Quando a desigualdade passa a comandar a economia
Os obscurantismos econômicos que circundam o tema da inflação,da impressão monetária e da desigualdade
“O governo deveria emitir mais moeda para enfrentar a crise econômica? Sim ou não?” A pergunta colocada pela página de debates da Folha de S.Paulo em 10 de maio oferece importantes pontos e contrapontos sobre os diferentes posicionamentos. Não estranhe, porém, ficar apenas mais confuso na tentativa de formar uma opinião após a leitura.
Isso ocorre porque não é possível abarcar os espinhosos dilemas por trás da emissão de moeda sem alocar o tema da desigualdade para o centro da análise, erro capital da direita econômica – denominada de ortodoxia ou economia mainstream no economês.
Nesse sentido, compreender a inflação requer praticar uma importante inversão na ordem dos discursos: reconhecer que é o conceito da desigualdade que explica as teorias ortodoxas, e não o contrário. Este artigo tem por objetivo, assim, esclarecer os obscurantismos econômicos que circundam o tema da inflação, impressão monetária e desigualdade.
O conflito de classe após acordos de Bretton Woods
O século XX modificou o antigo conflito de classes. Disputas passaram a operar em outras gramáticas, sendo a principal mudança, provavelmente, a nova ferramenta de barganha adquirida pela classe trabalhadora: o crescimento econômico, que passou a depender do seu consumo.
A produção em massa, ao transformar a classe trabalhadora em consumidora, atrelou o crescimento econômico àquilo que os economistas denominam de “demanda agregada”. A ideia é simples, para a produção crescer, é preciso fazer aumentar a demanda.
Em outras palavras, o crescimento econômico, tão visado pela elite produtiva, passou a depender do consumo dos trabalhadores. Por uma ótica política, isso implica que o trabalhador, ao defender o aumento do seu próprio salário, pode oferecer em troca a possibilidade do crescimento. Esse foi o pacto social que formalizou as democracias do século XX, e que colocou também as teorias keynesianas na posição central da discussão econômica após a crise de 1929.
Da lógica descrita é possível derivarmos as seguintes perspectivas: num processo circular, o incremento da demanda forçaria a elevação da produção. Repetir o procedimento infinitamente terminaria, em última instância, por materialmente emancipar a sociedade.
Como sabemos, infelizmente, esse conto não reflete a realidade. A ingenuidade do argumento ignora como as estruturas de poder se reformulam no capitalismo tardio. A desigualdade logo encontrou formas de se reproduzir historicamente – e a inflação é peça chave para a compreensão do processo.
A desigualdade virou o maquinista
O neoliberalismo nos aproxima cada vez mais daquele futuro que o economista inglês David Ricardo temia que se tornasse real, um capitalismo rentista no qual o consumo se mantém estagnado não por reais possibilidades produtivas, mas por conta de uma lógica própria à desigualdade.
O receio de Ricardo fala muito sobre os nossos tempos e explica mais sobre o tema da inflação do que se supõe. Não por acaso, no desenvolver do debate teórico, a importância da desigualdade é praticamente ignorada nas ciências econômicas, principalmente na ortodoxia. Apenas retomando certa relevância recentemente, após a obra O Capital no século XXI, do economista Thomas Piketty.
Se a desigualdade alcançou a posição de maquinista, o trem é a inflação. Comecemos a pensar sobre o tema a partir das inocentes perguntas: com o atual nível tecnológico, por que ainda existe fome? Ou mesmo, por que ainda existe tanta escassez?
O limite do consumo é regido por aquilo que o economista chama de “política contracionista”. Com o tempo, a direita econômica descobriu uma nova maneira de se opor ao aumento dos salários: combatendo a inflação. Ou seja, em vez de resistir diretamente à melhoria das condições de vida dos trabalhadores, ela aprendeu que o mesmo objetivo poderia ser alcançado contrapondo-se ao subproduto do processo: a inflação.
Pela ótica do trabalhador, a lógica é simples, se a oferta é igual à demanda, temos que o aumento da demanda, ou seja, o aumento no consumo dos trabalhadores, causa inflação, pelo menos até a produção se ajustar ao novo nível de consumo. Nesse sentido, dentro de um crescimento organizado, o aumento da inflação acompanhado pelo aumento da produtividade não deveria ser um problema, mas o objetivo.
Fica, porém, a questão: por que não atacamos a inflação focando em ajustar a produtividade à nova demanda? Por que diversas vezes utilizamos políticas contracionistas que, ao contrário, contraem o consumo a um patamar anterior? O debate sobre a inflação, tal como feito hoje, obscurece como o capitalismo cria e elimina consumidores de acordo com o interesse do rentismo.
