano Veloso afirmou que foram os libelus os responsáveis por habilitar sua imagem junto à esquerda brasileira.
A primeira vez que cruzei com o objeto do longa foi num poema do Paulo Leminski dedicado à Liberdade e Luta. Ele diz assim: “me enterrem com os trotskistas / na cova comum dos idealistas / onde jazem aqueles / que o poder não corrompeu”. Fiquei curioso com esses caras que eram tratados como incorruptíveis e idealistas pelo poeta curitibano — não só porque figuras tão díspares quanto Antonio Palocci e Reinaldo Azevedo orbitaram este universo, mas também por isso.
Se quisesse contar essa história, teria que fazer dois resgates. Primeiro, um de caráter íntimo — afinal, o que a vida adulta reserva para jovens revolucionários?
Mas o filme também teria que se comprometer com a reconstrução dos fatos políticos daquele período. Pouco se sabe sobre essa resistência que, sem pegar em armas, acumulou vitórias políticas sobre o regime militar, sobretudo a partir do momento em que começou a chamá-lo pelo nome, nas ruas.
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O grito “Abaixo a Ditadura” não era consenso na esquerda da década de 1970, quando o Ato Institucional n° 5 (AI-5) ainda vigia e o regime militar seguia matando e torturando opositores.

Nesta imagem de maio de 1977, milhares de estudantes tomam o centro de São Paulo, desafiando polícia e Exército, em um dos raros grandes protestos contra o governo desde 1968.
O tom das reivindicações é algo contido: “Pelas Liberdades Democráticas”. A maior parte do Movimento Estudantil acreditava que dizer “Abaixo a Ditadura” atrairia ainda mais repressão e recrudescimento, numa repetição da onda de violência e morte de 1968.
Os libelus discordavam. Ainda assim, quando ficou decidido que um dos seus puxaria esse coro em pleno ato público, um novo problema surgiu: mas quem? Com “ratos” (meganhas infiltrados) nas assembleias e manifestações, esse era o tipo de exortação que servia como chamariz para o aparato repressivo.
Em cima da hora e sob pressão, o escolhido pelo grupo trotskista refugou. A tarefa então recaiu sobre um jovem integrante do bando, magricela e cabeludo, conhecido como “Bicho”. Era Josimar Melo, hoje crítico gastronômico e colunista da Folha de S. Paulo. Tempos depois, Melo e seus dois irmãos (Ricardo e Roberto, também trotskistas) precisaram se escafeder da cidade por algumas semanas.
Para a Libelu, mais do que uma questão de intrepidez, tratava-se de fazer a leitura correta da conjuntura política: a correlação de forças já não era a mesma do fim dos anos 1960; desta vez o poder militar enfrentava cisões internas e uma crise econômica. Era função da luta organizada radicalizar o discurso nas ruas para empurrá-lo ladeira abaixo.
Aos poucos, passeatas e atos públicos estudantis se multiplicaram pelo país (não sem atrair respostas truculentas do regime). Ainda assim, o “Abaixo a Ditadura” substituiu o precavido “Pelas Liberdades Democráticas” e no início dos anos 1980 já era unanimidade nas passeatas. Os atos desgastaram o governo, fazendo dos estudantes “batedores” do levante operário do ABC Paulista.
A pequena e radical Libelu marcara um gol, mas ainda havia muita ditadura pela frente.
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No começo, eu pensava que o filme tinha que se chamar só “Libelu”. O diminutivo era uma forma de achincalhar os jovens trotskistas, um apelido pejorativo. Com o tempo, foi adotado por eles — a sonoridade é ótima.
Quem assoprou o intertítulo (“Abaixo a Ditadura”) foi o jornalista Mário Magalhães, biógrafo de Marighella (1911-1969) e ex-ombudsman da Folha de S.Paulo. Magalhães topou assistir a um dos primeiros cortes, ainda em 2019.
Achei a sugestão ousada e levei para a produtora-executiva do projeto, Letícia Friedrich. Refletimos sobre o assunto semanas a fio. A palavra de ordem faz parte das lembranças de quem viveu aqueles dias, mas seu eco com o presente poderia confundir ou soar apelativo. Às portas do É Tudo Verdade, decidimos arcar com a ambiguidade.
Agora que já não restam muitas dúvida sobre as intenções de Jair em estrangular a democracia (restando apenas saber se ele conseguirá), nos perguntamos se o que era ambíguo não se tornará, de maneira macabra, um apelo literal.
Mesmo com as últimas derrotas e aparentes recuos de Bolsonaro, é normal que estejamos tão ansiosos pelo que pensa e como vai agir o comando das Forças Armadas no caso de um aprofundamento da crise política? Alguém imagina Bolsonaro (ou os militares) aceitando qualquer resultado nas próximas eleições presidenciais (se houver) que não seja sua vitória? Será que na expectativa maníaca pela ruptura definitiva não acabamos perdendo o momento em que isso tudo seria reversível?
Não sabemos se o filme vai ser exibido numa sala de cinema tão cedo — a Mostra Competitiva do É Tudo Verdade foi adiada para o fim de setembro, mas ainda é cedo para prever como estaremos até lá.
Para a equipe do documentário, composta por gente que nasceu ou cresceu na insuficiente e excludente democracia brasileira, ter se debruçado sobre aquele período ensinou algo: muita coisa de ruim precisou acontecer até a sociedade reter não apenas que estava sob um regime de exceção, mas que era preciso gritar isso em todos os cantos.
Diógenes Muniz é diretor de “Libelu – Abaixo a Ditadura” (Boulevard Filmes)