Os maiores interessados no combate à inflação
O rentismo é o principal bloco político a frear a expansão do consumo. Primeiramente, importante dizer que o rentismo financeiro se distingue do setor produtivo, justamente, porque não produz. Sua renda vem da propriedade. Ou seja, é a injusta divisão da propriedade que faz com que o rentismo exista – quem não tem casa paga aluguel!
Segundo, que essa realidade influencia as políticas econômicas expansionista e contracionista. Como? Sendo a política expansionista a que gera um aumento no consumo, e a política contracionista a que, inversamente, freia o consumo, não é difícil imaginar a política que mais interessa ao rentismo: a contracionista.
Por que? Rentistas são (i) contrários às políticas fiscais expansionistas, uma vez que expandir o consumo gera inflação – bancos são os maiores interessados no controle da inflação, pois seu aumento reduz o montante real do valor futuro a ser pago por seus devedores; e (ii) a favor de políticas fiscais contracionistas, uma vez que a redução de gastos governamentais reduz a demanda agregada, o que desacelera a economia ou mesmo – dependendo do choque – induz à recessão, aumentando o lucro bancário em contrapartida das endividadas empresas e famílias.
Ocorre que no decorrer dos ciclos econômicos o setor produtivo, que também ganha com o aumento do consumo da classe trabalhadora – ou seja, que também leva vantagens ao defender políticas expansionistas –, muda de lado: passa a concordar com políticas contracionistas.
O setor produtivo abdica do crescimento – do aumento do seu próprio lucro, consequentemente – por conta dos aspectos políticos do pleno emprego: trabalhadores começam a ganhar demais e “sair fora do controle”. Mais importante que o crescimento econômico é a necessidade da manutenção da ordem, ou seja, da desigual distribuição da propriedade e renda.
É a incapacidade de questionarmos a concentração da propriedade e renda, portanto, que cria os limites da expansão no consumo. A economia mainstream, ao defender o interesse da elite, alienou-se àquilo que deveria explicar e colocou a desigualdade na posição de maquinista.
A política contracionista expressa, portanto, a reação da elite. Interpretada pela ótica do PIB é uma decisão do tipo “perderemos todos com a redução do crescimento, mas é preciso lembrar quem perde mais”. Já pela ótica dos três principais blocos políticos: trabalhadores, setor produtivo e rentismo, expressa uma decisão a favor do rentismo. A quem interessar, expus com mais rigor esse assunto em artigo publicado em janeiro.
Um breve comentário sobre possíveis justas e injustas críticas
Alguns economistas poderiam me alertar que “pera lá! existem diversos tipos de inflação!” Ou mesmo que existem realidades contrárias à apresentada. De fato, adianto aqui um justo contra-exemplo. Um país que depende majoritariamente da exportação de matéria-prima pode viver uma realidade oposta da descrita aqui: o aumento do consumo interno promovido por um aumento dos salários poderia não compensar os efeitos da redução na exportação após o repasse do custo.
São importantes pontos, este artigo pretende fazer, porém, uma específica análise macroeconômica: expor o papel pivot da inflação nas mudanças que caracterizam o neoliberalismo. A análise não implica, portanto, ignorar a existência de correlações de forças na competição internacional, na qual, sabemos, países periféricos sofrem trade-offs mais complicados em comparação com os centrais.
Inflação, um novo conflito de classe?
Não por acaso o economista Michal Kalecki, em meados do século XX, observou a importância de questionarmos quais seriam as políticas econômicas do interesse do rentismo financeiro. Para ele, o crescimento da financeirização viria acompanhado de políticas contracionistas, ou seja, de uma redução relativa dos salários e consumo, pelos motivos descritos acima.
Décadas depois, o que vivenciamos? Em nome do combate à inflação, expandiram-se (i) políticas contracionistas, como a austeridade; e (ii) novas pseudo-políticas expansionistas, como o quantitative easing praticado na crise de 2008 pelo governo dos Estado Unidos que, ao contrário das antigas políticas, eliminaram por completo qualquer caráter redistributivo – de incentivo ao consumo, consequentemente.
Em relação às atuais políticas expansionistas, impossível não questionar: como aquilo que era um investimento estatal direcionado a setores com alto efeito multiplicador, que portanto induzia o consumo, se transformou no atual quantitative easing, que meramente almeja salvar bancos e garantir a liquidez financeira?
A pergunta que o neoliberalismo nos impõe, por conseguinte, é o que fazer quando passou a ser ignorada a racionalidade do “todos ganham com o aumento da demanda agregada”? Quando o interesse do setor produtivo, que de fato depende do aumento do consumo, alienou-se frente aos interesses do rentismo financeiro? Em termos político-econômicos, por último, quando políticas expansionistas foram historicamente subjugadas às políticas contracionistas, ou atuais pseudo-políticas expansionistas do tipo quantitative easing?
Doutrinas que solucionam a inflação inibindo o consumo, ou que injetam liquidez, mas apenas para a parte de cima da pirâmide social, não apenas nos alertam sobre a relevância da desigualdade, mas atestam que, inclusive, é ela – a desigualdade – que nos explica as mudanças ocorridas na história do pensamento econômico.
Sobre os dilemas da impressão monetária
Como em 1929, a atual crise provocada pela Covid-19 expressa a incapacidade do mercado – ou, caracterizando de maneira mais concreta, dos individuais proprietários de capital – em agir de maneira suficientemente coordenada e com o devido interesse público para salvaguardar os cidadãos das difíceis condições impostas.
Mais uma vez, contrariando o liberalismo até então predominante, o Estado volta a ter uma posição central e atuar como o credor de último recurso: políticas expansionistas são formuladas para resguardar a economia e a população.
Como os comentários sobre a inflação esclareceram, os limites da expansão da produção e do consumo não são tecnológicos ou naturais, mas políticos, uma vez que seguem lógicas atreladas à reprodução da desigualdade. Na atual pandemia essa realidade se escancara, quando o dinheiro não mais circula para as mãos de muitos trabalhadores, mas encontra-se estagnado na pequena parcela de proprietários.
Não por acaso são os economistas mais à esquerda que reconhecem, primeiro, a urgente necessidade de uma impressão monetária que atenda os mais vulneráveis. Uma vez que é o espectro político mais aberto às críticas de que não é o “automático e justo equilíbrio de mercado” que regula o sistema monetário, mas – principalmente – a desigualdade.
Por um sistema monetário em função da maioria! As históricas lições da guerra
Em julho de 1940, Keynes escreveu em artigo que “seria politicamente impossível, ao que parece, uma democracia capitalista organizar gastos em escala necessária para provar o meu ponto, com exceção da guerra”.
Como estudos sobre o papel do Estado norte-americano entre 1942 e 1945 demonstram, Keynes estava certo. Durante a guerra o gasto público subiu drasticamente, de 8% a 10% para 40% do PIB. Mais impressionantemente ainda é notar que bens e serviços contabilizavam em média 23% do gastos.
São nesses termos, portanto, que o Estado pode realizar importantes políticas expansionistas focadas no bem-estar da sociedade, e se livrar dos limites intrínsecos aos investimentos privados que, como vimos, impedem a expansão do consumo.
Basta um olhar à nossa volta para notarmos inclusive como a possibilidade de usar o Estado não é mero idealismo, mas está acontecendo. Em contexto de coronavírus, praticamente todos países estão extrapolando os seus limites fiscais. Pacotes econômicos se tornaram a regra. Apenas não podemos esquecer, posteriormente, que o bem-estar social é um motivo tão importante quanto uma pandemia ou guerra.
O argumento da inflação em tempos de Covid-19
Se em condições normais o medo da inflação já esconde um específico conflito de classe, numa crise como a atual impedir que o Estado salvaguarde os trabalhadores é expor o argumento da inflação ao limite do absurdo.
O Brasil não sofre hoje de uma incapacidade de produção dos itens básicos ao consumo, mas, por causa da crise, de um choque na demanda que impede o dinheiro de chegar nas mãos dos trabalhadores mais vulneráveis. O Estado ao garantir o mínimo aos que necessitam não corre, portanto, nenhum risco de produzir inflação.
Por isso a importância de acompanharmos a atual PEC do “Orçamento de Guerra”, que está em discussão no Congresso, e sendo recentemente modificada, apenas autorizando o governo a salvar empresas privadas, como mostrou o Valor.
Aqui, novamente, o medo da inflação justifica o absurdo de apenas socorrermos os de cima. Sobre esse enorme equívoco, cito as palavras do economista Bresser-Pereira, “é um erro que pode e deve ser evitado. Emissão de moeda bem controlada e com um objetivo claro não causará inflação e dará mais liberdade ao Estado na sua luta contra a pandemia”.
No longo prazo, por fim, é preciso lutar pela (i) permanência da renda básica, e (ii) correção do desigual sistema tributário. Primeiro, para que a Brasil não seja exemplo de uma economia ainda mais fragilizada pela ignorância de uma elite que abraçou irracionais doutrinas fiscais. Segundo, para que nossa sociedade avance no quesito da justiça e igualdade.
Bruno Mäder Lins é cientista social formado na USP e mestrando em Política Econômica na Universidade de Genebra.